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13/09/2015

O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec

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Trajetória histórica do Espiritismo no Brasil

No campo do espiritualismo  popular, ao largo do século XIX, manifestações supra-normais já compunham o imaginário religioso do brasileiro. Antes mesmo do caso das irmãs Fox nos Estados Unidos, já havia registros de reuniões espíritas no Brasil. Em 1967, o Anuário Espírita publicava um fac-símile de um documento procedente da Bahia, onde um juiz do Império, nos idos de 1845, relatava as providências tomadas ao ser informado que, num certo distrito, Mata de São João, eram rotineiras as “...reuniões noturnas em casa certa a pretexto de se ouvirem revelações das almas dos mortos que se fingem aparecer com número crescido de concorrentes...”.

Em tese de doutoramento na Unicamp sobre os espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais oitocentista, a professora Regina Horta descreve magias, apresentações de “espiritismo moderno”, manifestações mediúnicas imbricadas à cultura popular. Num evento registrado por um periódico de Ouro Preto em 1891, o “Jornal de Minas”, o artista anunciava que o espetáculo e a demonstração do sobrenatural interessaria “...aos homens de ciência e ao clero, pelas questões de física e psicologia”.

Nesse grande laboratório de mestiçagem biológica e cultural que amalgamou, no terreno religioso, o chamado sincretismo, o Brasil possuía mesmo como uma predisposição cultural a aceitação do espiritismo, enraizada em suas matrizes indígenas e africanas.

No campo do pensamento acerca da imortalidade da alma, destaca-se, também, o eminente político do Império, Marquês de Maricá, cujas reflexões e reuniões filosóficas valeram-lhe diversas prisões ainda no final do século XVIII. Numa de suas indagações, questionava “... De que nos serviria a outra vida se o nosso espírito não conservasse o cabedal de idéias e conhecimentos que adquiriu na primeira, se perdesse a memória da sua identidade individual e intelectual”, numa clara alusão à reencarnação, postulação essa anterior a Kardec.

O fenômeno europeu e estadunidense das mesas girantes chegou ao Brasil em meados de 1853, empolgando salões quase que simultaneamente na Corte do Rio de Janeiro, no Ceará, em Pernambuco e na Bahia.

Foi na capital Imperial que, em 1860, um francês ilustrado, o professor Casimir Lieutaud, diretor-fundador de um colégio onde ensinava a língua francesa e autor de uma gramática com 25 edições até 1957, “Tratado Completo da Conjugação dos Verbos Franceses, Regulares e Irregulares”, publicou a primeira obra de caráter espírita do Brasil, “Les temp sont arrivés” – literalmente, “os tempos chegaram”. Posteriormente, em português, era publicada uma brochura de Kardec intitulada “O Espiritismo na sua mais simples expressão”, em 1862, com três edições sucessivas impressas em Paris no mesmo ano de lançamento da 1ª edição francesa, fato que chamou a atenção do teórico da doutrina.

E na Bahia, um filho de oficial do exército, Luís Olímpio Teles de Menezes, professor de instrução primária e de latim e também autor de teoria lingüistica, a “Ortoépia da Língua Portuguesa”, fundou um grupo familiar de espiritismo, a primeira associação espírita do país, em 1865 e, no ano seguinte, traduziu e publicou em Salvador parte da obra de Allan Kardec, “O Livro dos Espíritos”.

Em julho de 1869, foi lançado, ainda por Teles de Menezes, o primeiro periódico espírita brasileiro, o “Eco d’Além Túmulo”, que trazia, em seu subtítulo, “Monitor do Espiritismo no Brasil”. No informativo, editado em pouco mais de um ano, eram divulgadas matérias locais e reproduzidas páginas e questões publicadas na Revue Spirite (Revista Espírita) – órgão francês de Allan Kardec – e em “O Livro dos Espíritos”.

No entanto, a trajetória do espiritismo no país é permeada por querelas com o clero católico. O arcebispo da Bahia e primaz do Brasil, e também presidente do Instituto Histórico da Bahia, D. Manoel Joaquim da Silveira, em 1867, circulou uma pastoral denunciando os “erros perniciosos do espiritismo”, visto como “essencialmente religioso, ou antes, (...) um atentado contra a religião católica”. Teles de Menezes, membro do mesmo instituto, respondeu com uma carta aberta sustentado a “preexistência, reencarnação e manifestação dos espíritos”.
Quando os integrantes do grupo de Teles de Menezes intentaram a criação de uma “Sociedade Espírita Brasileira”, não obtiveram sucesso justamente pela influência do clero católico. Dois anos depois, em 1873, eles conseguiram fundar uma entidade representativa, a “Associação Espirítica [sic] Brasileira”, enquadrada como organização com finalidade científica, para romper a resistência católica.

A segunda associação do espiritismo surgiu no Rio de Janeiro, o “Grupo Espírita Confúcio”, formado por três expoentes do movimento republicano, Francisco Leite de Bittencourt Sampaio – político, jornalista e alto funcionário público -; Antônio da Silva Neto, engenheiro baiano -; e Joaquim Carlos Travassos – médico e industrial carioca.

A sociedade, fundada em 1873, contava com normas de funcionamento e estatuto jurídico, aspecto pioneiro no país, e lançou uma tendência que se tornou tônica no movimento espírita – a assistência médica com tratamentos homeopáticos gratuitos, receitas atribuídas a influências mediúnicas e recebidas por Bittencourt Sampaio.
Assim, o espiritismo disseminava-se pelo Brasil, com a participação expressiva da classe média e camadas dominantes, e vários grupos sucederam-se, fosse pelo aumento dos adeptos ou disputas pelo controle interno. Chocavam-se os que pretendiam imprimir uma conotação científica aos estudos, com experimentos das manifestações controladas, com aqueles que valorizavam sua dimensão religiosa, preocupando-se com orientações espirituais ligadas ao crescimento moral.

Foi a ênfase no aspecto religioso da obra de Kardec, de acordo com o prof.º. Cândido Procópio Ferreira de Camargo, autor da obra clássica da sociologia nacional “Kardecismo e Umbanda”, que constituiu o traço distintivo do espiritismo brasileiro, “... e, talvez, a causa de seu sucesso entre nós”.

Nessa perspectiva, outras entidades iam surgindo. Uma importante dissidência do grupo Confúcio foi a “Sociedade de Estudos Espíritas Deus, Cristo e Caridade”, liderada por Bittencourt Sampaio. Outras cisões ocorrem; em 1877, foi constituída a “Congregação Espírita Anjo Ismael” e, em 1878, o “Grupo Espírita Caridade” – ambos orientados pelo assistencialismo e pela a prática da caridade, numa discordância às discussões científicas. A “Sociedade de Estudos Espíritas Deus, Cristo e Caridade” prosseguiu suas atividades, apesar das dissensões, mas, em 1880, um grupo capitaneado pelo professor Afonso Torterole conseguiu mudar a denominação da instituição para “Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade”. Esta decisão provocou a terceira e última cisão, gerando a formação do “Grupo Espírita Fraternidade”, com Bittencourt Sampaio e dois novos participantes, que tiveram importância no movimento espírita brasileiro, Antônio Luis Sayão e Frederico Pereira da Silva Júnior.

