Mostrando postagens com marcador História. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador História. Mostrar todas as postagens

29/05/2016

A Abolição, de Osório Duque Estrada

Para baixar o livro gratuitamente, clique na imagem e selecione-o em: 
---
Disponível provisoriamente em "Google Drive", no link abaixo:



---

História triste

De tudo quanto se escreveu sobre a personalidade de Luís Gama, nada é tão comovente nem tão significativo como a sua própria história, narrada nas seguintes linhas, escritas por Lúcio de Mendonça, um ano antes da morte daquele grande abolicionista:

“Nasceu Luís Gonzaga Pinto da Gama na cidade de São Salvador da Bahia, à rua do Bangla, em 21 de junho de 1830, pelas sete horas da manhã, e foi batizado oito anos depois, na igreja matriz do Sacramento, na cidade de Itaparica.

É filho natural de uma negra, africana livre da costa de Mina, da nação Nagô, de nome Luísa Mahen, pagã; recusou esta sempre batizar-se e de modo algum converter-se ao cristianismo.

Era mulher de estatura baixa, magra, bonita, de um preto retinto e sem lustro; tinha os dentes alvíssimos; era imperiosa, de gênio violento, insofrida e vingativa. Mais de uma vez, na Bahia, foi presa, por suspeita de se envolver em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.

Em 1837, depois da revolução do Dr. Sabino, naquela província, veio ao Rio de Janeiro e nunca mais voltou.

Procurou-a o filho em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862 soube por uns pretos minas, que a conheciam e dela deram sinais certos, que, apanhada com alguns desordeiros em uma casa de dar fortuna, fora posta em prisão, e que tanto ela como os companheiros desapareceram. Era opinião dos informantes que os amotinados houvessem sido deportados pelo governo, que nesse tempo tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais até hoje pôde Luís alcançar a respeito de sua mãe.

Naquele mesmo ano de 1861, voltando a S. Paulo e estando em comissão do governo, na então vila de Caçapava, consagrou à mãe perdida os saudosos versos que se leem, como nota de um sentimentalismo dissonante, no risonho livro das Trovas Burlescas, que deu a lume, com o pseudônimo de Getulino.

Vê-se que é hereditário em Luís Gama o profundo sentimento de insurreição e liberdade.

Abençoado sejas, nobre ventre africano, que deste ao mundo um filho predestinado em que transfundiste, com o teu sangue selvagem, a energia indômita que havia de libertar centenas de cativos!

O pai de Luís – outra analogia deste com Spartacus – era nobre, fidalgo, de uma das principais famílias baianas, de origem portuguesa.

Foi rico, e, nesse tempo, extremoso para o filho: criou-o nos braços.

Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela pesca e pela caça; gostava dos bons cavalos; comprazia-se em folguedos e orgias; esbanjou uma herança, havida de uma tia, em 1836.

Reduzido a pobreza extrema, em 10 de novembro de 1840, em companhia de Luís E. Quintela, seu amigo inseparável, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na Bahia, vendeu o filho como escravo, a bordo do patacho Saraiva.

A respeito dessa venda há uma cena, que deixa ver, por um lado, o caráter corrupto de um pai, e por outro, a energia do filho vencido.

Às 5 horas da tarde, o pai de Luís Gama mandara Luísa Mahen vestir o filho, dizendo que ia dar um passeio. Chegando ao cais, chamou um bote e declarou que preferia um passeio marítimo, visto que aproveitaria a ocasião para falar ao comandante do patacho Saraiva, com quem tinha uma questão a ultimar.

Dirigiram-se para o patacho e, chegados ao tombadilho, o pai deixou a criança de parte e esteve por longo tempo a conversar com o comandante.

Terminada a conversa, foi se retirando sorrateiramente, para assim escapar às vistas do filho; mas este, sempre vivo e esperto, quando viu o pai afastar-se e entrar no bote, dando ordem para este partir, perguntou da escada:

– Então, meu pai, não me leva consigo?

Ao que ele respondeu:

– Não, porque me esqueci de alguma coisa em terra; voltarei breve, e então iremos juntos.

Foi então que o jovem Luís desceu mais alguns degraus da escada, aproximou-se do bote, que já se afastava, e exclamou:

– Meu pai! O senhor me vendeu!

O velho olhou-o por algum tempo; os olhos se lhe encheram de lágrimas, e deu ordem aos remadores que tocassem para terra.


Não sei se o desgraçado ainda vive, nem lhe conheço o nome, que Luís oculta, generoso, aos seus mais íntimos amigos; mas, ainda que jogador e fidalgo, a recordação da monstruosa infâmia deve ter-lhe esbofeteado, em todo o resto de seus dias, a velhice desonrada.”


[Trecho do livro]

25/01/2016

Comentários sobre a Guerra Gálica, de Júlio Cesár


Para baixar o livro gratuitamente, clique na imagem e selecione-o em: 
---
Disponível também em "GoogleDrive", no link abaixo:


---

O problema dos Commentarii: o ornatus

Em vários aspectos podemos medir a aproximação dos Commentarii de Bello Gallico, com os preceitos da historia ornata. Vale antes de tudo lembrar que o gênero commentarii não se confundia com o gênero historiográfico. Via de regra, os comentários não eram considerados literatura, mas notas para futura redação de histórias literárias. Em Roma, temos o dado de que os comandantes em campo remetiam periodicamente ao Senado relatórios das batalhas. É desses relatórios, mais do que de uma obra histórica, que os Commentarii se aproximavam.

Era costumeiro na república romana, e manteve-se assim até o tempo do imperador Augusto, que os comandantes de exército e governadores enviassem ao Senado um relatório escrito de suas atividades. Tais relatórios poderiam ser usados para apresentar seus feitos ao público geral caso necessitasse. Os relatórios de César ao Senado foram, por sua vez, a base de seus “Comentários” sobre a Guerra Gálica.

A obra de César, no entanto, ganhou status histórico por seu valor literário, e pela importância de seu ilustre autor. Recorreremos à antológica citação de Cícero, à qual voltaremos ainda outras vezes:

(...) orationes quidem eius mihi uehementer probantur. compluris autem legi; atque etiam commentarios quosdam scripsit rerum suarum.

Valde quidem, inquam, probandos; nudi enim sunt, recti et uenusti, omni ornatu orationis tamquam ueste detracta. Sed dum uoluit alios habere parata, unde sumerent qui uellent scribere historiam, ineptis gratum fortasse fecit, qui uolent illa calamistris inurere: sanos quidem homines a scribendo deterruit; nihil est enim in historia pura et inlustri breuitate dulcius.

As suas orações são realmente aprovadas por mim. Muitas de fato eu li; e também aqueles comentários que escreveu dos seus feitos, muito devem ser aprovados; são, realmente, nus, diretos e belos, desprovidos de qualquer ornamento oratório, como um corpo sem sua roupa. Mas, enquanto quis deixar pronto material para outros escreverem a história, fez talvez obra grata aos ineptos que vão querer dotá-la de excessivos ornamentos, mas desencorajou os sensatos de escrever; nada é realmente mais doce, em história, do que a pura e clara brevidade.

Aqui atentaremos à expressão “desprovidos de qualquer ornamento oratório”, literalmente desprovida do ornatus, é esse o ponto que descaracteriza a obra enquanto história. E é por esse ponto, que marca a ausência daqueles três elementos presentes nos outros historiadores, que muitos não consideram os Commentarii como obra de história:

A estrutura por acontecimentos em vez da tradicional analística romana:

César se mantém apegado à descrição ano a ano, uma justificativa para tanto é que as operações militares cessavam durante o inverno, de modo que realmente as campanhas eram anuais. Além disso, o relato não tematiza o todo da relação entre os romanos e os gauleses, mas se limita aos incidentes político-militares do período do proconsulado de César; incidentalmente, no livro sétimo, temos a pacificação definitiva da Gália. O livro oitavo, descartados os problemas de autoria, serve como uma junção com o Bellum Ciuile.

