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Espelho solar e espelho
lunar: identidades reveladas e ocultadas em “Frederico Paciência”
O
mundo vai girando cada vez mais veloz A gente espera do mundo, e o mundo espera
de nós Um pouco mais de paciência.
(Lenine, “Paciência”)
Eduardo Jardim, ao tratar do exílio de
Mário de Andrade no Rio de Janeiro ,
afirma que os textos que comporiam Contos novos passaram a ser
finalizados e revistos nesse período de 1938 a 1941. A leitura que Jardim faz dessa fase pode
ser resumida na seguinte expressão utilizada pelo crítico: “conflitos de
intimidade”. Na esteira teórica de Telê Ancona Lopez, consideramos as quatro
narrativas no modo “eu-protagonista” dos Contos novos, somadas ao
“Túmulo, túmulo, túmulo”, como parte do que a autora chamou de “filão
memorialístico”. Temos aqui o “cronista do eu”, empenhado no embate com os
sistemas sociais que o circundam, como
propõe Maria Célia de Almeida Paulillo.
Também poderíamos entender “Tempo da
camisolinha”, “Vestida de preto”, “Frederico Paciência” e “O peru de Natal”,
segundo os pressupostos da abordagem psicanalítica
presentes no estudo de Ivone Daré Rabello. Entenderíamos, assim, cada uma
dessas narrativas como
parte integrante de um processo contínuo das construções de identidade sexual.
Ao estudar as nove narrativas presentes em Contos novos, a autora
verifica, pelo foco narrativo e pela matéria temática, de um lado os “relatos
do eu” (“Vestida de preto”, “O peru de Natal”, “Frederico Paciência” e “Tempo
da camisolinha”), e de outro as “histórias sobre outros” (“O ladrão”, “Primeiro
de maio”, “Atrás da Catedral de Ruão”, “O poço” e “Nelson”).
As
quatro narrativas enunciadas no modo “eu-protagonista” sugerem aproximações,
tais como :
a)
as reminiscências de um eu identificado por Juca em três dos quatro contos,
porém com identidade oculta em “Tempo da camisolinha”;
b) antecipações e repetições de episódios
envolvendo as personagens;
c) repetição de personagens como o pai, a mãe, os irmãos, Rose e Tia
Velha;
d) a busca da reordenação dos episódios que marcam
a maturação sexual, pelo viés memorialístico;
e) a omissão de fatos numa história para o
posterior aproveitamentos dos mesmos em outra.
Os
procedimentos sumariados acima produzem efeitos de sentido nas quatro
narrativas: “Por um lado, o narrador quer ordenar suas lembranças, colocá-las
sob seu controle, com o poder que a linguagem lhe dá; por outro, os quatro
relatos sugerem uma rearticulação que excede a matéria legível e a entrecruza”.
Essa rearticulação “excede a matéria legível” e passa ao ilegível, ao conteúdo
latente, ao recalcado, ao reprimido, tese sustentada por Rabello na análise de Contos
novos. Para a autora, os contos de que tratamos,
ainda que autônomos, sugerem um efeito de unidade, pois o narrador “parece
querer buscar o sentido da vida na rememoração dos fatos e de seus impactos na
formação da própria identidade”.
Ainda
que alguns críticos realizem algumas homologações da construção identitária dos
narradores e do processo de consciência autoral, não é nosso intuito realizar
essas aproximações. É claro que elas podem ser, em certos momentos,
esclarecedoras, notadamente em “Vestida de preto”, quando o narrador faz o
seguinte comentário: “Mário de Andrade conta num de seus
livros que estudou o alemão por causa duma emboaba tordilha ... eu também: meu
inglês nasceu duma Violeta e duma Rose” (p.29). Além da tradicional comparação
das mulheres com flores, realizada no âmbito da nominação de duas figuras
femininas envolvidas com o narrador, este procura não se identificar com a
instância criadora, o autor Mário de Andrade, evitando uma possível aproximação
entre autor e narrador.
Narrador
e autor não se confundem. A analogia, no caso, chama o leitor para fora do
texto, impedindo que se forme uma ilusão realista. A delimitação clara de
papéis- autor, narrador, leitor – é substituída pela encruzilhada de
referências, como se o narrador fosse de fato tão substancialmente distanciado
do autor, que pudesse se referir a ele em terceira pessoa.