As dissensões internas enfraqueciam o movimento e imprimiam um caráter efêmero aos grupos constituídos. Entre as várias vertentes espiritualistas presentes no país, uma bem articulada foi composta pelos adeptos das idéias de Jean Baptiste Roustaing, cuja obra, publicada em 1866, “Os quatro evangelhos”, suscitou oposição rigorosa dos kardecistas brasileiros. Para as duas correntes, Jesus Cristo não é Deus e seria um espírito altamente evoluído com uma missão especial entre os homens. Mas, enquanto os seguidores de Kardec acreditam que Cristo viveu como homem na Terra, Roustaing sustentou que não faria sentido um ser perfeito encarnar-se como os homens, sendo que seu corpo seria constituído de fluídos – elemento, segundo os espíritas, intermediário entre a matéria e o espírito. Para os kardecistas, essa concepção do corpo de Cristo imprimia um caráter místico e sobrenatural ao espiritismo.

Bittencourt Sampaio era um dos expoentes da vertente de Roustaing.

Em 28 de agosto de 1881, a revista “O Cruzeiro” e o “Jornal do Comércio” informavam, em reportagem sobre uma ordem policial proibindo o funcionamento da “Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade”, e mencionavam as sanções penais àqueles que desobedecessem à determinação. No mesmo dia, representantes da “Sociedade” procuraram o Ministro da Justiça que, por sua vez, afirmou que não haveria perseguições religiosas. Todavia, no dia 30 do mesmo mês, um oficial de justiça apresentou-se com uma intimação, vedando as reuniões daquele grupo espírita.

Uma comissão foi montada para verificar a origem do mandato. Um dos membros era o médico e político mato-grossense, Antônio Pinheiro Guedes que, com outras figuras de certo relevo social, procurou o Segundo Delegado de Polícia da Corte, que tinha assinado o mandato. Constatando que a determinação viera de escalões superiores, recorreram ao próprio imperador D. Pedro II, em setembro de 1881, durante a realização do Primeiro Congresso Espírita Brasileiro, e obtiveram a promessa – que fora cumprida – de que não haveria perseguição.

Esses eventos são relevantes para a compreensão da disseminação do espiritismo. Além de um ambiente cultural propício, como exposto, pelas peculiaridades da formação brasileira, engajaram em suas fileiras importantes elementos de classe média e alta. A rigor, numa análise mais abrangente do movimento espiritualista, há uma distinção entre o alto espiritismo – também conhecido como “mesa Branca”, em que o kardecismo inscreve-se – e o baixo – com os adeptos da Umbanda e do Candomblé, mais notadamente popular.

As atividades assistenciais de Eurípedes Barsanulfo em Sacramento, objeto desta dissertação, também suscitaram reações, que culminaram na abertura de um inquérito policial e jurídico a partir de Uberaba, por conta de seu suposto exercício ilegal da medicina – ponto que abordaremos no capítulo V - item 1.3 desta dissertação (“O Médium - ou, nos passos de ‘tio Sinhô’ Mariano”). Tal como os precursores do movimento espírita, Eurípedes contaria com a omissão e a ajuda velada de membros do judiciário e da política sacramentana.

O ambiente para os adeptos do espiritismo era hostil, numa época em que o catolicismo predominava. A admissão dessa fragilidade levou os espíritas a articularem a fundação, em 1884, da “Federação Espírita Brasileira (FEB)”, com a expectativa de agregar todos os grupos espíritas, independente de suas divergências. Sintonizados com um ideal republicano, essencialmente descentralizado, os elementos que constituíram a FEB optaram para uma organização do espiritismo brasileiro numa base federativa, como o próprio nome da entidade sugeria. Definido um congresso realizado no Rio de Janeiro em 1889, o modelo que contemplava o caráter autônomo dos centros espíritas e da idéia de organização nas províncias que se opunham à centralização da monarquia.

Um dos nomes de relevo convertido ao espiritismo e que teve um papel agregador no emergente movimento espírita, foi o médico e político cearense Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcante (1831-1900). Quando se desligou em definitivo da política, em 1886, passou a dedicar-se integralmente ao espiritismo, escrevendo com o pseudônimo de Max no célebre “O Paiz”, dirigido por Quintino Bocaiúva. Presidiu a FEB em dois momentos: o primeiro, em 1889, marcou a decisão do princípio federativo da entidade.  Sem preocupar-se com o lado científico do movimento, vinculava-se às tendências mais religiosas do espiritismo, se aproximando do pensamento de Roustaing. Em decorrência do acirramento das disputas, não completou um ano à frente da FEB, afastando-se da direção do movimento. Entretanto voltou a presidir a entidade entre 1895 e 1900, período em que as características atuais do espiritismo foram consolidadas, assinalando a supremacia do grupo religioso.

O processo de cura e difusão de receitas médicas gratuitas popularizaram o espiritismo e contribuíram com a sua disseminação. Analisando as transformações advindas com a proclamação da República e a desintegração de uma sociedade patriarcal e semi-patriarcal sob o regime do trabalho livre, Gilberto Freyre, em “Ordem e Progresso”, analisou a expansão do movimento espírita à luz dessas mudanças. O sociólogo destacou o caráter beneficente das associações e algumas semelhanças em suas atividades com as confrarias católicas; a fundação da FEB, tendo como um de seus mentores um general de exército, depois marechal Francisco Ewerton Quadros, que fez parte de uma Assistência aos Necessitados ao lado de uma Escola de Médiuns; e, em 1912, fundou-se também no Rio de Janeiro, um hospital espírita para “... pessoas atacadas de alienação mental que quisessem submeter-se ao tratamento pelas correntes fluídicas organizadas pelo astral superior”.

O sentido religioso do espiritismo predominou em superação às tendências científicas, e a FEB marcou uma nova etapa do movimento no Brasil, proporcionando uma maior coerência e homogeneidade na difusão da doutrina. Nas primeiras décadas do século XX, seu crescimento foi notável, extrapolando os limites de Salvador e do Rio de Janeiro, seus pólos originais.

Um elemento também muito importante para a expansão do kardecismo pelo Brasil foi a utilização maciça dos órgãos de imprensa, que atingia os segmentos letrados da população – sua principal faixa social. Após a publicação de “O Eco D’Além Túmulo”, do pioneiro Teles  de Menezes em Salvador, foi lançado, em 1883, no Rio de Janeiro, o “Reformador”, denominado “mensário religioso do Espiritismo cristão”. Com a fundação da Federação Espírita Brasileira no ano seguinte, esse jornal tornou-se órgão oficial da nova instituição que agregava vários grupos.

