20/11/2014

Odisseia (Completo), de Homero

 Odisseia, de Homero
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A tradicional “Questão Homérica”

As lacunas de informação que caracterizam todo o tratamento acadêmico acerca de Homero formaram um terreno propício para inúmeros debates. Uma série de perguntas surgiu a partir dos trabalhos de Friedrich August Wolff (1795): A Ilíada e a Odisseia são obras de um único autor? Que condições influenciaram sua composição? Há um núcleo original da Ilíada e da Odisseia a partir do qual se originou um poema maior? Qual a relação entre a Ilíada e a Odisseia? A que tempo histórico se referem os épicos?

A chamada Questão Homérica emerge assim como um termo que sintetiza esta série de questionamentos. Para Frank Turner, a crítica homérica constituiu um terreno onde a academia filológica podia exibir suas técnicas para transformar duas das obras mais monumentais da literatura européia em um objeto de análise acadêmica (TURNER, 1997, p. 123 apud MORRIS, 2007, p. 150-151). Das várias direções interpretativas produzidas, duas questões foram gradualmente assumindo preeminência.

A primeira é a indagação acerca do percurso trilhado pelos épicos para terem atingido a
forma atualmente conhecida, e a segunda se refere ao período histórico a que os poemas fazem menção.

Obviamente, nenhuma destas questões está próxima de um consenso e, a menos que surja uma improvável evidência arqueológica, este quadro tende à inalterabilidade. O principal impeditivo é que as primeiras informações sobre a autoria dos poemas são muito distantes da época provável de sua composição. Conforme assinala Martin West, a crença a respeito de Homero como autor da Ilíada e da Odisseia  “deve ter sido estabelecida por volta de 520 a.C., quando Hiparco instituiu recitações regulares destes dois épicos (e apenas destes dois), como uma característica das Grandes Panateneias em Atenas. Esse é o dado mais distante que podemos rastrear. Assim, desde o tempo de composição dos poemas há um hiato de um século ou um século e meio, durante os quais não temos nenhuma evidência a respeito de quem, se alguém, foi considerado o autor dos épicos” (WEST, 1999, p. 364)

Mesmo que a data provável da associação de Homero ao enredo da Ilíada e da Odisseia seja o século VI a.C., as marcas de sociedades bem mais antigas são plenamente observáveis nos épicos, fato facilmente comprovado pela arqueologia. Esta comprovação foi suficiente para que, desde o século XVIII, “a crença milenar no poeta de gênio, autor das mais antigas e celebradas epopeias até então conhecidas no Ocidente” fosse dissipada “pela comprovação de que a Ilíada e a Odisseia eram cristalizações anônimas e coletivas de uma tradição épica oral florescente nos primórdios da história grega” (LACERDA, 2003, p. 33). Entretanto, os modos pelos quais tais poemas chegaram ao formato conhecido são duvidosos e plenamente suscetíveis a especulações.

 A situação teve um revés quando foram publicados, a partir da década de 1930, uma série de estudos de Milman Parry e Albert Lord. Nenhum outro trabalho produziu tantas mudanças no âmbito da homerologia. As análises foram baseadas nos epítetos utilizados pelo poeta para designar as características das principais personagens. Percebeu-se que cada personagem dispunha de uma série deles, e o critério de sua escolha era basicamente a adequação à métrica dos hexâmetros dactílicos. O mesmo ocorria com frases inteiras que se repetiam em descrições recorrentes. Comparando esta percepção às pesquisas realizadas com bardos da Iugoslávia, que igualmente adequavam um vasto repertório tradicional a uma forma específica de narração, a Tese Parry-Lord foi decisiva para o estabelecimento de algumas conclusões que alteraram drasticamente as interpretações ulteriores:

 1 – Este sistema complexo de fórmulas não poderia, definitivamente, ser obra de apenas um indivíduo, mas sim de um esforço coletivo de uma série de poetas que foram transmitindo o método e adequando suas características ao longo do tempo;
 2 – A poesia homérica, de modo similar àquela praticada pelos guslari iugoslavos, só podia ser admitida como sendo uma poesia oral tradicional, afastando a influência da escrita sobre a comunicação e transmissão dos épicos;
 3 – As inconsistências dos poemas passaram a ser entendidas como resultado da performance dos poetas, já que o texto oralizado não é suscetível de correções.

