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Bailes revolucionários
“Baile na ilha Fiscal — Perdeu-se uma corrente de ouro com os hábitos do
Cruzeiro e Rosa, e duas medalhas de campanha. Pede-se à pessoa que o achou o
favor de entregar no escritório desta folha”.
Gente
honesta, a daquele tempo! Nem ao menos vigorava ainda a prática, que no correr
dos anos deveria tornar-se usual, de fazer acompanhar — ainda assim inutilmente
— anúncios desta natureza da promessa de uma gratificação.
Dever-se-ia
presumir, é certo, que entre os convivas de um baile como aquele, não haveria
quem fosse capaz de achar uma jóia qualquer e guardá-la cautelosamente para si,
forçando depois a polícia, em suas diligências para encontrá-la e restituí-la a
seu dono, a fazer uma visita meticulosa a todas as casas de penhores da
cidade...
Mas
também — que diabo! — a gente que uns quarenta anos depois frequentava os
bailes do Copacabana Palace Hotel e de outros grandes centros sociais não era
menos honesta, nem menos distinta, e no entanto...
Não
sei se a jóia foi restituída. Não havia, nas gazetas daquela época, uma seção
consagrada a noticiários de natureza tão íntima, e para saber que do pescoço de
um nobre do império, condecorado com as insígnias do Cruzeiro e da Rosa,
havia-se desprendido aquela corrente preciosa cuja restituição tanto o
inquietava, tive que pousar um olhar pesquisador na coleção amarelecida do
“Jornal do Commercio” do mês de novembro de 1889.
Era
do dia 12.
Os
jornais velhos, que guardamos nas nossas gavetas e prateleiras, ou que buscamos
um dia para satisfazer uma curiosidade ou avivar uma reminiscência, nos
arquivos e nas bibliotecas, são como páginas de nossa própria existência que já
viramos e ficam por aí, sofrendo como nós as pungentes transformações
fisionômicas produzidas pela ação inexorável do tempo, para nos gritarem
sempre, ainda que seja apenas aos nossos ouvidos, o número exato de anos que
contamos...
Naquele
ano eu aspirava o incenso das novenas e das missas conventuais, e inebriava-me
com o aroma do rosmaninho que meus pés trituravam nas naves das igrejas de
minha amada cidadezinha mineira, pelas festas da Semana Santa. Aprendia latim e
vivia, lá longe, ardendo na tentação pertinaz que sobre meu espírito e sobre
meus sonhos juvenis exercia o Rio de Janeiro, onde reinava S. M. o Imperador D.
Pedro II.
Eu
ainda não sabia bem o que era ser republicano. Tinha, no entanto, a idéia de
que havia de ser alguma coisa de muito grave e de muito sério. Só não chegava a
pensar que pudesse ser um crime porque meu pai era republicano. E eu, que bem
lhe conhecia o caráter e a austeridade, não o reputava sequer capaz de poder
ser um delinquente. Tinha paixão pela idéia. E lá havia, também, uma meia dúzia
de homens respeitados e estimados por toda a população, que partilhavam do
mesmo credo político.
E
foi sob a influência daquele ambiente que eu comecei a cortar da “Revista
Ilustrada” de Ângelo Agostini — a crônica caricatural mais interessante dos
vultos e das coisas da política que já tem existido no Brasil — as figuras de republicanos
como Quintino Bocaiúva, Saldanha Marinho, Rangel Pestana, Francisco Glicério,
para as ir pregando nas paredes da oficina onde ele tinha sua pequena
indústria. E todos aqueles republicanos da cidade que o iam visitar sempre,
para com ele trocarem idéias e impressões, e comentar os artigos de Quintino no
“Paiz” — único jornal que assinava e lia — deleitavam-se com a minha galeria.
Punham os óculos diante dela, examinavam-na com interesse, comentavam-na,
sorriam.
Eu
completava aquela homenagem à idéia republicana e aos sentimentos do grupo de
homens austeros da cidade — um dos quais tomava rapé, abrindo com uma pancada
na mão espalmada uma boceta de ouro, e tirando do bolso traseiro da sobrecasaca
um lenço de alcobaça para se assoar com estrépito — decorando pacientemente a
longa e exaustiva poesia heróica “O cura Santa Cruz”, em que Gonçalves Crespo
descreve com o mais intenso colorido a figura sinistra do implacável
guerrilheiro carlista que incendiava a Navarra com os horrores da guerra,
levando-lhe do sul ao norte “o ódio, a perseguição, o incêndio, o estrago, a
morte”, e que um dia varou tranquilamente o crânio de um jovem soldado somente
porque este, recusando-se a ajoelhar-se diante do pendão realista, e a
secundá-lo no brado “— Viva el Rei!” que erguia diante de suas tropas,
declarou-lhe resolutamente: “... ao teu rei não me curvo! Eu sou republicano!”