Diante
da quebra da ilusão realista e da delimitação clara dos papéis de autor e
narrador, surge-nos uma inquietação: por que o autor Mário de Andrade, pelo
discurso do narrador Juca, procura evitar qualquer aproximação deste último com
sua pessoa? Vale ressaltar que esses contos foram constantemente reelaborados,
principalmente durante o período do exílio no Rio de Janeiro . De acordo com Eduardo Jardim,
“Muitos aspectos dessa sensibilidade nova, aberta para os conflitos de
intimidade, aparecem em passagens de „Atrás da Catedral de Ruão” e de
„Frederico Paciência‟, que tratam da frustração sexual e do amor homossexual
irrealizado”.
Ora, quando consideramos a enunciação
como o momento de construção do discurso ficcional, não podemos negligenciar
que vivências pessoais do autor colaboram, em certa medida, para a construção
do enunciado poético e narrativo. Essa posição é assumida seguindo os
pressupostos teórico-medológicos de João Luiz Lafetá, ao propor, na análise dos
livros de poema A costela do Grão-Cão e Livro azul a correlação
dos problemas da identidade pessoal com o dilaceramento da sociedade: “(...)
penso que o conhecimento de fatos de ordem pessoal que estão na origem de sua
criação vai nos servir, senão para entender a simbologia, pelo menos para
situá-la adequadamente no primeiro instante da análise”.
Entendemos
esse “primeiro instante de análise” a verificação das estratégias de
incorporação dos elementos contextuais na estrutura do texto, seguindo os
pressupostos de leitura de Antonio Candido. Tomamos, a
título de aproximação dos elementos biográficos ao estudo das narrativas
memorialísticas dos Contos novos, a crônica
“Esquina”,
inserida em Os filhos da Candinha. Nesse texto, destacam-se as
descrições minuciosas da rua do Catete, observada do alto do quarto andar,
residência do narrador-cronista e, biograficamente, de Mário de Andrade, quando
este se trasladou para o Rio de Janeiro após a demissão da Secretaria de
Cultura de São Paulo, conforme informa Eduardo Jardim. Somam-se às descrições
espaciais a sondagem psico-social da “casta de inclassificáveis”, isto é, a
“gentinha de aluguel” que busca disfarçar sua condição social de “classe
operária” e são marcadas pela instabilidade: “Instáveis no trabalho, instáveis
na classe, estes seres são principalmente instáveis na moradia. É mesquinho,
mas ninguém mora mais de três meses na mesma casa” (p.138).
Outro
dado biográfico presente na crônica refere-se aos gastos de Mário de Andrade
com venenos para matar as baratas que “invadem o arranhacéu” (p.140). As
baratas assumem, nessa crônica, tal como
os gatos na produção poética de Mário, a metáfora das pulsões sexuais
reprimidas que “qualquer calorzinho põe doidas, avançam pelo bairro, cruzando
lépidas a esquina, invadem o arranhacéu” (p.140). O processo metafórico é
possível pela relação de semelhança entre as baratas que ficam “doidas” e saem
de seus esconderijos e os desejos recalcados que passam a se manifestar: “Nem
ao seu parapeito podemos chegar em passeio, porque são tão numerosos os
exércitos de baratas, baratinhas, baratões, num assanhamento de carnaval”
(p.140).
Esse
“assanhamento de carnaval”, com referência à tradicional festa dionisíaca do
culto aos prazeres da carne, somado à multidão de pessoas chamadas de “baratas,
baratinhas e baratões”, dando conta de homens, mulheres e adolescentes na
esquina do Catete, só é “assanhamento” ao olhar desse narrador-cronista,
identificado aqui com a consciência autoral, pelos traços biográficos já
assinalados, pois o cronista não consegue dar vazão aos seus desejos íntimos.
Esses só conseguem sair do recalcamento por meio da escrita, que Ivone Rabello
entende, seguindo os pressupostos freudianos, como a sublimação dos desejos reprimidos.
Nesta camada da leitura interpretativa,
talvez não seja arriscado afirmar que as narrativas em 1ª ou 3ª pessoa são
manifestações de um mesmo eu – a consciência autoral – que, com a criação
desses outros, quer dar representação ao(s) sujeito(s) marcado(s) pelo desejo e
ameaçado(s) pela lei. Mário de Andrade cria um “eu” ou um
“ele” que saem à procura daqueles que lhes parecem semelhantes.