Passo também importante para a divulgação do espiritismo com ênfase na leitura e no estudo, ainda foi a instalação, em 1897, de uma editora especializada pela FEB, que vem funcionando até hoje, com a publicação de obras de autores brasileiros e estrangeiros.

A República, por outro lado, endurecera a posição contra as atividades espíritas, numa tentativa, talvez, de apaziguar as relações com a Igreja, estremecidas com o desatrelamento com o Estado. O Código Penal de 1890 era enfático: “É crime praticar o Espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancia (...), inculcar curas de moléstia (...) e subjugar a credulidade pública. Pena: prisão celular de 1 a 6 meses e multa de 100 a 500$”. O “Reformador” denunciava em suas páginas a repressão policial contra o movimento, que chegava ao cúmulo de espancamento físico e apedrejamento aos recintos singelos pelo país afora.

Porém surgiam inúmeros expoentes da doutrina e grupos espíritas que irradiavam a religião em todas as regiões do Brasil.

Em São Paulo, o líder pioneiro foi um português nascido no interior lusitano, Antônio Gonçalves da Silva Batuíra (1839-1909). Filho de humildes camponeses, tendo completado apenas a educação primária, veio com cerca de 11 anos para o Brasil, aportando, inicialmente, no Rio de Janeiro, mudando para Campinas e depois São Paulo. Como entregador de jornais, aprendeu a arte tipográfica e, com as economias reunidas, montou um pequeno teatro, que funcionou entre 1860 e 1870, no qual encenava diversas peças, muitas vezes, com a lotação máxima de duzentas pessoas.

O pobre português prosperou na vida, comprando terrenos numa região desabitada, o Lavapés, que logo, diante do avanço da cidade, se valorizaria. Consta que inúmeras vezes acolheu escravos fugidos, e que, quando descobertos, envidava todos os esforços para comprar-lhes a liberdade. A descoberta do espiritismo ocorreu quando uma tragédia repentina o desestabilizou, o falecimento do filho único de sua segunda esposa, D. Maria das Dores Coutinho, um menino de apenas doze anos. A dor seria logo reconfortada pelo contato com a doutrina espírita da qual Batuíra tornou-se um entusiasmado divulgador.

Foi com a sua dedicação que surgiu em São Paulo um importante núcleo espírita, o primeiro com sede própria na América do Sul, construída na rua Lavapés, n.º 4, contando com a divulgação pela “Revista Verdade e Luz”, cujo primeiro número foi lançado em 20 de maio de 1890. Batuíra praticava a homeopatia e era considerado médium curador.

Numa sintonia com a trajetória e as postulações de Allan Kardec, o terreno da educação também foi profícuo para o desenvolvimento da doutrina e a fundamentação de uma denominada pedagogia espírita. Nomes como Anália Franco, Eurípedes Barsanulfo e Herculano Pires foram essenciais a essa gestação.

Figura proeminente na história paulistana do início do século XX, Anália Franco (1856-1919) foi uma mulher além de seu tempo – professora, teatróloga e jornalista, tendo também ideais feministas, republicanos e abolicionistas. Nascida em Resende, no interior fluminense, trabalhou como assistente de sua mãe, educadora primária. Em São Paulo, formou-se como normalista, em 1876, e teve uma atuação ímpar no campo educacional.

À ocasião da promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, várias crianças negras filhas de escravas eram expulsas da fazenda e o destino, na maioria das vezes, era a roda da Santa Casa de Misericórdia – dispositivo discreto, que permitia o depósito anônimo de bebês rejeitados pelo muro da instituição. Quando tomou conhecimento da situação, Anália Franco fez um apelo às fazendeiras e pretendeu transferi-las de São Paulo para o interior.

Uma proprietária rural cedeu-lhe uma casa para a instalação de uma escola primária, sob a condição de não misturar crianças brancas e negras. Diante da imposição e do impasse, Anália fez questão de pagar o aluguel, o que comprometia a metade dos seus ganhos. Mas, nos dizeres da fazendeira, a escola tornou-se um “albergue de negrinhos”, removendo logo a professora de sua propriedade.

Por volta de 1887, em Taubaté - SP, ela fundou o primeiro abrigo de órfãos e crianças abandonadas, criando a primeira Casa Maternal. Repudiada por escravocratas e oligarcas locais, contou, no entanto, com o precioso auxílio de abolicionistas, disseminando escolas maternais pelo interior paulista. Na capital, fundou uma revista denominada “Álbum de Meninas”, cujo subtítulo frisava: “Revista Literária e educativa dedicada às jovens brasileiras”, em 1898, e, com um grupo de senhoras de todos os níveis sociais, lançou a Associação Feminina Beneficente e Instrutiva de São Paulo, em 1901, cuja lista de associados logo chegaria a 2000 signatários. O objetivo da entidade era oferecer a instrução e o amparo a crianças pobres e mães desamparadas.

Seis anos após a fundação, a associação mantinha e orientava, só na capital, 22 escolas maternais e duas noturnas, enquanto no interior funcionavam cinco escolas maternais. Ao todo, cerca de duas mil crianças pobres recebiam a educação. Havia ainda um “Liceu Feminino Noturno”, em São Paulo, com mais de cem alunas, e outro, em Santos.

Nos idos de 1910, a dona Anália Franco, por ocasião da visita de um músico e militar, organizou uma atividade inédita, a primeira banda de música feminina do país, denominada Dramático musical. Em decorrência da eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914/1918) e o corte de ajudas voluntárias, a associação atravessou por dificuldades, e a solução encontrada pela dona Anália Franco, para contornar as dificuldades, foi promover excursões da Banda Musical e do Grupo Dramático pelo interior paulista para angariar os recursos necessários.

Quanto à conversão de Anália Franco ao espiritismo, não existe, segundo seus pesquisadores, uma indicação precisa sobre essa circunstância. Até 1901, pouco se sabe acerca dessa militante da educação feminina no Brasil. Católica moderada, é provável que, durante uma crise de cegueira momentânea em que estivera recolhida e distante das atividades sociais por volta de 1899, ela teria se aproximado da doutrina espírita. Existem documentos de 1903 demonstrando sua vinculação ao Centro Espírita de São Paulo, no largo do Arouche, onde instalou, de acordo com as atas da entidade, uma escola maternal pela manhã.