Obviamente, da publicação dos estudos até os dias de hoje, muitas considerações foram feitas, bem como críticas ao método. Autores como Kirk (1976) e Hainsworth (1968) apontam que a analogia com os poetas iugoslavos não pode ser entendida como uma prova cabal, principalmente porque os recitatos foram praticados em tempo e espaço diferentes. A despeito das críticas, os exames comparativos continuaram sendo aprofundados, com destaque para as associações de Homero a outras tradições épicas europeias e orientais que caracterizam as pesquisas de Gregory Nagy (1996) e os esforços de um grupo de homeristas que procurou aperfeiçoar a teoria formular de Parry e Lord, dos quais se destacam Foley (1988) e Jensen (1980). Entretanto, como recorda Rosalind Thomas, “depois de um período no qual a tese de Parry foi absorvida e geralmente aceita, tem havido o que poderia ser chamado de uma reação estética, e estudiosos retornaram às qualidades literárias de Homero” (THOMAS, 2005, p. 49). No bojo destes questionamentos, tende-se a destacar a existência de elementos característicos do texto escrito que incrementaram as fórmulas tradicionais (FERNIK, 1978; BREMER; DE JONG; KALFF, 1987; PARRY, 1971) e mesmo a suposta existência de pelo menos um poeta letrado11, responsável por fazer o translado da oralidade para a escrita e que, com vistas a adequar o poema ao novo suporte de informação, amoedou a narrativa e conferiu uma coesão interna que seria impossível de existir caso se considerasse exclusivamente a oralidade (HEUBECK, 1978; LOHMANN, 1970; WADE-GERY, 1952). Assim, as epopeias não seriam tão somente o resultado da transcrição de uma narrativa oral, mas um texto escrito inspirado na existência prévia desta forma narrativa. Contudo, algumas interpretações foram tacitamente recusadas e, se ainda persistem, são vistas com desconfiança.

A despeito de todas as proposições possíveis, não é aceitável que a poesia de Homero possa ter sua origem oral descartada. É justo admitir que o translado para o suporte escrito possa ter gerado mudanças significativas no texto, principalmente porque a exibição dos temas tradicionais diante de uma audiência condicionaria os aedos a ampliar, reduzir ou alterar parte do conteúdo diante da reação do público. A ideia de fidedignidade a um hipotético texto original não fazia parte das preocupações de quem consumia a poesia tradicional. Entretanto, em algum momento estes conteúdos podem ter assumido uma forma próxima à conhecida ainda em seu formato oral, principalmente porque os gregos resistiram durante muito tempo à escrita como um novo método de composição e registro.

Em sociedades que resistem ao uso literário da escrita, a relação dos indivíduos com a memorização de temas tradicionais é completamente diferente daquela conhecida no mundo contemporâneo. A capacidade de recordar era investida até mesmo de um valor religioso, principalmente para indivíduos associados às atividades poéticas. Como defende Marcel Detienne, “a memória sacralizada é, em primeiro lugar, privilégio de alguns homens organizados em confrarias: assim sendo, ela se diferencia radicalmente do poder de recordar que possuem os outros indivíduos” (DETIENNE, 1991, p. 17). Os  aspectos míticos da memória, entretanto, não parecem contradizer as exigências técnicas consubstanciais para o aprendizado e prática da poesia. Segundo Jean-Pierre Vernant, Presença direta no passado, revelação imediata, dom divino, todos esses traços, que definem a inspiração pelas Musas, de modo algum excluem ao poeta a necessidade de uma dura preparação e como que de uma aprendizagem do seu estado de vidência. Também a improvisação durante o canto não exclui o recurso fiel a uma tradição poética conservada de geração em geração. Pelo contrário, as próprias regras da composição oral exigem que o cantor disponha não só de um esboço de temas e de narrações, mas de uma técnica de dicção formular que ele utiliza já pronta e comporta o emprego de expressões tradicionais, de combinações de palavras já fixadas, de receitas de versificação já estabelecidas (VERNANT, 1990, p. 139).