A pesquisa das causas e circunstâncias de cada ato:

César visa, de certo modo, explicar as causas para os atos dos povos e das pessoas, essa explicação, no entanto, carece de profundidade quanto ao problema das relações galo-romanas. Eis um exemplo:

Apud Heluetios longe nobilissimus fuit et ditissimus Orgetorix. is M. Messala (et P.) M. Pisone consulibus regni cupiditate inductus coniurationem nobilitatis fecit et ciuitati persuasit, ut de finibus suis cum omnibus copiis exirent: perfacile esse, cum uirtute omnibus praestarent, totius Galliae imperio potiri. Iid hoc facilius iis persuasit, quod undique loci natura Heluetii continentur: una ex parte flumine Rheno latissimo atque altissimo, qui agrum Heluetium a Germanis diuidit, altera ex parte monte Iura altissimo, qui est inter Sequanos et Heluetios, tertia lacu Lemanno et flumine Rhodano, qui prouinciam nostram ab Heluetiis diuidit. His rebus fiebat ut et minus late uagarentur et minus facile finitimis bellum inferre possent; qua ex parte homines bellandi cupidi magno dolore adficiebantur. Pro multitudine autem hominum et pro gloria belli atque fortitudinis angustos se fines habere arbitrabantur, qui in longitudinem milia passuum CCXL, in latitudinem CLXXX patebant.

Entre os helvécios, foi Orgetórix, de longe, o mais nobre e o mais rico. Ele, durante o consulado de Marco Messala e Marco Pisão, movido pelo desejo de reinar, fez uma conjuração da nobreza, e persuadiu à sua cidade que saísse do seu território com todos os seus recursos, dizendo ser facílimo, uma vez que em valor excediam a todos os demais, apossarem-se do império de toda a Gália. Isto os persuadiu mais facilmente, porque de todos os lados os helvécios estão apertados pela natureza do lugar; de uma parte, pelo rio Reno, muito largo e profundo, que divide seus campos helvécios dos germanos; de outra, pelo altíssimo monte Jura, que está entre os séquanos e eles; da terceira, pelo lago Lemano e rio Ródano, que divide a nossa província deles. Por estas razões, acontecia que podiam se estender menos, e menos facilmente levar guerra aos vizinhos; razão pela qual, homens tão desejosos de guerrear grande mágoa sofriam. Pela sua multidão de homens e pela glória na guerra e na resistência, julgavam estreito o seu território, o qual se estendia duzentos e sessenta mil passos em comprimento e cento e oitenta mil em largura.

Temos aqui a enumeração das razões do personagem Orgetórix: a ambição pessoal de reinar diante da condição de preponderância; e a enumeração dos motivos de guerra para o povo: certeza da superioridade, por força e por número, situação inicial inferior àquela que eles consideravam digna para si.


A ausência da justificativa e da moral

Este é um ponto controvertido que se encontra no cerne do problema da propaganda nos Commentarii, basicamente, o autor se esforça justamente por mascarar seu julgamento e sua proposta, insinuando-os em meio à quase inevitabilidade dos acontecimentos. Esta característica está intimamente relacionada ao fato de ser ele mesmo o personagem principal de seu relato e às suas motivações políticas no momento da publicação da obra.


Autobiográfica

Por narrarem um evento do qual o autor tomou parte, os Commentarii são também material autobiográfico. Esse tipo de discurso teve larga difusão e aceitação na antiguidade e, em Roma, desenvolveu uma importante tradição.


Tradição da autobiografia em Roma

Em Roma, principalmente em seu princípio, o Estado era visto como uma projeção da família, uma arqui-família; pois era composto pelas tribos, que se dividiam em cúrias e as cúrias em gentes. Se, por um lado a fonte de celebridade era sempre a política, por outro a política romana era justamente conduzida pelos grandes aristocratas. Assim, a história das gentes, as grandes famílias, e a história do Estado eram pensadas sobre a mesma estrutura.

É considerado geralmente que crônicas das grandes famílias Romanas existem desde os primeiros anos da república; esta visão é defendida na força de uma observação de Lívio, que fala, com referências a fontes dos primórdios históricos de Roma, de príuatis publicisque monumentis, que foram perdidos no incêndio de Roma. Mas a interpretação tradicional dessa passagem é dificilmente defensível. O próprio Lívio, escrevendo na época de Augusto, assuma uma distinção entre “público” e “privado” (literalmente “à parte”, por exemplo, do Estado) que pode, dificilmente, ter existido nos primeiros dias. A literatura histórica dos romanos, embora baseada na tradição das famílias patrícias, não consistia nas histórias dessas famílias, mas nas do Estado Romano.

A grandeza da aristocracia romana, que caracteriza toda a política interna e externa da república, deixou sua peculiar impressão nos anais nacionais. Enquanto a historia de países com governos déspotas é de uma extensa narrativa pessoal dos feitos dos sucessivos governantes, a história de Roma é uma soma total de crônicas conectadas que registram as explorações das grandes famílias.


Exempla
, mos maiorum e laudatio.

A grande relevância da biografia em Roma se deve ao caráter romano basear-se nos exempla dos antepassados ilustres; a imitação destes antepassados era o cerne do mos maiorum, literalmente o costume dos antepassados. Esta tradição parte do culto familiar, no qual os antepassados eram divinizados, isto gerou a laudatio, discurso fúnebre que recordava os feitos do falecido. Estes discursos celebrizavam pro que meios um homem era considerado digno de servir de exemplo, isto é, ser citado como referência dos valores da cidade, passando, assim, a fazer parte da tradição.

O apelo à autobiografia tornou-se particularmente importante para projetar ou justificar um político na época de César. Desde o fim das Guerras Púnicas, o poder pessoal só fez crescer em Roma até o ponto da primeira guerra civil e da ditadura de Sila (82 a 79). Este ditador logo tratou de escrever uma autobiografia, assim como fizeram os cônsules Escauro e Rufo, contemporâneos de Sila. A turbulência política propiciava a proliferação de obras de autojustificação.

Na vida política, onde o desejo por poder encontra sua mais intensa expressão e a manutenção da posição de um homem aos olhos do público é uma das maiores preocupações, a autobiografia, que aparecia apenas raramente entre os antigos em outras esferas, foi largamente utilizada, e a vida em Roma, que visava a liderança individual e a atividade responsável, no mínimo, com o desenvolvimento de um senso comum prático e que, por sua vez, como uma atividade consistente com um propósito definido, supria a massa dos auto-retratos dos tempos antigos.

Aqui, a autobiografia era considerada como um tipo de trabalho literário reconhecido.


Cícero e a retórica

Cícero também considera esse fenômeno em suas obras, demonstrando a importância de conhecer e se referir aos antepassados:

Cícero, no diálogo sobre a teoria da ética, um dos diálogos imaginários no qual ele aparece como principal falante, traz como trunfo contra a filosofia epicurista um argumento político-histórico: A teoria epicurista, diz ele, de que o prazer é o único bem não pode apelar aos grandes nomes da história, e é incompatível com a atitude requerida de um servo do Estado. Desta maneira ele coloca perante seu interlocutor, um aristocrata Romano o qual ele apresenta como um defensor do Epicurismo, a situação do aristocrata que tivesse que responder por suas visões e atividades quando subisse à Rostra e tivesse que declarar diante de uma audiência pública o objeto de suas ações, objetivos e esforços: “Você proclamará as regras que você se propôs a observar ao administrar justiça, e também, se você achar por bem, você seguirá o costume antigo de fazer alguma referencia a seus ancestrais e a você mesmo.”

Assim compreendemos que a biografia e a autobiografia encontram em Roma ambiente fértil para se desenvolver de maneira sistemática. Tinha sua base cultural nas laudatio, sua função determinada pelo ambiente político, e sua forma desenvolvida pelos padrões do estilo epidítico de retórica.