A
arte da declamação ainda não era, sequer, uma vaga ameaça da calamidade social
que deveria ser num futuro felizmente ainda muito distante. Estava ainda muito
afastada a simples hipótese da aparição da Sra. Bertha Singerman — a mais
contagiosa de quantas mulheres eu deveria conhecer um dia — no horizonte das
artes artificiais.
Do
que eu nunca perdi a memória, porém, foi do pungente momento em que tive de
parar no meio do recitativo, com uma senhora gorda tocando a “Dalila” ao piano,
e o salão em que eu fazia a ousada tentativa declamadora cheio de meninas da
cidade... Eu havia esquecido o resto!
Chegou
um dia à minha S. João d’El-Rei o propagandista audaz cujo nome enchia naquele
tempo o Brasil. Acabava de praticar uma verdadeira façanha a que os jornais
consagravam comentários variados. Sabendo que S. A. o conde d’Eu — o marido da
princesa Izabel a quem se atribuía a prática de atos de pouca humanidade como
despejar sem nenhuma tolerância os inquilinos dos cortiços de sua propriedade
que não estivessem em dia com os aluguéis — estava para empreender uma viagem
ao norte, tomou passagem no mesmo navio, e foi por aí afora, em sua companhia,
num desafio insólito, pregando, em conferências que fizeram época, o ideal de
que se constituíra apóstolo.
Silva
Jardim deveria guardar, em toda sua agitada e dramática existência, motivos
para nunca mais esquecer-se de sua visita à minha bela cidade, onde canta uma
canção nostálgica um riozinho manso e cristalino, que rola num leito de areias
brancas por baixo de duas pontes venerandas, e onde se erguem aqueles
monumentos de arquitetura colonial que são as igrejas buriladas no granito pelo
gênio do Aleijadinho.
É que
a minha cidade, que sendo tão pequena encerra dentro de seu seio recordações
tão grandes, perdeu naquele dia o governo de si mesma. Esqueceu,
lamentavelmente, a tradição de sua encantadora hospitalidade, e não pensou que
ia, com seu ato quase selvagem, comprometer gravemente a nomeada, que em toda
Minas havia conquistado, de ser um de seus centros sociais mais interessantes,
primando pelas boas maneiras, pela cordura e pela boa educação, e sendo, como
era, além do mais, profundamente religiosa.
Ou
seria esta última razão que a levou a proceder tão mal com seu hóspede, uma vez
que a religião, as autoridades eclesiásticas, os padres em geral, combatiam com
tenacidade a idéia republicana, procurando fortalecer com todo o seu apoio o
trono contra o qual ela investia?
O
padre João Manuel havia escandalizado a classe respeitável a que pertencia,
lançando numa sessão da antiga Assembléia Geral, naqueles dias, sua ruidosa
exclamação: “Abaixo a monarquia e viva a República!”
Silva
Jardim não conseguiu realizar sua conferência em S. João d’El Rei. O hotel onde
se hospedara — gênero de comércio que não fazia, naquele tempo, na minha
querida cidade, a fortuna de ninguém, porque não o permitiam os excessos de sua
hospitalidade, abrindo todas as suas casas aos visitantes que de outros lugares
a buscavam — foi cercado por uma multidão exaltada que vaiava com estrépito o
tribuno, num estranho concerto de assobios e latas vazias. Todas as portas e
janelas haviam sido fechadas. Os vidros eram reduzidos a estilhaços pela chuva de
projéteis que caía sobre a fachada do sobrado. Os republicanos que se achavam
lá dentro, cercando o propagandista, sentiam a iminência de um ataque de
consequências mais sérias, e nada podiam fazer para evitá-lo.
A
exaltação, que chegara ao seu paroxismo, já havia sugerido à turba a idéia
demoníaca de lançar fogo ao hotel. E já uns panos embebidos em querosene
estavam sendo postos, para esse fim, junto à porta da entrada, quando um
sacerdote varou resolutamente a multidão, e num gesto cheio de enérgica decisão
anulou os preparativos do atentado selvagem. Era o padre João de Castro, um
apóstolo, um justo, um bom, que durante toda sua existência, tão serena e tão
calma, deveria entregar-se ao mister elevado de ensinar a juventude num colégio
que era também um asilo, transmitindo-lhe seu saber, a soma de seus
conhecimentos, a graça de seu espírito e as belezas de sua inteligência, sem
outro interesse senão o de fazer o bem...