Eurípedes Barsanulfo foi o grande nome do espiritismo na primeira metade do século XX e sua trajetória a partir de Sacramento, contribuiu decisivamente para a ampliação da doutrina kardecista pelo Triângulo Mineiro e pelos interiores de São Paulo e Goiás. Apenas em linhas gerais – o tema é aprofundado no capítulo V deste trabalho – vale adiantar as circunstâncias de seu engajamento. Um advogado e coronel de Uberaba promovia sessões espíritas domiciliares, e, participando num desses eventos, o empresário espanhol Fernando Peiró converteu-se à doutrina. Seu contador na firma de cal era Mariano da Silva, o “Sinhô”, tio de Barsanulfo. Assustado com os acontecimentos sobrenaturais na Fazenda Santa Maria – pancadas na parede, sons de pedra no telhado, sumiço de objetos –, convidou o espanhol a fim de analisar o fenômeno, e Peiró entendeu que seriam manifestações mediúnicas.

Mariano abraçou o movimento e dessa adesão surgiu, em 1900, o primeiro centro espírita do interior mineiro, o “Fé e Amor”, na pequena localidade rural de Santa Maria.

Filho de uma humilde, mas emergente família, que prosperava pelo comércio, Eurípedes Barsanulfo era um jovem com muitas atividades, contador da empresa do pai, a “Casa Mogico”, vereador e ainda que autodidata, professor do Lyceu Sacramentano. Era católico fervoroso, mas foi por intermédio do tio que descobrira o espiritismo numa sessão em Santa Maria em que o Bezerra de Menezes e São Vicente de Paulo teriam se manifestado, orientando-o sobre os seus compromissos espirituais.

Seu engajamento ao espiritismo, o ativismo contínuo e perseverante e a fama arrebatada pelas curas e manifestações mediúnicas, bem como as atividades no Collégio Allan Kardec e na farmácia gratuita contribuíram decisivamente para a irradiação do espiritismo e fizeram de Eurípedes um dos ícones da doutrina de Kardec no Brasil.

O legado de Anália Franco e Eurípedes Barsanulfo no campo educacional teria sua sistematização numa linha de reflexão denominada pedagogia espírita, surgida no final dos anos 1940, a partir da articulação e coordenação do intelectual José Herculano Pires (1914/1979). Paulista nascido em Avaré, graduou-se em filosofia pela USP e, numa extensa produção, que inclui poesia, ficção, filosofia, espiritismo e parapsicologia, deixou mais de 80 obras.

Em 1948, com a participação de jornalistas e militantes da imprensa paulista, sob a presidência de Herculano Pires, foi fundado o Clube de Jornalistas Espíritas de São Paulo, com estudo sistemático do Livro dos Espíritos. No ano seguinte, o grupo realizou, também em São Paulo, o “Primeiro Congresso Educacional Espírita Paulista”, convocado pela “USE – União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo”, fundada em 1947. Dos debates e teses apresentadas para a fixação das bases da Educação espírita, foi concretizada a criação do Instituto Espírita de Educação em São Paulo contando com sede própria. Em 1951, no “Segundo Congresso”, foi determinada a instalação do “Instituto Educacional Espírita Metropolitano”, dedicado aos estudos e pesquisas pedagógicas.

Na história do espiritismo no Brasil, a religião de Kardec enfrentou a oposição ruidosa do clero católico, rusgas com o sistema repressivo e com o judiciário. Certo livro de Xavier Oliveira, em 1931, “Espiritismo e Loucura”, atacou a doutrina, comparando “O Livro dos Médiuns” com a cocaína. Com a efetivação do Estado Novo, a repressão ao movimento foi intensificada. No final dos anos 1930 era a vez dos protestantes distribuírem panfletos no Rio de Janeiro contra o espiritismo.


O movimento prosseguiu a jornada, angariando adesões, expandindo os centros e as atividades de cura ganhavam respeito. Em 1939, realizava-se o “Primeiro Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas”, no Rio de Janeiro e, em 1944, surgia a “Cruzada dos Militares Espíritas”. Foi em 1946, no governo de Gaspar Dutra, que a nova Constituição do país assegurava e garantia, finalmente, a ampla liberdade religiosa no país.


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Fonte:
Anderson C.F. Brettas: 
"Eurípedes Barsanulpho e o Collégio Allan Kardec: Capítulos de História da Educação e a Gênese do Espiritismo nas Terras do Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro - 1907/1918. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação, sob a orientação do prof.º Dr. José Carlos Souza Araújo. Universidade Federal de Uberlândia - Faculdade de Educação -Programa de Pós-Graduação em Educação). Uberlândia, 2006.

O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec

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As Mesas Girantes em Paris

O caso das irmãs Fox, paradigma do moderno espiritismo, ganhou repercussão e logo extrapolaria as fronteiras estadunidenses. A família ficou abalada com o fenômeno, efeito atribuído às irmãs; afastadas de casa, morando com o irmão David Fox, os mesmos ruídos eram ouvidos. Embora fossem feitos esforços para que o público ignorasse essas manifestações, elas tornaram-se conhecidas. E quando as meninas viajavam, o fenômeno as acompanhava nas casas em que se hospedavam. Com o tempo, foi estabelecido um sistema de códigos para compreender cada letra de acordo com o número de batidas.

O pesquisador do espiritismo e o principal biógrafo brasileiro de Allan Kardec, Zeus Wantuil assim descreve o encontro das irmãs com intelectuais e religiosos:

[...] Numa Sessão realizada em Nova Iorque, em 1850, sentados ao redor de uma mesa, vemos o Ver. Griswold, o novelista Fenimore Cooper, o historiador J. Bancroft, o Dr. Hawks, os doutores J.W. Francis e Marcy, o poeta quaker Willis, o popeta Bryant, o general Lyman e o periodista Bigelow, do Evening Post. Todos eles se manifestaram satisfeitos com a sessão, e declararam: ‘ As maneiras e a conduta das jovens (isto é, das irmãs Fox) são tais que tudo se inclina a favor delas.

O movimento espiritualista nos Estados Unidos avançou rapidamente, numa interação com o protestantismo de diferentes grupos e seitas por intermédio de enfoques educacionais, tendo diversas publicações e grupos de estudo. A primeira organização espírita regular foi constituída em Nova Iorque, em 10 de junho de 1854, sendo denominada “Sociedade para a difusão do Conhecimento Espírita”, entre cujos membros, contava com um Juiz, Edmonds, e o governador de Wisconsin, Tallmadge.

Poucos anos após os acontecimentos de Hydesville, as mesas girantes se tornaram um modismo na Europa, sensação nas reuniões dos círculos abastados da sociedade, sobretudo, em Paris e Lyon. Os jornais anunciavam esses fenômenos estranhos sem, contudo, indagar suas causas.

A “mesa girante” consistia num móvel redondo com três pés, à qual os participantes invocavam a manifestação de forças sobrenaturais. Com a suposta presença, a mesa dava saltos e girava, indicando as letras do alfabeto de acordo com os códigos estabelecidos.

O pensamento positivista estava em voga na Europa do século XIX e poucos atribuíam tais efeitos à manifestação demoníaca, ainda que o Santo Ofício condenasse as mesas em 1856, alegando que havia interferências do hipnotismo ou do magnetismo.