O problema dos Commentarii
 

Os Commentarii fornecem material autobiográfico, referindo-se às campanhas de César na Gália, e foram publicadas no contexto de autojustificação, logo antes do início da Guerra Civil, com clara intenção de garantir a dignitas do autor. Há, no entanto, diversos desvios na obra em relação ao estilo clássico de biografia, pois não se dedicam à descrição de uma pessoa e não há descrições minuciosas dos caracteres da personalidade do general. De fato, há uma intencional ausência de qualificações, exceto aquelas estritamente ligadas aos acontecimentos, ainda assim com uma forte simplificação. A obra não acompanha toda a vida de César, mas apenas o período da guerra.


O tempo

A primeira limitação no aspecto autobiográfico dos Commentarii é em relação ao tempo. A obra cobre apenas os anos de proconsulado na Gália, era nesta campanha que César esperava realizar a sua gloria e demonstrar sua dignitas. Isto limita a imagem que o autor deseja passar de si: o general vitorioso. Sabemos que em Roma o valor pessoal e a capacidade administrativa eram medidas pelo sucesso nas armas. Prova disso é a campanha de Cícero pela cedant arma togae, que se esforçou por mudar este costume.

Os Comentários de César não são uma autobiografia. Eles lidam apenas com cerca de nove anos de sua vida, sete deles sendo cobertos pela Guerra Gálica e o restante pela guerra civil, ou, mais precisamente, seu primeiro período (49-48 a.C.), até a batalha de Farsália e a morte de Pompeu. O intervalo entre as duas guerras foi depois preenchido por Hírcio, que adicionou um “livro” aos sete da Guerra Gálica. Ele estende a obra sobre a guerra civil “tão longe” ele diz “quanto à conclusão, não da luta civil, da qual nós não vemos o fim, mas da vida de César”. Este ponto de vista biográfico é um elemento adicional introduzido na obra que, como um relatório militar factual, começa: “A Gália é toda dividida em três partes.” Mas César forneceu mais em seus Comentários do que uma obra autobiográfica qualquer. Eles oferecem um exemplo de auto-revelação que pôde servir como amostra para as autobiografias dos historiadores e políticos das épocas seguintes, que em seu auto-retrato buscaram adotar um estilo elevado na clássica tradição antiga.
  
A ausência da laudatio

Outro ponto em que os Commentarii destoam das autobiografias tradicionais é em relação ao estilo retórico. Por serem obras políticas, as autobiografias traziam, assim como os panegíricos, características do estilo epidítico: a descrição com o elogio ou a censura. Nesta obra César dispensa o processo de laudatio para falar de si, e descreve sempre na perspectiva da ação, chegando a narrar feitos de outros em concordância com a coerência dos acontecimentos da guerra. Isso não quer dizer que não haja um elogio, mas que este parte das ações para sugerir, sem expli-citar, as qualidades do general.

A característica desta atitude é a objetividade no tratamento de si mesmo. César fala de si de um modo não-envolvido, na terceira pessoa, mas usando seu próprio nome, que ele gosta de usar repetidamente — por exemplo, “César, tendo antecipado que isto podia ser o curso natural dos eventos, esperou por dois dias para...” Ele não evitou absolutamente o uso da primeira pessoa, mas como romano, fala de soldados como “nossos homens”, nostri, e como autor usa o pluralis maiestatis, o “nós real”, em frases subsidiárias como “nós mostramos que...” Assim a pessoa focada e a pessoa que foca são separadas, enquanto que para nós a identidade dos dois é a marca essencial da autobiografia.


O excesso de narratio

César, em sua obra, traz, como vimos, características tanto da historia ornata quanto da tradição analística romana. Como descreve Misch:

Mas o dispositivo que César usa não é, de modo algum, artificial, parece, na verdade, a maneira natural de se expressar, pois é baseado num sério propósito, aplicável tanto para o historiador quanto para o homem de estado fixar-se aos fatos e deixá-los falar. São os fatos e não ele mesmo que proclamam sua fama. Ele não usará da retórica, e chama uma espada de espada, sem adornos de nenhum tipo; e da mesma maneira ele abstém-se de qualquer expressão de sentimento.

A objetividade no texto da descrição dos fatos busca somar a simplicitas da pureza estilística à grauitas da ação. César, na verdade, faz um avanço em relação à tradição autobiográfica: ele busca transmitir, pelo estilo, as mesmas qualidades que atribui a si enquanto general. Como tinha a dignitas como objetivo, ele tratou de emular os antigos heróis romanos, não só nos feitos, mas trazendo uma qualidade considerada rara em sua época. Justo ele, que se incluía no grupo dos oradores “áticos”, mesclou a influência helênica com a tradição latina, utilizando um estilo sucinto e a estrutura analística, tidos como arcaizantes e opostos à proposta retórica da historia ornata.

Outro ponto destoante é a atenção dispensada aos feitos de outros personagens. O autor se preocupa em descrever todos os fatos relevantes para a condução das campanhas, isso inclui a ação de seus ajudantes e de seus adversários. Agindo assim, ele se aproximava de um historiador mais preocupado com a coerência e inteligibilidade do relato do que com a descrição de um personagem específico. Como se os acontecimentos na Gália fossem por si mais importantes do que a pessoa do general. Isto denuncia uma intenção de demonstrar modéstia.

Esta objetividade inclui precisão dos detalhes militares, mas isto também inclui qualidades humanas e morais: em vez de atribuir cada sucesso a si mesmo, no estilo das memórias políticas, César deu proeminência aos serviços prestados pelos seus ajudantes, e suas memórias são livres do abuso de seus inimigos, o que é uma notável característica da autobiografia de Sila, seu predecessor no poder ditatorial, e com a qual encontramos também na autobiografia de seu sucessor César Augusto.


---
Fonte:
Paulo Roberto Souza da Silva: "A figura de César, autor e personagem, nos Commentarii de Bello Gallico". (Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Dra. Ana Thereza Basílio Vieira). Rio de Janeiro, 2006.


Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

26/09/2015

Tratados da terra e gente do Brasil, de Fernão Cardim


Para baixar o livro, clique na imagem e selecione-o em: 
http://www.projetolivrolivre.com/
---
Disponível também em "Minhateca", no link abaixo:




---


Do clima e terra do Brasil

O clima do Brasil geralmente é temperado de bons, delicados, e salutíferos ares, donde os homens vivem muito até noventa, cento e mais anos, e a terra é cheia de velhos; geralmente não tem frios, nem calmos, ainda que o Rio de Janeiro até São Vicente há frios, e calmas, mas não muito grandes; os céus são muitos puros e claros, principalmente de noite; a lua é mui prejudicial à saúde, e corrompe muito as coisas; as manhãs são salutíferas, têm pouco de crepúsculos, assim matutinos, como vespertinos, porque, em sendo manhã, logo sai o sol, e em se pondo logo anoitece. O inverno começa em março, e acaba em agosto, o verão começa em setembro e acaba em fevereiro; as noites e dias são quase todo o ano iguais.

A terra é algum tanto melancólica, regada de muitas águas, assim de rios caudais, como do céu, e chove muito nela, principalmente no inverno; é cheia de grandes arvoredos que todo o ano são verdes; é terra montuosa, principalmente nas fraldas do mar, e de Pernambuco até à Capitania do Espírito Santo se acha pouca pedra, mas daí até São Vicente são serras altíssimas, mui fragosas, de grandes penedias e rochedos. Os mantimentos e águas são geralmente sadios, e de fácil digestão. Para vestir há poucas comodidades por não se dar na terra mais que algodão, e do mais é terra farta, principalmente de gados e açúcares.