Evitou
que o hotel fosse incendiado e conseguiu, com uma mediação suasória e cheia de
autoridade, que Silva Jardim pudesse sair, na madrugada do dia seguinte, para
ir tomar o trem em que deveria prosseguir em sua peregrinação corajosa, em sua
missão de semeador do ideal democrático...
Mas
como teria corrido aquele baile onde um fidalgo da corte, que era também, por
certo, um bravo soldado que conquistara na campanha do Paraguai, contra o
inimigo estrangeiro, as medalhas que faziam companhia às insígnias honoríficas
daquelas duas ordens, perdeu tão preciosa jóia?
Fora
num sábado — 9 de novembro. Três dias antes do anúncio.
O
“Jornal do Commercio”, procurando satisfazer com uma profusão de minúcias digna
de nota o interesse com que a sociedade deveria estar esperando a crônica do
grande acontecimento, narrava em sua edição de segunda-feira o que fora o
baile. E como a vaidade e o exibicionismo ainda não dominavam tanto naquele
tempo, detinha-se muito mais o noticiário na descrição da ilha do que no
registro de nomes ou nas indicações dos trajes com que compareceram ao baile as
damas da aristocracia carioca. Também não é fácil afirmar, numa fiel reprodução
histórica, se já estava em moda a prática de pedir convites para as festas
daquela época...
O
baile era uma homenagem do governo imperial à República do Chile. Estava
ancorado no porto o encouraçado chileno “Cockrane”, e a grande demonstração
visava seu comandante e oficialidade.
Reproduzamos
a descrição da ilha Fiscal naquela noite festiva. Era de êxtase a impressão que
produzia a vista daquele grande foco de luz. Destacava-se na baía a ilha fantástica,
iluminada por milhares de luzes e fogos cambiantes, refletindo em vidros de
variadíssimas cores, batida constantemente pelos jatos da luz elétrica
projetada dos encouraçados “Cockrane”, “Riachuelo” e “Aquidaban”. Da torre do
edifício fiscal um poderoso holofote projetava sobre o mar e em terra uma luz
da intensidade de 60.000 velas. “Impossível descrever o mágico encanto que
ofereciam a ilha, os encouraçados, as lanchas e botes sem conta com fachos
iluminativos que coalhavam o mar e cruzavam em todas as direções”. A barca
“Ferry”, que conduzia os convidados, estava garbosamente enfeitada e iluminada
“a giorno”, o cais Pharoux repleto de povo. Tocava aí a banda de música do
Corpo Policial do Rio de Janeiro em grande uniforme. Às 8 1/2 partia a “Primeira”,
fazendo depois cinco viagens, e chegando à ilha Fiscal, na última, às 11 1/2.
Havia conduzido cerca de quatro mil pessoas, número aumentado pelas que tinham
ido em outras embarcações.
SS.
MM. Imperiais dirigiram-se para a ilha na barca que partiu às 9 1/2, e SS. AA.
a Sra. Condessa e o Sr. Conde d’Eu na seguinte, que deixou o cais pouco depois
das 10 horas.
A
ilha estava deslumbrante. “Em volta, número avultado de bandeiras chilenas e
brasileiras em mastros e hastes, e nas janelas, portas do edifício, terraços,
pátio, e dependência, número extraordinário de lanternas venezianas de
variadíssimas cores e feitios. Em frente ao cais de desembarque destacava-se um
lindo bosque”. Nunca se havia visto festa igual! Dançava-se em seis salas. As
duas maiores eram forradas de tapetes encarnados, e estavam ornadas com
bandeiras chilenas e brasileiras. As quatro menores estavam mais simplesmente
ornadas, mas também com muito gosto. “Nelas havia festões, coroas, âncoras de
flores e ornatos”. Todas as portas e janelas tinham preciosíssimas cortinas. A
sala reservada à Família Imperial, “e em cujas portas havia amplas cortinas,
estava ricamente mobiliada, luxuosamente ornada e profusamente iluminada”.
“Havia no interior do edifício bem servido “bufet”. Todo o serviço de
iluminação “a giorno” e elétrica foi muito bem feito pela casa Leon Rodde. Era
superior a 10.000 o número de lampiões venezianos e copos de cores”. “Era
avultadíssimo o número de senhoras, ostentando umas riquíssimas e luxuosas toilettes”.