De fato, os magnetistas acreditavam que os fenômenos das mesas girantes poderiam ser causados por fluidos elétricos ou magnéticos, ou ainda, por algum outro tipo de manifestação desconhecida, porém similar. O fundador dessa filosofia – o magnetismo animal, também chamado de mesmerismo – foi o médico e filósofo austríaco Franz Anton Mesmer.

Para esse estudioso, que freqüentava círculos ocultistas e alquímicos em seu país, seguindo a linha do famoso místico Paracelsus, haveria correspondência entre o mundo exterior – o macrocosmo – e as diferentes partes do organismo – o microcosmo.

A tese de formatura de Mesmer em Medicina descrevia a influência planetária por intermédio de um fluído magnético universal com poderes sobre a matéria viva. Haveria ainda, o magnetismo animal que existiria em duas formas antagônicas, emanando nos lados direito e esquerdo do corpo humano. A cura das enfermidades ocorreria pela restauração do equilíbrio entre os fluidos. Baseado nessas premissas, elaborou uma terapia que consistia na fixação dos olhos e na aplicação de passes magnéticos com o uso das mãos.


O pedagogo Hippolyte-Léon Denizard Rivail, adepto de Mesmer, fazia parte da Sociedade de Magnetismo de Paris. E, a propósito, compartilhava da mesma opinião do Santo Ofício na condenação das mesas girantes.


Fonte:
Anderson C.F. Brettas: 
"Eurípedes Barsanulpho e o Collégio Allan Kardec: Capítulos de História da Educação e a Gênese do Espiritismo nas Terras do Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro - 1907/1918. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação, sob a orientação do prof.º Dr. José Carlos Souza Araújo. Universidade Federal de Uberlândia - Faculdade de Educação -Programa de Pós-Graduação em Educação). Uberlândia, 2006.

O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec

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Fundamentos da Filosofia Espírita

Embasado pela observação, comparação e verificação dos fatos, Denizard Rivail concluíra que ali estavam mesmo espíritos dos desencarnados. Um curioso paradoxo num século caracterizado pelo materialismo alemão, pelo positivismo francês, e pelo ceticismo; um dedicado discípulo do notável Pestallozi aplicava os métodos científicos empíricos no desvendamento e análise do mundo dos mortos.

A chamada doutrina espírita, sistematizada pelo pedagogo, já sob o pseudônimo de Allan Kardec, tem seu alicerce nos cinco livros publicados por ele que, reunidos, formam o pentatêuco kardequiano. Por intermédio dos médiuns, conduzia perguntas aos espíritos, que eram analisadas, comparadas e sistematizadas. O resultado dessa pesquisa foi “O Livro dos Espíritos”, publicado, pela primeira vez, em 1857, contendo 1018 perguntas e respostas sobre temas e questões que tangenciam a doutrina espírita. Posteriormente, outras obras seriam editadas: “O Livro dos Médiuns” (1861); “O Evangelho Segundo o Espiritismo” (1864); “O Céu e o Inferno” (1865); e “A Gênese” (1868). Em 1864, seria lançado um resumo da doutrina em “O que é o Espiritismo”, e, após sua morte, foi compilada “Obras Póstumas” (1890). Kardec lançou e dirigiu, ainda, a “Revue Spirite”, difundida sob sua responsabilidade por 11 anos, e fundou a “Société Parisienne d’Étude Spirites”, fatos que redundaram na forte expansão do movimento espírita francês, que logo atingiria nosso país (abordado no 2º Capítulo da presente, “Apropriação e disseminação do espiritismo no Brasil”).

Essa ampla expansão não pode ser descolada do turbilhão de crenças e filosofias que conviviam com o cientificismo europeu pelo viés do neocolonialismo. Noções como carma, corpo astral, reencarnação e outras similares vinham das colônias orientais da Inglaterra e da França. Mesmo na antigüidade, o conceito metempsicose – crença de que uma mesma alma pode animar sucessivamente corpos diversos, de homens, animais ou vegetais –, agregado por filósofos como Pitágoras ou Platão, estava presente nos textos Upanishadas, da milenar Índia. Todavia Kardec refutava a idéia de transmigração da alma de homens para animais; com uma perspectiva evolucionista, entendia que o espírito poderia estacionar, nunca retroceder ou degenerar.

O espiritismo, delimitado e designado no Brasil como kardecismo, pode ser compreendido como sistema complexo de pensamento, abarcando princípios filosóficos, científicos e religiosos. Seu eixo central é a idéia milenar baseada na doutrina hinduísta da reencarnação – com a diferença já assinalada – e a possibilidade concreta de comunicação entre os mortos – classificados, genericamente, como “espíritos desencarnados”– realizada por intermédio de pessoas dotadas de capacidade para o transe psiquíco, os médiuns, durante a sessão espírita (chamada de “mesa branca”, num contraponto às crenças afro-brasileiras, discriminadas como “baixo espiritismo”).

Num processo de sincretismo doutrinário, é acrescentado à lógica estrutural oriental da reencarnação o elemento essencial do cristianismo contido nos Evangelhos: a ética da caridade. Jesus Cristo é considerado a maior entidade já encarnada e governador espiritual do planeta, e Kardec entendeu que o maior mandamento é o amor ao próximo, considerado a virtude suprema.

Sucintamente, apresentamos um esboço do pensamento de Kardec exposto pelo autor ao longo de suas obras – o pentatêuco, além do “O que é o Espiritismo” e “As Obras Póstumas”. O espiritismo é uma ciência, compreendendo duas partes: uma experimental, sobre as manifestações em geral, e outra filosófica, sobre as manifestações inteligentes. A verdadeira doutrina espírita está no ensinamento dado pelos espíritos, e a aprendizagem ocorre por um estudo sério e continuado, feito no silêncio e recolhimento.

A rigor, os espíritos não são nem bons nem maus por natureza; são eles próprios que se melhoram, transitando de uma ordem inferior para uma superior. Assim, o aperfeiçoamento do espírito é o fruto de seu próprio trabalho e processo contínuo de educação, não podendo, numa única existência corpórea, adquirir todas as qualidades morais e intelectuais necessárias à condução do objetivo – a purificação, alcançada por uma sucessão de vidas, em cada uma adquirindo elementos no caminho do progresso “A encarnação não é imposta ao espírito, no princípio, como punição; ela é necessária ao cumprimento das ordens de Deus (...)”, enfatiza Kardec. “Os espíritos encarnados constituem a humanidade, que não é circunscrita à Terra, mas que povoa todos os mundos disseminados no espaço(...)”. A vida espiritual é a vida normal; a vida corpórea é transitória e passageira.

