29/05/2016

A Abolição, de Osório Duque Estrada

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História triste

De tudo quanto se escreveu sobre a personalidade de Luís Gama, nada é tão comovente nem tão significativo como a sua própria história, narrada nas seguintes linhas, escritas por Lúcio de Mendonça, um ano antes da morte daquele grande abolicionista:

“Nasceu Luís Gonzaga Pinto da Gama na cidade de São Salvador da Bahia, à rua do Bangla, em 21 de junho de 1830, pelas sete horas da manhã, e foi batizado oito anos depois, na igreja matriz do Sacramento, na cidade de Itaparica.

É filho natural de uma negra, africana livre da costa de Mina, da nação Nagô, de nome Luísa Mahen, pagã; recusou esta sempre batizar-se e de modo algum converter-se ao cristianismo.

Era mulher de estatura baixa, magra, bonita, de um preto retinto e sem lustro; tinha os dentes alvíssimos; era imperiosa, de gênio violento, insofrida e vingativa. Mais de uma vez, na Bahia, foi presa, por suspeita de se envolver em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.

Em 1837, depois da revolução do Dr. Sabino, naquela província, veio ao Rio de Janeiro e nunca mais voltou.

Procurou-a o filho em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862 soube por uns pretos minas, que a conheciam e dela deram sinais certos, que, apanhada com alguns desordeiros em uma casa de dar fortuna, fora posta em prisão, e que tanto ela como os companheiros desapareceram. Era opinião dos informantes que os amotinados houvessem sido deportados pelo governo, que nesse tempo tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais até hoje pôde Luís alcançar a respeito de sua mãe.

Naquele mesmo ano de 1861, voltando a S. Paulo e estando em comissão do governo, na então vila de Caçapava, consagrou à mãe perdida os saudosos versos que se leem, como nota de um sentimentalismo dissonante, no risonho livro das Trovas Burlescas, que deu a lume, com o pseudônimo de Getulino.

Vê-se que é hereditário em Luís Gama o profundo sentimento de insurreição e liberdade.

Abençoado sejas, nobre ventre africano, que deste ao mundo um filho predestinado em que transfundiste, com o teu sangue selvagem, a energia indômita que havia de libertar centenas de cativos!

O pai de Luís – outra analogia deste com Spartacus – era nobre, fidalgo, de uma das principais famílias baianas, de origem portuguesa.

Foi rico, e, nesse tempo, extremoso para o filho: criou-o nos braços.

Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela pesca e pela caça; gostava dos bons cavalos; comprazia-se em folguedos e orgias; esbanjou uma herança, havida de uma tia, em 1836.

Reduzido a pobreza extrema, em 10 de novembro de 1840, em companhia de Luís E. Quintela, seu amigo inseparável, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na Bahia, vendeu o filho como escravo, a bordo do patacho Saraiva.

A respeito dessa venda há uma cena, que deixa ver, por um lado, o caráter corrupto de um pai, e por outro, a energia do filho vencido.

Às 5 horas da tarde, o pai de Luís Gama mandara Luísa Mahen vestir o filho, dizendo que ia dar um passeio. Chegando ao cais, chamou um bote e declarou que preferia um passeio marítimo, visto que aproveitaria a ocasião para falar ao comandante do patacho Saraiva, com quem tinha uma questão a ultimar.

Dirigiram-se para o patacho e, chegados ao tombadilho, o pai deixou a criança de parte e esteve por longo tempo a conversar com o comandante.

Terminada a conversa, foi se retirando sorrateiramente, para assim escapar às vistas do filho; mas este, sempre vivo e esperto, quando viu o pai afastar-se e entrar no bote, dando ordem para este partir, perguntou da escada:

– Então, meu pai, não me leva consigo?

Ao que ele respondeu:

– Não, porque me esqueci de alguma coisa em terra; voltarei breve, e então iremos juntos.

Foi então que o jovem Luís desceu mais alguns degraus da escada, aproximou-se do bote, que já se afastava, e exclamou:

– Meu pai! O senhor me vendeu!

O velho olhou-o por algum tempo; os olhos se lhe encheram de lágrimas, e deu ordem aos remadores que tocassem para terra.


Não sei se o desgraçado ainda vive, nem lhe conheço o nome, que Luís oculta, generoso, aos seus mais íntimos amigos; mas, ainda que jogador e fidalgo, a recordação da monstruosa infâmia deve ter-lhe esbofeteado, em todo o resto de seus dias, a velhice desonrada.”


[Trecho do livro]

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