20/09/2015

O Caso do Império, de Oliveira Viana

Para baixar o livro, clique na imagem e selecione-o em: 
http://www.projetolivrolivre.com/
---
Disponível também em "Minhateca", no link abaixo:



----


Prefácio
Deu-me o nosso Instituto Histórico, de que sou parte mínima, a incumbência de, na comemoração que ele fez do centenário de D. Pedro II, historiar os últimos dias do seu grande reinado, cujas fases anteriores, a do início, a de expansão, a do esplendor, a da glória, ele havia distribuído sabiamente a dez das suas maiores competências.
Dando-me o encargo de dizer do Império na sua fase pré-agônica, quando já mergulhado nas sombras do seu ocaso melancólico, a velha instituição científica teve mais uma vez o sentimento muito exato dos valores humanos: era justamente à mais obscura das suas expressões intelectuais que devia caber a missão de historiar a vida e os acontecimentos do longo reinado bragantino nesta última fase, que era a do seu crepúsculo...
No plano das onze monografias projetadas, a mim cabia, com efeito, o estudo dos acontecimentos operados entre 1887 e 1889. Cabia a mim, portanto, surpreender a questão militar e a efervescência militarista no seu ponto climatérico; a mim, ainda, apanhar a campanha abolicionista no momento mesmo do seu triunfo; a mim, finalmente, observar a velha estrutura do Império no instante mesmo da sua sideração e queda.
Cedo, porém, reconheci a impossibilidade de me manter dentro dos extremos prefixados pelo Instituto. No pequeno campo histórico, que me fora destinado, vinha confluir uma série de acontecimentos, cada qual mais importante, mas cuja significação senti que era impossível apreender, se me conservasse rigorosamente adstrito aos estreitos limites impostos à minha investigação. Dentro daquele curto período de 1887-1889, o que via era como que um epílogo, exprimia apenas as últimas ondulações tumultuárias e encruzilhadas de um complexo movimento social, cujas primeiras revelações tinham que ser buscadas em épocas incomparavelmente mais distantes.
Realmente, nenhuma das grandes forças, que determinaram a queda do Império, se havia gerado dentro do período de 1887-1889; todas tinham as suas manifestações iniciais fora daquele limitado espaço histórico: o abolicionismo, o republicanismo, o federalismo, o militarismo. Este partia de 1870 – pelo menos. O pensamento abolicionista recuava ainda mais – aos primeiros dias do Império. O espírito republicano e federativo, esse vinha ainda de mais longe – mergulhava em cheio as suas raízes no período colonial. Tive, pois, que desobedecer ao plano estabelecido pelo Instituto e remontar as fases anteriores, na pesquisa das causas primeiras daquele extraordinário acontecimento.
Esta pesquisa das causas primeiras poderia me levar, de inferência em inferência, muito longe – porque a lógica do historiador é como aquele hipopótamo de uma fantasia de Machado de Assis: tem a fome do infinito e tende a procurar a origem dos séculos. Era preciso evitar este inconveniente, fatal antes de tudo aos leitores. Resolvi então procurar um ponto do nosso espaço histórico, tal que me permitisse, sem penetrar as origens remotas, determinar e isolar as causas mais aparentes do grande acontecimento.
Este ponto encontrei-o – e é o pequeno período que vai da queda do gabinete Zacarias em 1868 ao manifesto republicano de 1870.
Neste período está o ponto de partida de todo aquele movimento político que haveria de epilogar-se a 15 de novembro, com a destruição do gabinete Ouro Preto e a queda do 2º Império. Fixei-me nele – e foi dentro desse horizonte mais dilatado que tentei descrever, nas suas linhas gerais, a marcha evolutiva das grandes forças políticas que derruíram, em 1889, a velha estrutura imperial.
Digo das “forças políticas” – porque somente delas trato neste volume. Das outras, as econômicas e as sociais principalmente, não é aqui a melhor oportunidade para estudá-las. Eu me reservo esta análise para quando, ultimando a série dos meus ensaios, iniciados com as Populações Meridionais, sobre a origem e a formação da nossa nacionalidade, tiver que estudar, na Introdução à História da República, a sociedade brasileira sob o novo regime e fazer a crítica das nossas realidades contemporâneas.
Há duas espécies de história – disse um dos nossos grandes espíritos: a história dos fatos e a história das ideias. Por isso mesmo há duas espécies de historiadores: os que historiam fatos e os que historiam ideias. Neste livro, eu procuro, de preferência, historiar ideias. Daí a escassez dos dados biográficos e dos dados cronológicos neste ensaio, em que tento descrever a evolução da mentalidade das nossas elites no momento justo em que passam da grande ilusão monárquica para a grande ilusão republicana. O meu objetivo neste volume é, por isso, definir, de uma maneira precisa, o papel exercido na queda da monarquia pela ideia liberal, pela abolicionista, pela ideia federativa, pela ideia republicana e pelas fermentações morais que determinaram as chamadas “questões militares”.
Estas constituíram para mim um ponto extremamente delicado de análise; mas, dada a autenticidade dos fatos estudados, não creio que se possa acusar de excessiva a severidade com que julguei o papel do elemento militar nas nossas agitações políticas. Neste ponto, como em todos os outros, que são debatidos neste volume, penso ter feito obra de absoluta imparcialidade julgadora.
É possível que, nestas páginas, muito grandes homens apareçam sem aquelas amplificações que a perspectiva histórica cria, muitos heróis se mostrem despidos do nimbo luminoso com que a tradição os havia coroado. Mas, que importa isto? O essencial é que o juízo seja justo e assente em fundamentos de verdade. O papel do historiador é justamente este, é realizar essa obra de reintegração dos valores, depondo dos altares santificadores os falsos ídolos e pondo neles os benfeitores dos povos, os criadores reais de sua história – em suma, os verdadeiros heróis, espoliados por aqueles intrusos na legitimidade do seu direito à glória.


Teresópolis, 1925.Oliveira Vianna.

07/09/2015

A Batalha de Toro, de Antônio Francisco Barata


Para baixar o livro, clique na imagem e selecione-o em: 
http://www.projetolivrolivre.com/
---
Disponível também em "Minhateca", no link abaixo:



---

O sr. Moguel viu a batalha de Toro com olhos de castelhano (não de espanhol, como a todos nos considera os habitantes da Península) eu vejo-a com os de português; porque força é dizê-lo as duas nações existem autônomas, apesar da natureza ter formado para ambas dos Pirineus ao extremo ocidente da Europa este trato de terra fertílimo da Península, que a política e a história retalharam, não direi para sempre; mas para enquanto Portugal for cobiçado, e se poder equilibrar na balança dos interesses europeus.

Para muito escrever é o assunto, se aqui fora lugar para isso.

Em vista do que aí fica escrito e transcrito, para mim, nascido em Portugal, sem animadversão nenhuma, a Batalha do Toro não foi a desforra da de Aljubarrota. Não a tem mesmo na história.

05/09/2015

Sá de Miranda e a sua Obra, de Décio Carneiro


Para baixar o livro, clique na imagem e selecione-o em: 
http://www.projetolivrolivre.com/
---
Disponível também em "Minhateca", no link abaixo:


---

Sá de Miranda: Os estrangeiros

Foi a partir de 1526, após retornar de sua célebre estada na Itália (para onde partira em 1521), que Sá de Miranda começa a pôr por obra o seu projeto de reforma das letras portuguesas, orientado e incentivado pelo pujante movimento de renovação, de revivescência dos arquétipos greco-latinos, que para as terras italianas, justamente, o aliciara. Recorde-se que Erasmo, em carta a Anne de Verre, de quem espera o apoio pecuniário que lhe possibilite pôr-se a caminho da Itália, afirma ter-se-lhe tornado necessária a viagem, antes de mais nada, “para dar à minha pequena ciência a autoridade dessa ilustre estância”.

De regresso daquelas paragens rutilantes, desiderato de tantos intelectuais e artistas de seu tempo, escreve então Sá de Miranda, porventura em 1527, a comédia Os estrangeiros, materializando um objetivo ponderoso: Transplantar para Portugal, “cabo do mundo”, a exemplo do que tinham efetuado, em língua italiana, autores como Ariosto e Bernardo da Bibbiena, o paradigma cômico latino, constituído pelas peças de Plauto e de Terêncio. Estes são, por sinal, a par de Ariosto, os dramaturgos a que se reporta o poeta, assim especificando seus modelos, no texto em que oferece sua obra ao cardeal D. Henrique.