O esquecimento de existências anteriores é uma dádiva divina, sendo os homens poupados de lembranças, na maioria das vezes, dolorosas e penosas; por outro lado, a diversidade das aptidões inatas é a prova de que a alma já vivera. “Nenhum espírito está nas condições de não se melhorar nunca; de outro modo, estaria fatalmente destinado a uma eterna inferioridade, e escaparia da lei do progresso que rege, providencialmente, todas as criaturas”.
Outra categoria essencial à compreensão do pensamento kardequiano é a noção do livre arbítrio, preconizado nos primórdios do cristianismo por Santo Agostinho (354/430 d.C.):

Deus, sendo soberanamente justo, deve considerar igualmente todos os seus filhos; é por isso que dá a todos o mesmo ponto de partida, a mesma aptidão, as mesmas obrigações a cumprir e a mesma liberdade de agir [grifo do autor]; todo privilégio seria uma preferência, e toda preferência, uma injustiça. Mas a encarnação não é, para todos os Espíritos senão um estado transitório; é uma tarefa que Deus lhes impõem, na sua entrada na vida, como primeira prova que farão do seu livre arbítrio.

Na condição de movimento religioso, Kardec frisava que o espiritismo, longe de negar o Cristianismo e o Evangelho, os esclarecia e difundia à luz das novas revelações acerca do que o Cristo fez e disse.

[o espiritismo] traz a luz sobre os pontos obscuros de seus ensinamentos, de tal sorte que aqueles para quem certas partes do Evangelho eram ininteligíveis, ou pareciam inadmissíveis, as compreendem, sem esforço, com a ajuda do Espiritismo, e as admitem; vêem melhor a sua importância , e podem separar a realidade da alegoria; o Cristo lhes parece maior: não é mais simplesmente um filósofo, é um Messias divino [grifo do autor].

Uma plêiade de intelectuais diversos aderiram, em algum momento, às idéias apresentadas por Kardec, numa lista extensa, que inclui, entre outros, figuras como o astrônomo Camille Flammarion, o escritor Léon Denis, o antropólogo italiano Ernesto Bozzano, o escritor inglês Arthur Conan Doyle, imortalizado pelo clássico detetive Sherlock Holmes; Alexandre Dumas, outra celebridade da literatura universal; o médico italiano César Lombroso, psiquiatra forense, que se notabilizou pelos estudos no campo das relações físicas e mentais, que, mais tarde seriam, conhecidos como antropologia criminal.

Evidentemente, o espiritismo não ficaria imune a contestações e repressões. Apenas para ilustrar, dois episódios são notórios nesse meio. Em 1862, o padre Lepeyre, da Companhia de Jesus, chegou a afirmar que era mesmo possível o contato com os mortos, mas que os bons espíritos só se manifestavam dentro das igrejas e que, ademais, fora daquele ambiente só almas demoníacas surgiriam. Outro fato foi o denominado “auto-de-fé de Barcelona”, quando um livreiro francês, radicado na Espanha, Maurice Lachâtre, encomendou a Kardec seus livros para divulgá-los. Entretanto, não contava com a intolerância do bispo da cidade, que ordenou a apreensão e a incineração dos livros numa grande fogueira. Decerto, o gesto do clérigo, o último ato da inquisição espanhola, teve enorme eco na imprensa local e internacional, servindo para atiçar as curiosidades e divulgar o termo espiritismo. Mesmo no Brasil, certo padre, Oscar Quevedo, vem ganhando notoriedade, há décadas, no esforço de desmistificar os fenômenos espíritas pela vertente da parapsicologia.



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Fonte:
Anderson C.F. Brettas:
"Eurípedes Barsanulpho e o Collégio Allan Kardec: Capítulos de História da Educação e a Gênese do Espiritismo nas Terras do Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro - 1907/1918. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação, sob a orientação do prof.º Dr. José Carlos Souza Araújo. Universidade Federal de Uberlândia - Faculdade de Educação -Programa de Pós-Graduação em Educação). Uberlândia, 2006.

02/08/2015

Cid (Teatro), de Pierre Corneille

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O Cid: triunfante e dilacerado

Não é difícil visualizar Rodrigo exultante ao pronunciar as últimas palavras que fecham a cena I, ato V. Sem muito esforço poderemos escutá-lo, aos brados, desafiar povos inimigos para que estes se unam contra ele, a fim de lutarem. Assegura-lhes, entretanto, antes mesmo que estes respondam ao seu chamado, que mesmo unidos não poderão vencê-lo, pois fracos são diante da força que a partir de então o move, a saber, “uma esperança tão doce”.

D. Rodrigo
Há um inimigo a quem, ora, a lei não imponha? Navarreses, surgi, Mouros e Castelhanos, Tudo o que a Espanha tem de valores ufanos, Por combater a mão dest’arte encorajada!
Sim, formai, todos vós, unidos, uma armada, Vosso esforço juntai contra esperanças tais: Para a aura lhes romper, todos vós não bastais. CORNEILLE, [s.d.], p. 79.

D. Rodrigue
Est-il quelque ennemi qu’à présent je ne dompte? Paraissez, Navarrais, Maures et Castillans,
Et tout ce que l’Espagne a nourri de vaillants; Pour combattre une main de la sorte animée Unissez-vous ensemble, et faites une armée: Joignez tous vos efforts contre un espoir si doux; Pour en venir à bout, c’est trop peu que de vous. (vv. 1558-1564).

O desafio lançado ao vento – já que Ximena havia deixado a cena e Rodrigo falava apenas para o público diante de si – e imaginário – visto que os inimigos ali não estavam e nem mesmo se tratava de uma batalha à vista, mas apenas do duelo contra Dom Sancho e os valores que este representava – só reflete exteriormente o estado interior de Rodrigo.

Consideramos para Rodrigo a possibilidade do sentimento (affectus) de exultação, de alegria exacerbada. Na definição de Tomás de Aquino temos exultação pelos sinais exteriores do prazer interior, que aparecem exteriormente, enquanto a alegria salta para o exterior. José Thomaz Brum, sinaliza, entretanto, que “um grande contentamento, uma alegria demasiado intensa abre diante de nós um abismo de paradoxos.” O estudioso sustenta a sua assertiva a partir de Agostinho, o qual afirma que a jubilação neste mundo não é completa. Para Brum, “a finitude humana, com suas lacunas, não poderia abrigar um júbilo total, absoluto.” Consonantes com esta ideia, acompanhemos a subida de Rodrigo ao instante de êxtase, não deixando de perceber os percalços de dores que irão o acompanhar e sem perdermos de vista que se trata de um momento fugaz.

Pela primeira vez o mancebo usaria seu braço em favor de si mesmo. Pode a sua súbita coragem, despertada pelas palavras de Ximena, ser entendida e a mudança no seu tom de voz, mais facilmente escutada, se considerarmos as duas motivações anteriores a esta que incitaram o guerreiro à luta, tão diferentes das de agora.

A primeira disputa contra o pai de Ximena é fruto da desavença entre os pais de ambos. Por mais que Dom Diogo quisesse estender sua vingança a Rodrigo, o “nós” pronunciado por aquele só inclui o jovem na medida em que era ele o digno filho que responderia de modo digno a um digno pai.