Adotando esse viés de leitura, a
“Esquina” seria o lugar de encontro desses desejos reprimidos, pois essa
crônica se centra na articulação entre o eu, observador de um ângulo alto e
móvel, cujo olhar percorre o “andar superior” e o “andar térreo” da rua do
Catete, e o Outro, entendido como os moradores daquela rua. Na descrição desses
moradores, abundam referências de natureza erótica. Há as “costureirinhas,
bordadeiras, chapeleiras (...), menos vivendo do seu recato ou tradição
renitente, que da espera de algum príncipe que, as eleve a freqüentadoras de
bar” (p.138). Deixar o “recato ou tradição renitente” relaciona-se ao desejo de
saída do confinamento no espaço privado para o espaço público, representado
pelo bar, tal como se apresentava no conto “O besouro e a Rosa”, cuja
protagonista, não podendo suportar a espera do príncipe encantado, opta por
Pedro Mulatão, freqüentador de bares e de bebidas.
Sobre os adolescentes, é curioso observar
que o narrador-cronista não se detém na descrição do “rapaz que se olhava nu,
altas horas num jogo de espelhos”(p.139). O nu aqui ganharia, pelo acréscimo da
figura do espelho, a conotação do ser puro, sem mescla psíquica, como propõe Anatol
Rosenfeld, ou ainda, o sujeito sem máscaras: desejo perseguido pela consciência
autoral? Em outro momento da crônica, o desejo assume tal força que chega a
desobstruir os limites impostos pela lei reguladora:
Porque é uma coisa terrivelmente
angustiosa esta do andar superior da rua do Catete: a quase ausência completa
de adolescentes. Com a rara exceção de algum estudantinho pensionista, não se
vê uma garota, um só rapaz de quinze até vinte anos. Não sei si morrem, si
fogem – em qualquer dos dois casos buscando vida milhor (p.138).
O processo de construção de identidades
sexuais de adolescentes fora do modelo patriarcal preestabelecido costuma gerar
situações de conflito nas personagens. “Na sociedade patriarcal, a condenação
do homoerotismo é um princípio constitutivo (...) O princípio da
heterossexualidade está ligado nesse contexto à credibilidade do masculino,
como princípio de organização de poder e de construção de hierarquia”. A
atuação de poderes normativos e repressores e a necessidade do recalcamento das
pulsões sexuais contrárias às normais sociais dessa sociedade patriarcal gera a
angústia, a “coisa terrivelmente angustiosa” experimentada pelo
narrador de “Esquina” ao perceber a “quase ausência completa de adolescentes”.
Ao comentar o estado de pânico vivenciado
pelo escritor nos anos de 1939 e 1940, Eduardo Jardim afirma que as correntes
da filosofia contemporânea vêem na angústia não apenas a dimensão do
sofrimento, como também a possibilidade de conhecimento de si.
Para Heidegger, a angústia constitui a
oportunidade de passar de uma forma de existência inautêntica, banal, em que a
relação com as coisas é pautada por um critério de utilidade, para uma outra,
autêntica, revestida de gravidade e portadora de sentido.
A definição de angústia dada por
Heidegger e citada por Jardim fornece elementos para a análise de “Frederico
Paciência”. A passagem de um estado de existência inautêntica (típica de muitas
das personagens belazartianas) para uma existência autêntica e portadora de
sentido constituirá o vai-vem de algumas narrativas de Contos novos, em
especial de “Frederico Paciência”, em que o narrador, já adulto, busca
encontrar sua identidade por meio da narração dos fatos passados em sua
infância e adolescência. No entender de Ivone Daré Rabello, o adulto, narrador,
torna-se espelho de sua própria vida pretérita, que retorna com força ao tempo
da enunciação. Também perde o poder que até então se representara: sua voz cede
lugar a uma outra, que retorna de dentro do adulto. O narrador deixa de reger o
espetáculo de sua vida: o próprio espetáculo aflora, para que o presenciemos.