No prólogo de Os estrangeiros fala a própria comédia; ciente de ser uma estrangeira, isto é, de tudo que a distingue do que em Portugal se tem costumadamente por teatro – o auto vicentino, em primeiro e prestigioso lugar –, antecipa a personagem o desconcerto, talvez o desdém zombeteiro, com que há de por certo acolhê-la um público incapaz de a identificar. Sá de Miranda está a acentuar, com efeito, o ineditismo de sua empresa; por outro lado, não se inibe de indigitar a ignorância da platéia, ao fazer-lhe uma preleção – breve, é verdade – acerca da origem grega da comédia, de sua transplantação para Roma e do brilho com que aí floresceu, da sorte funesta que lhe veio da derrocada do fastígio romano, e da exumação recente, enfim, que a fez assomar de novo aos palcos, e aos da Itália, primeiramente, donde está vindo ela a este “cabo do mundo”, Portugal, em que haverá talvez quem a deseje, confundido por seu nome, comê-la. Epítome chistoso, e um tanto presunçoso, porventura, reminiscente dos 105 prólogos polêmicos de Terêncio, em que se adverte o intelectual enfronhado nos modelos dramáticos antigos (e nos modernos que os imitam) e mais que tudo empenhado, contra a veia plebéia dos autos, em fazê-los prosperar em solo português: abona-os, de resto, a ilustre genealogia greco-latina, aduzida oportunamente pelo autor. Marca dessa intenção programática é a observância estrita, em Os estrangeiros, das unidades de ação, de tempo e de lugar; outra característica relevante é o emprego da prosa, neste caso em lugar da redondilha e dos chamados versos de arte maior, e a mais a divisão da peça em cinco atos.

No prólogo de sua Calandria, assinala Bernardo da Bibbiena: “Voi sarete oggi spettatori d‟una nova commedia intitulata Calandria: in prosa, non in versi; moderna, non antiqua; vulgare, non latina”. “Moderna” quer dizer coetânea do autor, na ambientação, com tudo que isso acarreta à determinação dos caracteres, da temática, da linguagem, etc., o que, de fato, não obsta à assimilação do paradigma antigo, plautino e terenciano. Somada essa última às características apontadas por Bernardo da Bibbiena, obtém-se, com efeito, o programa sumário da comédia como a concebia Sá de Miranda, a comédia do Renascimento, também denominada comédia erudita.



---
Fonte:

Eugênio Gardinalli Filho: “A Comédia Erudita em Portugal: Sá de Miranda (Tese de doutorado. Orientadora: Profa. Dra. Maria Helena Ribeiro da Cunha.  Área de Concentração: Literatura Portuguesa São Paulo. Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas). São Paulo, 2009.

04/08/2015

Ciropédia, de Xenofonte

Para baixar o livro, clique na imagem e selecione-o em: 
http://www.projetolivrolivre.com/
---
Disponível também em "Minhateca", no link abaixo:



---


Síntese Narrativa

A Ciropedia foi escrita por volta de 360 a.C.. O enredo trata da vida de Ciro, o Velho, fundador do Império persa, desde o seu nascimento até sua morte.

O Livro I abre com um proêmio (Livro I, 1.1-6), no qual o narrador reflete sobre as dificuldades de se governar, concluindo que esta é uma tarefa árdua, mas não impossível, pois descobriu em sua pesquisa que existiu certo Ciro que se fez respeitar e amar pelos súditos de seu Império. No capítulo 2, narra-se a genealogia e as qualidades naturais de Ciro e o sistema educacional persa, pelo qual Ciro, como cidadão, teria passado. Nos capítulos 3 e 4 narra-se de modo romanesco a visita de Ciro à corte de seu avô materno Astíages, rei da Média32. Ciro decide permanecer na Média para aperfeiçoar-se e tornar-se o melhor, quando retornasse à Pérsia. É interessante que Ciro revela à sua mãe os limites da educação persa e justifica a sua estadia na Média pelo complemento da sua educação. No Capítulo 4 (16-24), quando estava com quinze ou dezesseis anos, Ciro participa com extraordinária bravura de sua primeira expedição bélica. Após essa experiência, Ciro retorna à Pérsia (I, 5), prosseguindo sua formação cívica e moral de acordo com o sistema educacional descrito no capítulo 2, distinguindo-se dos seus compatriotas no cumprimento dos seus deveres. Após dez anos, Ciro é escolhido pelos anciãos do conselho para liderar o exército persa, na aliança com a Média em guerra contra a Assíria (I, 5.2-5) e faz seu primeiro discurso como líder aos principais generais (I, 5.6-14). Por fim, o último capítulo do primeiro livro é um longo diálogo entre Ciro e seu pai Cambises e este, enquanto acompanha seu filho até a fronteira da Pérsia com a Média, expõe as qualidades que devem adornar um bom chefe militar e os conhecimentos para obter a obediência de seus soldados.

O Livro II e o Livro III (este até o capítulo 3, parágrafo 9) formam uma unidade temática. O capítulo 1 do Livro II inicia-se com o relato dos preparativos para a campanha. Há um catálogo dos inimigos e dos aliados (II, 1.5-6) e as primeiras atuações de Ciro como chefe militar, resolvendo a falta de contingente, equipando os soldados rasos com o mesmo armamento dos soldados de elite (II, 1.9) e organizando concursos e recompensas para fomentar a emulação e treinar seus homens (II, 1.11-18). No capítulo 2, dá-se lugar a um simpósio na tenda de Ciro, na qual se reúnem os principais generais do exército, que narram pequenas e divertidas anedotas da vida cotidiana do exército. Após Ciro acertar com os seus subordinados a forma de divisão dos espólios (II, 3), inicia-se a campanha da Armênia (II, 4 – III, 1), antiga aliada da Média que se negava a pagar os impostos cobrados pelos aliados e sua submissão a Ciro, que tem seu ponto alto no diálogo entre Ciro e Tigranes, filho do rei Armênio, que tenta salvar seu pai do julgamento em que Ciro representa o papel de juiz. No Livro 3, capítulo 2, relata-se a expedição à Caldeia em que Ciro conclui a paz entre a Armênia e a Caldeia.

Do Livro III, 3.9 até o Livro V, 1.36, a narrativa trata da expedição à Assíria. Começa com os preparativos, o discurso exortativo, a discussão entre Ciro e Ciaxares a respeito da tática que se deve seguir (III, 3.9-55); prossegue com a marcha contra o inimigo e a primeira batalha, que garante a vitória aos persas (III, 3.56 - IV, 1.18). A despeito do temor de Ciaxares, Ciro, junto com alguns voluntários medos, persegue os inimigos (IV, 1.19-24) e consegue o apoio dos hircanos, ex-aliados dos assírios (IV, 2). Nos capítulos 3, 4 e 5 do Livro IV, Ciro projeta e organiza uma cavalaria persa; nestes capítulos se contrastam a figura de Ciaxares, incapaz e ciumento do êxito de Ciro, e este, empreendedor e triunfante. No capítulo 6 (Livro IV), conta-se a história de Góbrias, o desertor do rei Assírio. O filho de Góbrias fora assassinado pelo rei Assírio, pois ficara com ciúmes da beleza do jovem. A última seção do livro IV (6.11-12) narra a divisão de espólio e fica-se sabendo que a Ciro coube a dama de Susa, a mulher mais formosa da Ásia, Pantéia.

O Livro V se inicia com a narrativa da bela Pantéia, propriamente dita. Ciro convoca Araspas para guardar Pantéia. Os dois travam um diálogo a respeito do amor, e apesar das advertências de Ciro sobre os perigos de Eros, Araspas se apaixona pela bela prisioneira. Entrementes, continua a campanha contra a Assíria, com Góbrias dando valiosas informações sobre aquele país a Ciro (V, 2) que resulta em enfrentamentos de menor importância (V, 3) e no aliciamento do assírio Gadatas, que assim como Góbrias tinha motivos de sobra para odiar o rei Assírio (V, 3.8 - V, 4). Em V, 5, Ciaxares e Ciro restabelecem a aliança, após Ciro convencê-lo de que sua inveja é infundada.