 Conhecer versos de Homero de cor era algo extremamente comum na Antiguidade, e a capacidade de memorizar o épico na íntegra não é algo que escape à capacidade humana14, constituindo-se inclusive, como o próprio Homero demonstra, em uma das medidas de avaliação pública das qualidades dos aedos gregos (HOMERO, Ilíada, II, 484-494). Há certas passagens, principalmente os chamados Catálogos15, que parecem ter sido espetaculares exercícios mnemônicos. Não há como recusar tacitamente a possibilidade de que, em algum momento, um ou mais poetas tenham defendido as tradições hoje conhecidas e que, a partir dos méritos de seu canto e da solicitação do público que passou a conhecê-las, tenham-nas reproduzido de modo relativamente fidedigno (WADE-GERY, 1952; CARLIER, 2005). A cólera de Aquiles e o regresso de Odisseu passaram assim a ser temas relativamente estáveis e um patrimônio cultural dos povos gregos: questionar sua trama geral seria questionar a expressão de helenicidade que eles evocavam.

A escrita, neste cenário, foi um recurso utilizado para materializar este patrimônio e possibilitar a sobrevivência dos temas tradicionais a partir da gestão do governo políade. Um texto pré-estabelecido foi necessário para normatizar as récitas dos rapsodos após a reforma das Panatenéias levada a cabo pelos Pisistrátidas na segunda metade do século VI a.C.. Sabe-se que, de quatro em quatro anos em Atenas, determinado rapsodo iniciava a declamação dos poemas homéricos, parava em determinado verso, e o concorrente seguinte deveria dar seqüência ao canto a partir do ponto em que parou aquele que o precedeu (CARLIER, 2005, p. 58; SHAPIRO, 1998, p. 104). Deduz-se que para cumprir estas exigências era necessário um texto oficial, e não parece provável que este texto destoasse da antiga tradição oral, mesmo porque sua razão de existir era servir de apoio para a posterior oralização.

O passar do tempo pode ter gerado algumas mudanças particulares, principalmente quando eruditos alexandrinos se dedicaram a uma revisão dos conteúdos e fizeram novas adequações a partir das exigências da cultura escrita que então se consolidava. Considera-se, por exemplo, que a divisão em 24 cantos e a fixação da quantidade de versos em cada um deles ocorreu neste período. Entretanto, ainda segundo Pierre Carlier, é improvável que estas mudanças tenham distanciado de modo significativo a narrativa homérica do período daquela fixada pelos Pisistrátidas (CARLIER, 2005, p. 60).

Com base nestas considerações, partilhamos a concepção de que a escrita alterou a forma, a estética do poema, a organização e alguns aspectos da linguagem, mas conseguiu preservar com relativa fidelidade o conteúdo e as concepções de mundo características das comunidades que compuseram as epopeias. As modificações sugerem, evidentemente, inúmeras discussões filológicas e literárias, mas em termos de estudos históricos, tem-se uma margem de segurança relativamente confortável para considerar que Homero é, em linhas gerais, a expressão de uma cultura muito mais antiga do que aquela que testemunhou a gênese do texto atualmente conhecido. Deve-se, a partir destas considerações, definir a que período histórico os épicos fazem menção.


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Fonte:
Alexandre Santos de Moraes
: “Curso de vida e construção social das idades no mundo de Homero (Séc. X ao IX A.C.): uma análise sobre a formação dos habitus etários na ilíada e odisséia””. (Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em História. Campo de confluência: História Antiga. Orientador: Prof. Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso). Niterói, 2013.

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