O fragmento acima transcrito permite
algumas reflexões sobre o efeito espelho que se dá na estrutura
narrativo-discursiva de “Frederico Paciência”. Ao dizer que o narrador torna-se
espelho de sua vida pretérita, Rabello aponta para o desdobramento do eu que
narra. Temos aqui a estrutura do duplo temporal, uma vez que, no próprio
entender da autora, o narrador perde o controle da matéria narrada e o
espetáculo da narrativa aflora do interior do sujeito que narra. Há, assim, o
narrador adulto que se encontra no tempo da enunciação, e Juca adolescente,
cuja voz retorna de dentro desse adulto, que acaba por desdobrar a própria
estrutura do enredo do conto em dois momentos a que chamaremos de
“intensificação da amizade” e “desintensificação da amizade”, conforme os
pressupostos teóricos da Semiótica Tensiva.
Em “Frederico Paciência”, as personagens
Juca e Frederico apresentam percursos passionais diferentes e, por conseguinte,
maneiras opostas de ver o tempo. Essas oposições entre Juca e Frederico se
intensificam ao longo do conto, mas já são delineadas logo no início da
narrativa, evidenciando que Juca se sentia imperfeito e via a perfeição em
Frederico.
Frederico Paciência era aquela solaridade
escandalosa. Trazia nos olhos grandes bem pretos, na boca larga, na musculatura
quadrada da peitaria, em principal nas mãos enormes, uma franqueza, uma saúde,
uma ausência rija de segundas intenções. E aquela cabelaça pesada, quase azul,
numa desordem crespa. Filho de português e de carioca. Não era beleza, era
vitória. Ficava impossível a gente não querer bem ele, não concordar com o que
ele falava. (p.105)
Eu era o tipo do fraco. Feio, minha
coragem não tinha a menor espontaneidade, tendência altiva para os vícios,
preguiça. Inteligência incessante mas principalmente difícil. Além do mais,
naquele tempo eu não tinha nenhum êxito pra estímulo. Em família era
silenciosamente considerado um caso perdido, só porque meus manos eram muito
bonzinhos e eu estourado, e enquanto eles tiravam distinções no colégio, eu
tomava bombas. (p.106)
Já no início do conto, as oposições entre
Juca e Frederico são bem marcadas. Enquanto o primeiro apresenta marcas da
imperfeição (fraqueza, ausência de espontaneidade, tendência para vícios,
preguiça, inteligência difícil, ausência de estímulo, desempenho insatisfatório
nos estudos), o último possui os traços da perfeição (solaridade escandalosa,
perfeição física nos olhos, na musculatura, na boca e nas mãos, saúde e
pureza). Esses traços de perfeição e de imperfeição podem ser sintetizados na
configuração simbólica de sol e sombras, com algumas recorrências no conto. O
narrador se vê, em determinado momento da narrativa, como uma “sombra irmã” (p.123), em oposição à
“solaridade escandalosa” do amigo.
A relação dual sombra e luz pode ser
percebida se recorrermos ao Dicionário de símbolos de Jean
Chevalier e Alain Gheerbrant. Para os autores
citados, a sombra seria tudo o que se opõe à luz, ou ainda, a própria
imagem das coisas fugidias, irreais e mutantes.. Já o sol é fonte de luz, calor
e vida. A luz irradiada por ele representa o conhecimento intelectivo, pois o
próprio Sol é a inteligência Cósmica. = O sol representa, dessa
forma, o oposto da simbologia das sombras, pois é a imagem das coisas
perfeitas, a própria Inteligência Cósmica.
No conto em questão, as sombras
referem-se à projeção do desejo narcísico do narrador de querer obter a
perfeição de Frederico Paciência, fonte de luz, calor e vida para este
narrador, pelo mecanismo de alteridade, em que a identidade de Juca começa a se
construir na relação com o outro. Maria Célia de Almeida Paulillo ressalta a
importância da imagética da luz como
constante estilística da simbologia místico-religiosa nos Contos novos. Nessa leitura, a luz passa a fazer parte do
percurso figurativo da plenitude, tão desejada por Juca. Este quer sair do
paradigma da imperfeição e passar para o da perfeição, por isso se interessa
cada vez mais em se aproximar de Frederico Paciência.