Do Livro VI até o Livro VII, 1. 2, a obra se refere à campanha a Sardes, capital da Lídia. Após os primeiros preparativos (VI, 1.31-55), a narrativa retorna as personagens de Araspas e Pantéia. Ciro, aproveitando que seu soldado apaixonara-se pela bela prisioneira, envia-o como espião dos inimigos. Pantéia, grata por Ciro ter garantido sua dignidade diante dos ataques apaixonados de Araspas, envia uma carta ao seu marido, Abradatas, que trai o rei Assírio, indo juntar-se ao exército de Ciro. Abradatas se prepara com a armadura feita do ouro das jóias da esposa para ser o melhor aliado possível para Ciro. Segue-se a narração de corte técnico-militar, com Ciro fortalecendo seu exército com os aliados da India (VI, 2), o treinamento dos soldados (VI, 2.4-8), a organização para a batalha (VI, 2.23-41), a ordem de marcha (VI, 3.1-4) e as últimas exortações e instruções de Ciro (VI, 4.12 - VII, 1.22). Em VI, 4.2-11, Pantéia despede-se de Abradatas, que parte para a batalha na posição mais perigosa de luta.

O primeiro capítulo do Livro VII narra a batalha de Sardes, com a morte de Abradatas pelos egípcios (VII, 1.29-32). Ciro derrota o inimigo e toma a cidade (VII, 1.36 - VII, 2.14); ele se encontra com o rei da Lídia, Creso (VII, 2.15-29); e Pantéia, após velar seu esposo, se suicida (VII, 3. 4-16).

A partir de VII, 4, até VII, 5.36, narra-se a marcha para a Babilônia e a submissão dos povos das regiões pelas quais Ciro atravessa: a Cária, as Frígias, a Capadócia e a Arábia. A partir desse ponto, Ciro torna-se soberano, assentando-se no trono da Babilônia (VII, 5.37-69), granjeando o favor dos súditos e tomando medidas para manter a unidade do Império (VII, 5.70-86). Góbrias e Gadatas se vingam do rei Assírio, matando-o.

O Livro VIII trata da organização da corte (VIII, 1.1-8) e prossegue com a organização do Império (VIII, 1.9 - VIII, 2.28). Em VIII, 3.1-34, narra-se o desfile 28 triunfal com toda a magnificência, completando a imagem de um Ciro no cume da glória. Depois de um banquete com seus amigos de sempre (VIII, 4), Ciro retorna à Pérsia e à Média, formalizando uma união com este país, ao casar-se com a filha de Ciaxares (VIII, 5). Em VIII, 6, Ciro estabelece uma instituição sem precedentes, a satrapia, para controlar as diversas províncias do Império. O capítulo 7 deste Livro VIII apresenta Ciro já ancião, perto de uma morte natural em sua cama e rodeado por seus filhos; discursa a eles suas últimas palavras, estabelecendo a sucessão de seu trono.

A narrativa termina com um Epílogo (VIII, 8) no qual o narrador descreve a decadência do Império após a morte de Ciro, atribuindo-a à perda dos valores morais, por parte tanto dos súditos quanto dos seus governantes, valores estes que fizeram possível a glória passada.

O Epílogo tem sido objeto de muita discussão por parte dos críticos, que se dividem em aceitá-lo como texto autêntico de Xenofonte (DELEBECQUE, 1957; BREITENBACH, 1966; SANSALVADOR, 1987;) ou como espúrio, um acréscimo posterior dos comentadores (HÉMARDINQUER, 1872; BIZOS, 1972). Alguns tradutores, como Jaime Bruna (1965), considerando espúrio o texto, não o apresentam em suas traduções, terminando a obra no capítulo 7 do Livro VIII. Os estudiosos alegam que o epílogo apresenta traços que destoam do tom idealista do resto da obra. Jaeger (1995, p.1157), no entanto, observa que a estrutura do epílogo é a mesma da estrutura do epílogo da Constituição dos Lacedemônios e que é improvável que ambas as obras tenham sofrido acréscimos idênticos posteriormente.

Compartilhamos a posição que aceita o epílogo como autêntico, pois a base das contradições é só aparente (SANSALVADOR, 1987; DELEBECQUE, 1957) e respondem a um interesse do autor em contrastar o passado esplendoroso com o momento atual por meio da expressão [...] ainda hoje”. O Epílogo se concentra no contraste do passado glorioso com a decadência atual do Império. Delebecque (1957) estabelece que o [...] se refere à Pérsia liderada pelo soberano Artaxerxes II, que, na visão de Xenofonte, encarnava a decadência do Império, aludindo-se ao seu despotismo e deslealdade (VIII, 8, 4) e à revolta das províncias ocidentais do Império, que teria ocorrido entre 362-361 a.C.

Devemos notar, por outro lado, que Xenofonte dirigia-se a um público grego, principalmente ateniense, que outrora também fora um grande e glorioso império, porém assistia naquela época à decadência de sua política. Talvez nosso autor, como 29 antes fizera Aristófanes em suas comédias, pretendesse apresentar uma advertência aos próprios atenienses, mostrando-lhes que a glória do passado estava intimamente relacionada com princípios morais que a tradição transmitia e que a decadência decorria do desapego destes mesmos princípios.

Bodil Due (1989, p.16) defende a autenticidade do Epílogo como produto natural do desenvolvimento da obra, reconhecendo tanto o estilo de Xenofonte por meio de vocabulário e construções sintáticas, quanto a continuação do plano inicial estabelecido por Xenofonte no proêmio. O objeto de pesquisa era o ato de governar os homens, (archeim anthropon), e os governantes fazerem-se obedecer, (peithesthai tois archousi). Para Due, a decadência moral apresentada por Xenofonte relaciona-se à incapacidade dos líderes “pós-Ciro” de conseguirem a obediência de seus súditos, pois os costumes morais e cívicos instituídos por Ciro deixaram de ser respeitados.

Assim compreendido, o Epílogo forma juntamente com o Proêmio uma moldura ao redor da vida de Ciro, e esta passa a ser um “quadro” que ilustra as ideias contidas nesta moldura.

---

Fonte:
Emerson Cerdas
: “A Ciropedia de Xenofonte: Um romance de formação na Antiguidade”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Câmpus de Araraquara, visando à obtenção do título de Mestre em Estudos Literários Orientadora: Profa. Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti Linha de Pesquisa: Teoria e Crítica da Narrativa. Bolsa: FAPESP). Araraquara, 2011.

03/08/2015

A República que a Revolução destruiu, de Sertório de Castro

Para baixar o livro, clique na imagem e selecione-o em: 
http://www.projetolivrolivre.com/
---
Disponível também em "Minhateca", no link abaixo:


---

Bailes revolucionários
“Baile na ilha Fiscal — Perdeu-se uma corrente de ouro com os hábitos do Cruzeiro e Rosa, e duas medalhas de campanha. Pede-se à pessoa que o achou o favor de entregar no escritório desta folha”.
Gente honesta, a daquele tempo! Nem ao menos vigorava ainda a prática, que no correr dos anos deveria tornar-se usual, de fazer acompanhar — ainda assim inutilmente — anúncios desta natureza da promessa de uma gratificação.
Dever-se-ia presumir, é certo, que entre os convivas de um baile como aquele, não haveria quem fosse capaz de achar uma jóia qualquer e guardá-la cautelosamente para si, forçando depois a polícia, em suas diligências para encontrá-la e restituí-la a seu dono, a fazer uma visita meticulosa a todas as casas de penhores da cidade...
Mas também — que diabo! — a gente que uns quarenta anos depois frequentava os bailes do Copacabana Palace Hotel e de outros grandes centros sociais não era menos honesta, nem menos distinta, e no entanto...
Não sei se a jóia foi restituída. Não havia, nas gazetas daquela época, uma seção consagrada a noticiários de natureza tão íntima, e para saber que do pescoço de um nobre do império, condecorado com as insígnias do Cruzeiro e da Rosa, havia-se desprendido aquela corrente preciosa cuja restituição tanto o inquietava, tive que pousar um olhar pesquisador na coleção amarelecida do “Jornal do Commercio” do mês de novembro de 1889.
Era do dia 12.
Os jornais velhos, que guardamos nas nossas gavetas e prateleiras, ou que buscamos um dia para satisfazer uma curiosidade ou avivar uma reminiscência, nos arquivos e nas bibliotecas, são como páginas de nossa própria existência que já viramos e ficam por aí, sofrendo como nós as pungentes transformações fisionômicas produzidas pela ação inexorável do tempo, para nos gritarem sempre, ainda que seja apenas aos nossos ouvidos, o número exato de anos que contamos...
Naquele ano eu aspirava o incenso das novenas e das missas conventuais, e inebriava-me com o aroma do rosmaninho que meus pés trituravam nas naves das igrejas de minha amada cidadezinha mineira, pelas festas da Semana Santa. Aprendia latim e vivia, lá longe, ardendo na tentação pertinaz que sobre meu espírito e sobre meus sonhos juvenis exercia o Rio de Janeiro, onde reinava S. M. o Imperador D. Pedro II.
Eu ainda não sabia bem o que era ser republicano. Tinha, no entanto, a idéia de que havia de ser alguma coisa de muito grave e de muito sério. Só não chegava a pensar que pudesse ser um crime porque meu pai era republicano. E eu, que bem lhe conhecia o caráter e a austeridade, não o reputava sequer capaz de poder ser um delinquente. Tinha paixão pela idéia. E lá havia, também, uma meia dúzia de homens respeitados e estimados por toda a população, que partilhavam do mesmo credo político.
E foi sob a influência daquele ambiente que eu comecei a cortar da “Revista Ilustrada” de Ângelo Agostini — a crônica caricatural mais interessante dos vultos e das coisas da política que já tem existido no Brasil — as figuras de republicanos como Quintino Bocaiúva, Saldanha Marinho, Rangel Pestana, Francisco Glicério, para as ir pregando nas paredes da oficina onde ele tinha sua pequena indústria. E todos aqueles republicanos da cidade que o iam visitar sempre, para com ele trocarem idéias e impressões, e comentar os artigos de Quintino no “Paiz” — único jornal que assinava e lia — deleitavam-se com a minha galeria. Punham os óculos diante dela, examinavam-na com interesse, comentavam-na, sorriam.
Eu completava aquela homenagem à idéia republicana e aos sentimentos do grupo de homens austeros da cidade — um dos quais tomava rapé, abrindo com uma pancada na mão espalmada uma boceta de ouro, e tirando do bolso traseiro da sobrecasaca um lenço de alcobaça para se assoar com estrépito — decorando pacientemente a longa e exaustiva poesia heróica “O cura Santa Cruz”, em que Gonçalves Crespo descreve com o mais intenso colorido a figura sinistra do implacável guerrilheiro carlista que incendiava a Navarra com os horrores da guerra, levando-lhe do sul ao norte “o ódio, a perseguição, o incêndio, o estrago, a morte”, e que um dia varou tranquilamente o crânio de um jovem soldado somente porque este, recusando-se a ajoelhar-se diante do pendão realista, e a secundá-lo no brado “— Viva el Rei!” que erguia diante de suas tropas, declarou-lhe resolutamente: “... ao teu rei não me curvo! Eu sou republicano!”
A arte da declamação ainda não era, sequer, uma vaga ameaça da calamidade social que deveria ser num futuro felizmente ainda muito distante. Estava ainda muito afastada a simples hipótese da aparição da Sra. Bertha Singerman — a mais contagiosa de quantas mulheres eu deveria conhecer um dia — no horizonte das artes artificiais.
Do que eu nunca perdi a memória, porém, foi do pungente momento em que tive de parar no meio do recitativo, com uma senhora gorda tocando a “Dalila” ao piano, e o salão em que eu fazia a ousada tentativa declamadora cheio de meninas da cidade... Eu havia esquecido o resto!
Chegou um dia à minha S. João d’El-Rei o propagandista audaz cujo nome enchia naquele tempo o Brasil. Acabava de praticar uma verdadeira façanha a que os jornais consagravam comentários variados. Sabendo que S. A. o conde d’Eu — o marido da princesa Izabel a quem se atribuía a prática de atos de pouca humanidade como despejar sem nenhuma tolerância os inquilinos dos cortiços de sua propriedade que não estivessem em dia com os aluguéis — estava para empreender uma viagem ao norte, tomou passagem no mesmo navio, e foi por aí afora, em sua companhia, num desafio insólito, pregando, em conferências que fizeram época, o ideal de que se constituíra apóstolo.
Silva Jardim deveria guardar, em toda sua agitada e dramática existência, motivos para nunca mais esquecer-se de sua visita à minha bela cidade, onde canta uma canção nostálgica um riozinho manso e cristalino, que rola num leito de areias brancas por baixo de duas pontes venerandas, e onde se erguem aqueles monumentos de arquitetura colonial que são as igrejas buriladas no granito pelo gênio do Aleijadinho.
É que a minha cidade, que sendo tão pequena encerra dentro de seu seio recordações tão grandes, perdeu naquele dia o governo de si mesma. Esqueceu, lamentavelmente, a tradição de sua encantadora hospitalidade, e não pensou que ia, com seu ato quase selvagem, comprometer gravemente a nomeada, que em toda Minas havia conquistado, de ser um de seus centros sociais mais interessantes, primando pelas boas maneiras, pela cordura e pela boa educação, e sendo, como era, além do mais, profundamente religiosa.
Ou seria esta última razão que a levou a proceder tão mal com seu hóspede, uma vez que a religião, as autoridades eclesiásticas, os padres em geral, combatiam com tenacidade a idéia republicana, procurando fortalecer com todo o seu apoio o trono contra o qual ela investia?
O padre João Manuel havia escandalizado a classe respeitável a que pertencia, lançando numa sessão da antiga Assembléia Geral, naqueles dias, sua ruidosa exclamação: “Abaixo a monarquia e viva a República!”
Silva Jardim não conseguiu realizar sua conferência em S. João d’El Rei. O hotel onde se hospedara — gênero de comércio que não fazia, naquele tempo, na minha querida cidade, a fortuna de ninguém, porque não o permitiam os excessos de sua hospitalidade, abrindo todas as suas casas aos visitantes que de outros lugares a buscavam — foi cercado por uma multidão exaltada que vaiava com estrépito o tribuno, num estranho concerto de assobios e latas vazias. Todas as portas e janelas haviam sido fechadas. Os vidros eram reduzidos a estilhaços pela chuva de projéteis que caía sobre a fachada do sobrado. Os republicanos que se achavam lá dentro, cercando o propagandista, sentiam a iminência de um ataque de consequências mais sérias, e nada podiam fazer para evitá-lo.
A exaltação, que chegara ao seu paroxismo, já havia sugerido à turba a idéia demoníaca de lançar fogo ao hotel. E já uns panos embebidos em querosene estavam sendo postos, para esse fim, junto à porta da entrada, quando um sacerdote varou resolutamente a multidão, e num gesto cheio de enérgica decisão anulou os preparativos do atentado selvagem. Era o padre João de Castro, um apóstolo, um justo, um bom, que durante toda sua existência, tão serena e tão calma, deveria entregar-se ao mister elevado de ensinar a juventude num colégio que era também um asilo, transmitindo-lhe seu saber, a soma de seus conhecimentos, a graça de seu espírito e as belezas de sua inteligência, sem outro interesse senão o de fazer o bem...