Vinga-te a ti e a mim
Prova, de um pai como eu, ser digno filho afim.
No opróbrio em que hoje quis a sorte que me extinga,
Vou deplorá-la. Vai, corre, e a ambos nós, nos vinga!
CORNEILLE, [s.d.], p. 35.

Venge-moi, venge-toi;
Montre-toi digne fils d’un père tel que moi Accablé des malheurs où le destin me range,
Je vais les déplorer: va, cours, vole, et nous venge. (vv. 287-290).

Ao vingar o pai, Rodrigo vingaria a si mesmo. Tão digno quanto o pai deveria ser o filho. Para buscar a adesão de Rodrigo, Dom Diogo usa de retórica, na figura da gradação: vai, corre, vinga-nos! Finalmente, o “nós” se inclui na ampliação do “eu”.

A honra, herança paterna a se preservar, era uma motivação externa – um código de sociedade. Este valor remonta aos trágicos e épicos da cultura grega. Trata-se da timé (honra) e do hýbrisma (ultraje). Estes dois conceitos são desencadeadores de ações trágicas. Pela timé vai-se a guerra, pelo hýbrisma mata-se. Citamos dois exemplos, ambos de tragédias: “A acreditar no que tu dizes, foi Zeus que te ditou este oráculo em que se ordenava a Orestes que vingasse a morte do pai, sem atender em nada ao respeito (timàs) devido à mãe!”. (Eumênides, de Ésquilo, v. 624). Quanto ao segundo valor, temos: “Mata-me então, irmão, para que o não faça nenhum argivo à filha de Agamemnon, tomando-a como objeto de ultraje (hýbrisma). (Orestes, de Eurípides, v. 1038)

No monólogo da cena VI, ato I, em meio à hesitação vivenciada entre a virtude cortesã e o amor, podemos ver o estado de espírito em que se encontrava o jovem e o que ele previa para si ao optar pela honra: parado e abatido previa a morte; triste, ele crê que o seu mal não terá fim; sob um poder tirano, vislumbra a morte dos seus prazeres e a infelicidade. Ao se decidir pela honra e ao obedecer à vontade do pai, Rodrigo considera-se morto: “A amada, não; a um pai me devo e à sua defesa; Que eu morra em tal combate, ou morra de tristeza.”

Contraste-se a absoluta prostração de Rodrigo com a alegria de Dom Diogo, quando este reencontra o filho vencedor após o duelo com o conde: “Exulto, exulto sem limite! O fôlego retomo a fim de mais louvar-te.” – é o que lhe diz o pai orgulhoso de seu sangue. No original, percebemos que enquanto Dom Diogo toma fôlego para elogiar, Rodrigo suspira de tristeza.

Enquanto Rodrigo lamenta a perda de sua amada, Dom Diogo festeja a glória do rebento: “Meu filho, orgulho meu, que a velhice me assiste,/Toca o cabelo branco a que a honra restituíste.” Os sentimentos, contudo, não se identificam. Dom Diogo não pode sentir a tristeza do filho, pois não ama, e Rodrigo não pode partilhar da alegria do pai, ainda que a vitória venha de suas próprias mãos, justamente por amar. Situação complexa e difícil, assinalada já por Aristóteles, em suas teorizações na Retórica das paixões:

(...) com efeito, para as pessoas que amam, as coisas não parecem ser as mesmas que para aquelas que odeiam, nem, para os dominados pela cólera, as mesmas que para os tranqüilos; mas elas são ou totalmente diferentes ou de importância diferente e aquele que odeia tem por certo o contrário, e, para o que tem aspirações e esperança, se o que via acontecer é agradável, parece-lhe que isso acontecerá e será bom, mas para o indiferente e para o descontente parece o contrário.

Não coincidindo os seus desejos com aqueles do pai, Rodrigo pedirá a Dom Diogo que o deixe satisfazer a si mesmo: “Mas em vosso prazer não tenhais ciúme enfim/ De agora, por
meu turno, eu contentar-me a mim.” E diz ainda, nos versos 1049-1052:

Por vos vingar me armei contra o que amava, e a palma
De um lance triunfal privou-me de minha alma. Nada mais me digais; por vós tudo perdi;
O que a meu pai devia, hoje lho restituí. CORNEILLE, [s.d.], p. 64.
Mon bras, pour vous venger, armé contre ma flamme,
Par ce coup glorieux m’a privé de mon âme; Ne me dites plus rien; pour vous j’ai tout perdu: Ce que je vous devais, je vous l’ai bien rendu.

Porém não será desta vez que o rapaz terá a sua vontade atendida. Além de ser tomado por um braço pronto a fazer vingança, braço este que pelo golpe da espada separa também sua alma de seu corpo, Rodrigo está diante de uma dívida impossível de ser quitada, a saber, aquela entre pais e filhos. Surge então uma nova sugestão de Dom Diogo. Faz-se necessário que o filho lute pelo bem do país: “Não é tempo ainda, não, de buscar o trespasso; Teu rei e teu país precisam de teu braço.” A segunda batalha de Rodrigo será, portanto, também motivada por algo exterior a ele. Se, na vingança contra o conde, Rodrigo revive o que um dia fôra o pai, na batalha contra os mouros, ele se colocaria à altura do guerreiro que fôra o conde. É o que podemos ouvir na voz de Dom Diogo, ao incentivar o filho: “Vai, lança-te ao combate, e mostra ao rei de sobra,/ Que o que perdeu no conde, em ti ele o recobra.” Rodrigo já havia afirmado que tudo perdera, mas Dom Diogo insiste em que há ainda muito que se ganhar. Essa lógica do perde e ganha é cômica, na medida em que pensamos que há diferença entre as pessoas e situações. Que grande consolo para Rodrigo!

Diante das duas disputas, em que respondera a intentos outros que não os seus, Rodrigo se apresenta para o terceiro desafio novamente em atitude de submissão. Obediente, o guerreiro não apenas atende àqueles que o convocam para lutar, mas preza por lhes dar o que dele esperam. Ao tentar se despedir de Ximena, ele diz acatar “as leis” estabelecidas por ela e se oferece como libação pelos ressentimentos causados a esta sua amada: “O imutável amor que a vossas leis me prende,/ Antes do mortal golpe homenagem vos rende.” E ainda: “Eu corro a esse feliz momento/ Que há de satisfazer vosso ressentimento.” (grifos nossos) Na resposta dada a Ximena acerca da sua fraqueza diante do novo adversário, Rodrigo revela-se como alguém despido de vontade própria.


[...]


Além das paixões contraditórias que, diante do amor, comungam – dor que não dói, contentamento que é descontente, não querer que é bem querer –, não há nessa luta perdedores ou vencedores: ganha-se, ao se perder, vence-se, ao se deixar ser vencido. Ao lado de Rodrigo, Ximena é igualmente uma heroína: ao preservar seu amor, ela preserva sua glória e seu dever.