Admirava lealmente a perfeição moral e
física de Frederico Paciência e com muita sinceridade o invejei. Ora, em mim
sucede que a inveja não consegue se resolver em ódio, nem mesmo em animosidade:
produz mas uma competência divertida, esportiva, que me leva à imitação. Tive
ânsias de imitar Frederico Paciência. Quis ser ele, ser dele, me confundir
naquele esplendor, e ficamos amigos. (p.105)
O percurso passional do narrador
inicia-se com a inveja e se transforma no desejo de ser como Frederico Paciência. Surge aqui o
delinear da problemática da identidade desse narrador, cujo nome ainda não
aparece na estrutura narrativa do conto, mas que apresenta um desejo de
perfeição, tanto moral como
física. Esse desejo leva-o a imitar Frederico e, para que seu objetivo seja
alcançado, precisa estar em contato com o outro, tanto de forma psicológica como física.
Frederico Paciência foi minha salvação. A
sua amizade era se entregar, amizade era pra tudo. Não conhecia reservas nem
ressalvas, não sabia se acomodar humanamente com os conceitos. Talvez por isto
mesmo, num como
que instinto de conservação, era camarada de toda a gente, mas não tinha grupos
preferidos nem muito menos amigos. Não há dúvida que se agradava de mim,
inalteradamente feliz de me ver e conversar comigo. Apenas eu percebia,
irritado, que era a mesma coisa com todos. Não consegui ser discreto.(p.107)
Apesar de Juca confessar a Frederico que
este era seu “único” amigo, encontramos na personalidade do narrador um
conflito entre o social e o individual, entre a pureza e a impureza. A amizade
passa a se intensificar, no entanto, percebemos ao longo do conto que Juca, por
mais que quisesse se ligar ao paradigma do individual, exteriorizando seus
impulsos diante daquela amizade, não consegue deixar o paradigma do social, que regula suas atitudes e o impede de viver
intensamente aquela amizade. Ao levar Frederico para conhecer sua família, Juca
sente-se incomodado com a presença do amigo diante de sua mãe. “Mas eu não
gostava de ver ele na minha família, detestei até Mamãe junto dele, ficavam
todos muito baços” (p.109). Basta lembra que em “O peru de Natal”, o narrador descreve
uma cumplicidade em relação à sua mãe, pois ela sabia de seus encontros com
Rose. Isso nos leva a inferir que a construção de uma identidade heterossexual
era algo aceito pelo narrador, mas uma possível nuance homossexual já seria
algo a ser escondido do ambiente familiar, pois implicaria “uma concepção
diferente da vida familiar brasileira tradicional”. No estudo de “Túmulo,
túmulo, túmulo”, vimos que, além da dicotomia privado/público, o homossexual se
depara com “outra e mais complexa dicotomia: vida familiar/vida secreta”. A
vida familiar seria, nesse sentido, marcada por convenções e repressões, tal como em “O peru
de Natal”.
Por outro lado, o ambiente familiar de
Frederico é despido dessas convenções e a liberdade em excesso é o que dá o tom
desse espaço. “Mas me tornei familiar na casa dele, eram só os pais, gente
vazia, enriquecida à pressa, dando liberdade excessiva ao filho,
espalhafatosamente envaidecida daquela amizade com o colega de „família boa‟”
(p.109). A família de Frederico, por ter se “enriquecido à pressa”, não possui
a mesma tradição da família de Juca, o que faz com que não haja preocupações
com as convenções e normas de comportamento, situando-se no plano
dos valores do individual, como
vemos pela marcação da expressão “espalhafatosamente envaidecida”.
A família de Frederico pode ser entendida
da seguinte forma: “(...) as classes populares no Brasil tinham encontrado
maneiras mais espontâneas de convivência social transparente, que
não tinham alicerce no choque entre marginalidade versus norma”.
Dessa forma, essa “família enriquecida às
pressas” aceita os valores individuais do filho, diferente da família de Juca,
que o considera “um caso perdido”, ou ainda “um louco”, expressão recorrente no
conto “O peru
de Natal”.
Em “O peru de Natal”, Juca questiona as
convenções familiares. No entanto, o mesmo não ocorre em “Frederico Paciência”.
Temos a impressão de estarmos diante de um outro Juca, um outro narrador que
não estabelece nenhuma relação de personalidade com o narrador do primeiro
conto. Entretanto, sabemos que é o mesmo Juca. Em que medida se dá essa
diferença de comportamento e de atitudes diante do conflito de paradigmas?