Evitou que o hotel fosse incendiado e conseguiu, com uma mediação suasória e cheia de autoridade, que Silva Jardim pudesse sair, na madrugada do dia seguinte, para ir tomar o trem em que deveria prosseguir em sua peregrinação corajosa, em sua missão de semeador do ideal democrático...
Mas como teria corrido aquele baile onde um fidalgo da corte, que era também, por certo, um bravo soldado que conquistara na campanha do Paraguai, contra o inimigo estrangeiro, as medalhas que faziam companhia às insígnias honoríficas daquelas duas ordens, perdeu tão preciosa jóia?
Fora num sábado — 9 de novembro. Três dias antes do anúncio.
O “Jornal do Commercio”, procurando satisfazer com uma profusão de minúcias digna de nota o interesse com que a sociedade deveria estar esperando a crônica do grande acontecimento, narrava em sua edição de segunda-feira o que fora o baile. E como a vaidade e o exibicionismo ainda não dominavam tanto naquele tempo, detinha-se muito mais o noticiário na descrição da ilha do que no registro de nomes ou nas indicações dos trajes com que compareceram ao baile as damas da aristocracia carioca. Também não é fácil afirmar, numa fiel reprodução histórica, se já estava em moda a prática de pedir convites para as festas daquela época...
O baile era uma homenagem do governo imperial à República do Chile. Estava ancorado no porto o encouraçado chileno “Cockrane”, e a grande demonstração visava seu comandante e oficialidade.
Reproduzamos a descrição da ilha Fiscal naquela noite festiva. Era de êxtase a impressão que produzia a vista daquele grande foco de luz. Destacava-se na baía a ilha fantástica, iluminada por milhares de luzes e fogos cambiantes, refletindo em vidros de variadíssimas cores, batida constantemente pelos jatos da luz elétrica projetada dos encouraçados “Cockrane”, “Riachuelo” e “Aquidaban”. Da torre do edifício fiscal um poderoso holofote projetava sobre o mar e em terra uma luz da intensidade de 60.000 velas. “Impossível descrever o mágico encanto que ofereciam a ilha, os encouraçados, as lanchas e botes sem conta com fachos iluminativos que coalhavam o mar e cruzavam em todas as direções”. A barca “Ferry”, que conduzia os convidados, estava garbosamente enfeitada e iluminada “a giorno”, o cais Pharoux repleto de povo. Tocava aí a banda de música do Corpo Policial do Rio de Janeiro em grande uniforme. Às 8 1/2 partia a “Primeira”, fazendo depois cinco viagens, e chegando à ilha Fiscal, na última, às 11 1/2. Havia conduzido cerca de quatro mil pessoas, número aumentado pelas que tinham ido em outras embarcações.
SS. MM. Imperiais dirigiram-se para a ilha na barca que partiu às 9 1/2, e SS. AA. a Sra. Condessa e o Sr. Conde d’Eu na seguinte, que deixou o cais pouco depois das 10 horas.
A ilha estava deslumbrante. “Em volta, número avultado de bandeiras chilenas e brasileiras em mastros e hastes, e nas janelas, portas do edifício, terraços, pátio, e dependência, número extraordinário de lanternas venezianas de variadíssimas cores e feitios. Em frente ao cais de desembarque destacava-se um lindo bosque”. Nunca se havia visto festa igual! Dançava-se em seis salas. As duas maiores eram forradas de tapetes encarnados, e estavam ornadas com bandeiras chilenas e brasileiras. As quatro menores estavam mais simplesmente ornadas, mas também com muito gosto. “Nelas havia festões, coroas, âncoras de flores e ornatos”. Todas as portas e janelas tinham preciosíssimas cortinas. A sala reservada à Família Imperial, “e em cujas portas havia amplas cortinas, estava ricamente mobiliada, luxuosamente ornada e profusamente iluminada”. “Havia no interior do edifício bem servido “bufet”. Todo o serviço de iluminação “a giorno” e elétrica foi muito bem feito pela casa Leon Rodde. Era superior a 10.000 o número de lampiões venezianos e copos de cores”. “Era avultadíssimo o número de senhoras, ostentando umas riquíssimas e luxuosas toilettes”. (Indicação de ordem geral que deveria inspirar as particularidades das crônicas futuras). O imperador — não o relata o jornal, mas convidados do festim — passeou durante muito tempo no salão, de um lado para outro, apresentando-lhe nessa ocasião o visconde de Ouro Preto os novos deputados, recentemente reconhecidos. Figurava entre estes, contando 27 anos de idade, o representante do Espírito Santo, Sr. Moniz Freire, que iniciava sua carreira política. Suas Majestades e Altezas retiraram-se pouco depois de meia-noite, “tendo penhorado os nossos hóspedes pela afabilidade e delicadeza com que os trataram”. S. A. o príncipe D. Pedro, que tinha ido com Suas Majestades — jovem e belo, como o mostravam as fotografias — demorou-se ainda algum tempo. “O cardápio era variadíssimo (o decano já não usava a palavra “menu”, preferindo o neologismo de Castro Lopes) e havia em profusão as mais delicadas iguarias”.
Ao servir-se o champagne, o visconde de Ouro Preto, presidente do Conselho, recordou os serviços prestados ao Brasil pelo almirante Cockrane, dirigindo-se depois “em termos os mais afetuosos” ao ministro e oficiais da nação amiga, “levantando um viva à República do Chile”. O comandante Bannem respondeu à saudação, “mostrando-se grato e reconhecido pelas gentilezas dispensadas”. Eram 6 horas da manhã quando se retiraram os últimos convidados da memorável festa, “impossível de descrever com minúcias pela sua invejável grandiosidade”. Foi seu organizador o barão de Sampaio Viana “que depois a entregou ao Sr. Comendador Hasselmann”.
Não registra o grande órgão que naquela mesma noite, enquanto a corte, o governo e a sociedade dançavam na ilha Fiscal, estavam reunidos secretamente no Club Militar os chefes e organizadores de uma outra grande festa — essa de natureza cívica — que seis dias depois deveria realizar-se no campo de Sant’Ana.
O baile terminara na madrugada de 10 de novembro. A l.° de novembro ocorria a revolução que substituía o império pela república.
9 de agosto de 1930. Baile no palácio Itamarati. Festa deslumbrante. Nenhum anúncio de jóia perdida no dia seguinte... Inauguravam-se as novas dependências, e o palácio da rua Marechal Floriano Peixoto apresentava aspectos empolgantes. Cerca de cinco mil convivas para ali se transportaram em automóveis de todas as marcas. Alguns até em táxis e em máquinas já fora da moda... Haviam sido impressos apenas dois mil convites, mas a necessidade de atender aos pedidos teve de elevar esse número para mais do dobro. À cerimônia da inauguração haviam comparecido, à tarde, S. Ex. o Sr. Washington Luís, presidente da República, ministros, altas autoridades, membros do corpo diplomático, deputados e senadores. Entre os convivas do baile achava-se um ancião de nobre aspecto, trazendo cruzado sobre a alvura do peitilho da camisa, um fitão vermelho e branco. Insígnia honorífica que ninguém procurou saber o que era. Admirável democracia que acolhia numa de suas festas — das mais brilhantes e suntuosas de quantas se realizaram nos últimos tempos no Rio de Janeiro — entre suas autoridades, e como hóspede do ministro das Relações Exteriores, o Sr. Otávio Mangabeira, o último dos netos do imperador deposto a 15 de novembro — o príncipe D. Pedro de Orleans e Bragança, cercado de todas as deferências a que tinha direito pelo seu passado e por sua antiga hierarquia.
S. A. demorou-se, dessa vez, muito mais do que no baile da ilha Fiscal, tendo-lhe sido reservado um lugar na mesa especial destinada às altas autoridades, em que pouco depois de l hora era servida a lauta ceia oficial no salão da Biblioteca, recentemente inaugurado. Para os outros convidados havia um profuso e bem servido “bufet”. Os jornais oposicionistas consagravam uma referência especial, na crônica desse baile, à abundância do champagne que ali se havia consumido.
Festa deslumbrante, também difícil de descrever! Nos inúmeros e amplos salões, decorados com requinte de gosto e de arte, correram animadas as danças até de madrugada.
Madrugada de 10 de agosto. Cinquenta e três dias depois, a 3 de outubro, o Rio Grande do Sul, Minas Gerais e a Paraíba do Norte, com seus governos, suas polícias militares, seus tesouros, e dizem que também com suas populações, desencadeavam no país a revolução que deveria destruir a República constitucional, depondo o Sr. Washington Luís, o regime da lei e a ordem jurídica dominantes...
Registremos, na crônica desses fatos, a influência, ou a simples coincidência desses dois bailes no destino.
Aqui, não é somente a história que se repete. São também os bailes. Bailes revolucionários!

[Capítulo do Livro]