Corneille quase não variou sobre este ponto durante a sua carreira dramática: a sua psicologia amorosa está em perfeito acordo com o conjunto da sua psicologia do heroi. A noção de glória geralmente é aplicável igualmente ao exercício guerreiro e ao amor. (…) A este respeito nós declaramos, no presente momento, uma ambiguidade singular ali no essencial: voltar a dar ao amor sua glória íntima – ou seja, definitivamente a sua pureza, a sua lei e as suas exigências próprias – é considerá-lo como um fim em si, assim como um dever.

Como propõe Merlin-Kajman: “O fracasso não é de Ximena, mas da retórica. A representação teatral (…) mostra o custo subjetivo da construção de si pelo código moral, o custo subjetivo da regulaçao pelo ethos.” Para a estudiosa,

o ethos seria então igualmente este movimento que faz com que se fale por trás de uma máscara, ou de preferência de dentro de uma máscara, ou seja em um dado relativamente fixo – os hábitos de conduta. Ou, ainda, que se fale em segundo lugar, recebendo a máscara dos que lhe precederam, dos pais, por exemplo, os pais os quais são forçosamente uma questão em Le Cid.

Não sabemos como foi representada essa última ação de Ximena; talvez com as duas mãos postas sobre o rosto, quem sabe com uma saída rápida do palco e com a cabeça baixa. Certo é que o autor chama a nossa atenção, no corpo do texto, para a mudança ocorrida no corpo de Ximena depois de pronunciada as suas últimas palavras: “Adeus, com essa palavra eu ardo de vergonha.”

Ximena deixa a cena enrubescida. Interessante notar que ela mesma é quem faz essa afirmação – não se trata de uma rubrica. Algumas hipóteses poderiam ser levantadas para o seu constrangimento: sentia ela vexame por amar o assassino do pai? Por ter sido tão obstinada? Ou por trair o que ela mesma dissera e desfazer assim a imagem da heroina que ela havia criado para si, ao escolher o amor em detrimento da honra? A causa da vergonha pode ser entendida, sobretudo, por estar Ximena diante de quem muito considerava:

(…) necessariamente se sente vergonha com respeito àqueles por quem se tem consideração. Ora, temos consideração pelos que nos admiram, por aqueles que admiramos, por aqueles por quem queremos ser admirados, por aqueles com quem rivalizamos e por aqueles cuja opinião não desprezamos.

Rodrigo parece preencher cada uma dessas motivações: era o alvo do amor de Ximena, enquanto esta era também o foco de seu amor. Percebe-se, assim, uma mútua admiração; Ximena quer ser admirada por Rodrigo, pois, do contrário, não insistiria tão veementemente nas questões concernentes à sua própria honra, não fazendo de seu amante seu adversário e limitando-se ao amor que este lhe devotava; por fim, é ele alguém cujas opiniões ela leva em conta, o que pode ser percebido tanto na aceitação das afirmações de Rodrigo acerca de sua honra, as quais ela acata sem muita dificuldade, e também no repetir de suas próprias frases, em que, mesmo para distorcer, ela se apropria de algo que pertence a ele.

A frase “Sai vencedor da ação de que o prêmio é Ximena.”, é o “sim” da amada a Rodrigo, antes mesmo que ela fosse entregue a ele.

Scudéry, nas suas Observations, não vê outra reação possível para a jovem senão aquela descrita por Corneille: “Ela tem razão ao ruborizar-se e se esconder depois de uma ação que a cobre de infâmia por ver a luz.” Certamente o crítico está mais preocupado com o humilhação social que com o gesto amoroso que denuncia o desejo de agradar e/ou rivalizar com o seu parceiro. O rosto vermelho de Ximena é um sinal externo de um desnudamento interno: o amor vencera a honra. (Há que se lembrar que “o amor é fogo que arde sem se ver...”). Para Scudéry, todavia, essa vitória é desonrosa.

Vemos nela [na peça Le Cid] uma filha desnaturada que fala apenas de suas loucuras, quando ela deve falar somente de seu desespero, lamentar a perda de seu amante, quando ela deve pensar apenas na de seu pai; amar ainda o que ela deve abominar; tolerar ao mesmo tempo e na mesma casa este assassino e este pobre corpo; e, para finalizar sua impiedade, juntar sua mão àquela que desgosta ainda do sangue de seu pai.

Scudéry parece extremamente preocupado com o “dever” de Ximena. Essa palavra é repetida no trecho acima, no sentido de reforçar o que ela deveria ter feito em lugar do que de fato fez. Sob este aspecto, ele parece mesmo mais zeloso da honra da jovem que seu amado. A preocupação do opositor do dramaturgo de Rouen não era, no entanto, com a felicidade de Ximena, mas sim em manter a bienséance. Disso Corneille mostra estar a par ao se pronunciar. “As duas visitas que Rodrigo faz à sua amada têm alguma coisa que choca esta bienséance da parte de quem as sofre; o rigor do dever gostaria que ela renunciasse a falar com ele e se fechasse em seus aposentos no lugar de escutá-lo.”

O amor de Rodrigo por Ximena, coincidindo com o de Ximena por Rodrigo, esquece as demais virtudes que estavam em jogo. Ao se alegrar, no final da cena, o riso de Rodrigo não é apenas aquele vivificador, mas também o do vitorioso. É o riso do rebelde que ganha mais um adepto para a sua causa.

Esse tipo de riso [de alegria] constitui uma reação fisiológica a uma transbordante situação de alegria para com o próprio ser. Este riso, em si mesmo, não está ligado a fatores de caráter moral. No riso de zombaria o que nos dá prazer é uma vitória de caráter moral, enquanto no riso de alegria trata-se de uma vitória das forças vitais e da alegria de viver. Muito frequentemente esses dois aspectos se fundem. Quem ri é o vencedor: o perdedor nunca ri. O riso moral, ou seja, o riso comum e saudável do homem normal, é signo da vitória daquilo que ele considera justo. (grifos nossos)

Triplamente vitorioso: sobre os interesses do pai, do Estado e do seu próprio, a imagem que temos de Rodrigo é a do heroi glorioso, ainda em vida, que a plenos pulmões, sorriso nos lábios, quem sabe com algumas gargalhadas a entrecortar a sua fala, proclama a si mesmo ao chamar quem quer que seja para guerrear contra ele. Ximena completa o brilho que o conde e os mouros já haviam lhe trazido, vence a sociedade ao desprezar escrúpulos vãos.


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Fonte:
Mariana Reis Furst: “A mistura de paixões em Le Cid, de Pierre Corneille”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras: Estudos Literários. Área de concentração: Teoria da Literatura. Linha de pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural. Orientadora: Profª. Drª Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa). Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Letras, 2010.