Em “O peru
de Natal”, prevalecem os valores individuais, enquanto em “Frederico
Paciência”, o lado social e convencional é enfatizado. Inferimos que isso se dá
porque no primeiro conto o que estava em questão era a necessidade de se
eliminar um elemento castrador dos desejos daquela família convencional. Em
“Frederico Paciência”, não é mais a família que precisa se libertar de suas
opressões, mas sim o próprio narrador. E enquanto a questão a ser resolvida
estava ligada à família, as formas de se lidar com o conflito eram menos
problemáticas. No entanto, quando o conflito atinge diretamente o narrador no
processo de construção de sua identidade sexual, a auto-censura é o que
prevalece.
Podemos dizer que no conto há basicamente
dois tipos de mecanismos repressores: um deles é marcado pela exterioridade,
enquanto o outro provém do interior do narrador. No primeiro caso, basta
lembrar o episódio da condenação dos colegas e da conseqüente briga na escola.
A amizade entre Juca e Frederico vai se intensificando cada vez mais a ponto
que os colegas, percebendo o nível de intensidade da relação dos dois, passam a
censurá-los, como vemos pelas expressões “gracejo” e “bocas de serpentes”, que
podem ser encontradas no seguinte fragmento diante de uma amizade assim tão
agressiva, não faltavam bocas de serpentes. Frederico Paciência, quando a
indireta do gracejo foi tão clara que era impossível não perceber o que
pensavam de nós, abriu os maiores olhos que lhe vi. Veio uma palidez de crime e
ele cegou. Agarrou o ofensor pelo gasnete e o dobrou nas mãos inflexíveis. Eu
impassível, assuntando. Foi um custo livrar o canalha. Forcejavam pra soltar o
rapaz daquelas mãos endurecidas numa fatalidade estertorante (...) O canalha
caiu desacordado no chão.
Frederico Paciência só grunhia “Ele me
ofendeu”, “Ele me ofendeu”. Afinal – todos já tinham tomado o nosso partido,
está claro, com dó de Frederico Paciência, convencidos da nossa pureza (p.114).
O final desse trecho é extremamente
significativo para analisarmos a oposição entre as paixões individuais do
narrador e as convenções sociais que impossibilitariam a concretização do amor
homossexual. A expressão “convencidos da nossa pureza” aponta para dois
aspectos: a necessidade que Juca tinha de convencer a sociedade de algo oposto
ao que para ele mesmo seria inaceitável, e a necessidade que ele tinha de
ocultar para si mesmo o delinear de uma possível identidade homoerótica. Essa
primeira necessidade pode ser encontrada no momento da narrativa em que Juca
resolve surrar o
“ofensor”, pois dessa forma reforçaria
que as “bocas de serpentes” estariam equivocadas em relação ao nível de
intensidade da amizade que o ligava a Frederico e, ao mesmo tempo, afirmaria
uma identidade masculina, com o componente agressivo, imagem de virilidade que
a sociedade constrói a respeito de um homem.
Após
ter vencido a briga, o conflito entre pureza e impureza começa a aparecer no
discurso do narrador com mais freqüência ao longo da narrativa. Mesmo afirmando
diante de todos pela ação da briga sua identidade masculina, o narrador se vê
atormentado pelo referido conflito: “Não era glória nem vanglória, nem volúpia
de ter vencido, nada. Era um equilíbrio raro – esse raríssimo de quando a gente
age como
homem-feito, quando se é rapaz. Puro. E impuro.” (p.116). Para Rabello, a
configuração da identidade homoerótica pode ser relacionada com a fixação
narcísica e com proibição e recalque. Para a
referida autora, nesse desejo torturado de restaurar e destruir a plenitude
narcísica, junto à sexualidade que desponta em plena adolescência, Juca depara
com as suas próprias interdições inconscientes e conscientes. O paradoxo “E
puro. E impuro”, duas vezes repetido, expressa-as. Certas outras palavras
ambivalentemente registram os conflitos entre
“instinto” e “moral”, e reprimem, por
eufemismo, o nome do desejo. Amor homossexual, aqui, é chamado de “idéias de
exceção”, “instintos espaventados”, “desejos curiosos”, “perigos desumanos”. O
mesmo menino que vivencia a fixação narcísica, teme-a, proíbe-a, e a recalca.
Talvez por isso retorne a ela e aí permaneça, no adulto que precisa narrar-se.