(Indicação de ordem geral que deveria inspirar as particularidades das crônicas
futuras). O imperador — não o relata o jornal, mas convidados do festim —
passeou durante muito tempo no salão, de um lado para outro, apresentando-lhe
nessa ocasião o visconde de Ouro Preto os novos deputados, recentemente
reconhecidos. Figurava entre estes, contando 27 anos de idade, o representante
do Espírito Santo, Sr. Moniz Freire, que iniciava sua carreira política. Suas
Majestades e Altezas retiraram-se pouco depois de meia-noite, “tendo penhorado
os nossos hóspedes pela afabilidade e delicadeza com que os trataram”. S. A. o
príncipe D. Pedro, que tinha ido com Suas Majestades — jovem e belo, como o
mostravam as fotografias — demorou-se ainda algum tempo. “O cardápio era
variadíssimo (o decano já não usava a palavra “menu”, preferindo o neologismo
de Castro Lopes) e havia em profusão as mais delicadas iguarias”.
Ao
servir-se o champagne, o visconde de Ouro Preto, presidente do Conselho,
recordou os serviços prestados ao Brasil pelo almirante Cockrane, dirigindo-se
depois “em termos os mais afetuosos” ao ministro e oficiais da nação amiga,
“levantando um viva à República do Chile”. O comandante Bannem respondeu à
saudação, “mostrando-se grato e reconhecido pelas gentilezas dispensadas”. Eram
6 horas da manhã quando se retiraram os últimos convidados da memorável festa,
“impossível de descrever com minúcias pela sua invejável grandiosidade”. Foi
seu organizador o barão de Sampaio Viana “que depois a entregou ao Sr.
Comendador Hasselmann”.
Não
registra o grande órgão que naquela mesma noite, enquanto a corte, o governo e
a sociedade dançavam na ilha Fiscal, estavam reunidos secretamente no Club
Militar os chefes e organizadores de uma outra grande festa — essa de natureza
cívica — que seis dias depois deveria realizar-se no campo de Sant’Ana.
O
baile terminara na madrugada de 10 de novembro. A l.° de novembro ocorria a
revolução que substituía o império pela república.
9 de
agosto de 1930. Baile no palácio Itamarati. Festa deslumbrante. Nenhum anúncio
de jóia perdida no dia seguinte... Inauguravam-se as novas dependências, e o
palácio da rua Marechal Floriano Peixoto apresentava aspectos empolgantes.
Cerca de cinco mil convivas para ali se transportaram em automóveis de todas as
marcas. Alguns até em táxis e em máquinas já fora da moda... Haviam sido
impressos apenas dois mil convites, mas a necessidade de atender aos pedidos
teve de elevar esse número para mais do dobro. À cerimônia da inauguração
haviam comparecido, à tarde, S. Ex. o Sr. Washington Luís, presidente da
República, ministros, altas autoridades, membros do corpo diplomático,
deputados e senadores. Entre os convivas do baile achava-se um ancião de nobre
aspecto, trazendo cruzado sobre a alvura do peitilho da camisa, um fitão vermelho
e branco. Insígnia honorífica que ninguém procurou saber o que era. Admirável
democracia que acolhia numa de suas festas — das mais brilhantes e suntuosas de
quantas se realizaram nos últimos tempos no Rio de Janeiro — entre suas
autoridades, e como hóspede do ministro das Relações Exteriores, o Sr. Otávio
Mangabeira, o último dos netos do imperador deposto a 15 de novembro — o
príncipe D. Pedro de Orleans e Bragança, cercado de todas as deferências a que
tinha direito pelo seu passado e por sua antiga hierarquia.
S.
A. demorou-se, dessa vez, muito mais do que no baile da ilha Fiscal, tendo-lhe
sido reservado um lugar na mesa especial destinada às altas autoridades, em que
pouco depois de l hora era servida a lauta ceia oficial no salão da Biblioteca,
recentemente inaugurado. Para os outros convidados havia um profuso e bem
servido “bufet”. Os jornais oposicionistas consagravam uma referência especial,
na crônica desse baile, à abundância do champagne que ali se havia consumido.
Festa
deslumbrante, também difícil de descrever! Nos inúmeros e amplos salões,
decorados com requinte de gosto e de arte, correram animadas as danças até de
madrugada.
Madrugada
de 10 de agosto. Cinquenta e três dias depois, a 3 de outubro, o Rio Grande do
Sul, Minas Gerais e a Paraíba do Norte, com seus governos, suas polícias
militares, seus tesouros, e dizem que também com suas populações, desencadeavam
no país a revolução que deveria destruir a República constitucional, depondo o
Sr. Washington Luís, o regime da lei e a ordem jurídica dominantes...
Registremos,
na crônica desses fatos, a influência, ou a simples coincidência desses dois
bailes no destino.
Aqui,
não é somente a história que se repete. São também os bailes. Bailes
revolucionários!
[Capítulo do Livro]
[Capítulo do Livro]
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