Agora
falávamos insistentemente de nossa “amizade eterna”, projetos de nos vermos
diariamente a vida inteira, juramentos de um fechar de olhos do que morresse
primeiro. Comentando às claras o nosso amor de amigo, como que procurávamos nos provar que daí não
podia nos vir nenhum mal, e principalmente nenhuma realização condenada pelo
mundo. Condenação que aprovávamos com assanhamento. Era um jogo de cabeças
unidas quando sentávamos pra estudar juntos, de mãos unidas sempre, e alguma
vez mais rara, corpos enlaçados nos passeios noturnos. (...) O barulho
facilitou nosso fragor interno, ele avançou, me abraçou com ansiedade, me
beijou com amargura, me beijou na cara em cheio dolorosamente. Mas logo nos
assustou a sensação de condenados que explodiu, nos separamos conscientes. Nos
olhamos nos olhos e saiu o riso que nos acalmou. Estávamos nos amando de amigo
outra vez; estávamos nos desejando, exaltantes no ardor, mas decididos,
fortíssimos, sadios. (p.117)
Ainda percebemos a relação dual entre
pureza e impureza, que ganha outras simbologias no fragmento citado. Os termos
“amizade” e “amigo” evoluem para “amante” e “amor”, no entanto, o narrador não
utiliza essas palavras, apenas usa a expressão “amor de amigo”, para atenuar
seus conflitos internos. Essa amizade, cada vez mais
intensa, encontra aqui nuances de uma possível concretização, como vemos pelas figuras “cabeças unidas”,
“mãos unidas sempre”, “corpos enlaçados”, “amando de amigo”, “desejando”. No
entanto, a consciência da impossibilidade da concretização desse amor devido
aos mecanismos sociais repressivos vem expressa pelas seguintes figuras “beijou
com amargura”, “beijou dolorosamente”, e principalmente “nenhuma realização
condenada pelo mundo” e “sensação de condenados”.
A
conflituosa rede de oposições entre pureza e impureza, paixões individuais e
convenções sociais, começa a se resolver no momento da narrativa em que Juca
opta pelo aborto dessa identidade homoerótica que estava cada vez mais ganhando
contornos em sua personalidade. Num determinado momento da narrativa, o
enunciador retorna ao tempo da enunciação para mostrar que durante a escrita do
enunciado tentara a todo custo prolongar a descrição do momento da desagregação
da amizade com Frederico Paciência. É um balanço que Juca faz dessa relação.
Si no começo invejei a beleza física, a
simpatia, a perfeição espiritual normalíssima de Frederico Paciência, e até
agora sinto saudades de tudo isso, é certo que essa inveja abandonou muito cedo
qualquer aspiração de ser exatamente igual ao meu amigo. Foi curtíssimo, uns
três meses, o tempo em que tentei imitá-lo. Depois desisti, com muito
propósito. E não era porque eu conseguisse me reconhecer na impossibilidade
completa de imitá-lo, mas porque eu, sinceramente, sabei-me lá por que! não
desejava mais ser um Frederico Paciência! (p.121)
Temos
aqui uma fratura na narrativa, o que nos permite dividir o conto em duas
partes: a intensificação da amizade e a desintensificação da mesma. Enquanto a
primeira parte era marcada pelo conflito entre o individual e o social, essa
segunda parte apresenta grande recorrência da palavra “desagregação”. Trata-se
de uma “desagregação muito negada”, que apresenta um pretexto e um motivo
verdadeiro. O pretexto refere-se ao fato de Frederico Paciência precisar
dedicar-se muito aos estudos para entrar no curso de Medicina e Juca não se
importar com os estudos. Já o motivo verdadeiro se relaciona a esse conflito
diante da possibilidade de se emergir uma identidade homoerótica na
personalidade do narrador. Para evitar essa
configuração dessa identidade, Juca procura construir uma identidade masculina
legitimada pelo poder patriarcal, em pelo menos três momentos do conto.
Um
primeiro momento relaciona-se à surra que Juca deu no rapaz que fizera insinuações
a respeito de sua relação com Frederico. Podemos nos questionar: Se Frederico
já havia surrado o rapaz, por que Juca queria fazer o mesmo? Basta lembrar que
Juca, desde o início da narrativa, busca ser como Frederico Paciência e imita suas ações. Apesar de a surra representar uma espécie de vingar
Frederico, percebemos, como
já apontamos anteriormente, uma afirmação de uma identidade masculina: “quando
a gente age como
um homem-feito”.
Anteriormente
ao episódio da briga, vale a pena ressaltar a presença do livro “História da
prostituição na Antigüidade”. Em consulta ao manuscrito do conto, guardado no
acervo do IEB, encontramos algumas referências suprimidas na versão definitiva
do conto. No episódio do livro, o narrador mente “cachorramente” na versão
original, e “apressadamente” na definitiva. E, antes de constatar que
“Frederico Paciência não estava acreditando mais em mim”, o narrador demonstra
se guiar pela mentira, como
se observa na versão original:
Falei, falei depressa que achara o livro
nos guardados do meu mano, estava lendo mas só por causa do meu mano ]mas só
pra saber o que era], mal principiara o segundo capítulo (quando era a décima
releitura) e de fato estava principiando a perceber que era só pornografia, como é que se escrevia um
livro daqueles. E ... ia soltar outra admiração gorda, sarapantado de haver por
esse mundo, alem de quem escrevesse aquilo, quem lesse... mas percebi que (...)
Como vimos, no quadro das modalidades
veridictórias, que a Semiótica fornece para o exame das relações entre verdade
e mentira, falsidade e segredo, dentro do nível narrativo do texto, uma
personagem pode interpretar esses estados como verdadeiros (que parecem e são),
falsos (que não parecem e não são), secretos (que não parecem, mas são) e
mentirosos (que parecem, mas não são). No exame da mentira contada por Juca,
esta personagem busca se guiar pelo parecer: teria achado o livro entre os
pertences de seu irmão, apenas leu até o começo do segundo capítulo,
escandalizou-se por perceber que havia apenas pornografia no livro,
surpreendeu-se por haver quem escrevia e quem lia esse tipo de texto. No
entanto, “ia soltar outra admiração gorda”, expressão que figura o discurso da
mentira, quando “percebi que Frederico Paciência não estava acreditando mais em
mim, me calei”. Dessa forma, os estados mentirosos do narrador são desvelados pela
atitude de Frederico de não acreditar na mentirosa “admiração gorda” do
narrador acerca de como
obteve o livro.
Vale, ainda, lembrar que no manuscrito
original, no lugar de “Ele agora estava me olhando na cara outra vez, sereno,
generoso, e menti”, havia: “Ele agora estava me olhando na cara outra vez, me
olhando muito, examinando, querendo me adivinhar e menti”.
Há uma grande diferença na construção semântica desse fragmento, pois no
manuscrito, a ênfase recai sobre o olhar, de forma intensa (“me olhando muito”)
e na interpretação dos estados do narrador, realizada por Frederico
(“examinando, querendo adivinhar”). Embora o próprio Juca julgue disforicamente
sua atitude (“menti cachorramente”), o mesmo revela, na sua estrutura
psicológica, tamanha predisposição para a mentira, que chega até mesmo a
acreditar nela: “menti apressadamente, com um tal calor de sinceridade que eu
mesmo não chegava bem a perceber que era tudo mentira”. Temos, aqui, a
estrutura duplicada do cabotino: as duas sinceridades de Mário de Andrade (os
motivos inconfessáveis e as razões oficialmente confessadas), correspondentes à
duplicação do sujeito (lado imanente e lado manifesto), parecem aqui se chocar
mais ainda, na estrutura conflitiva do narrador.
Além da importância do episódio do livro
para o desmascaramento da sinceridade dos “móveis aparentes”, constatamos
também que Juca se vale desse livro para ver as reações de Frederico Paciência.
Chega a emprestar o livro para seu amigo que “caiu inteiramente na armadilha”
(p.113). Juca parece querer averiguar o jogo das identidades, pois constata que
Frederico se surpreendeu com o livro: “Ele, inteiramente entregue, confessava,
agora que estava liberto do livro, que ler certas coisas, apesar de horríveis,
„dava sensação esquisita, Juca, a gente não pode largar‟”.” (p.113). No
entanto, como nada desse narrador em constante
conflito parece ser gratuito no conto, percebemos que estar diante de um livro como aquele revelaria uma
nova tentativa de construção de uma identidade masculina, já que o livro
enfocava, decerto, as mulheres prostitutas.
Esse
travar relações com mulheres, mesmo que em livros, aponta para o desejo de se
libertar de uma possível identidade homoerótica. No começo da segunda parte do
conto, que chamamos anteriormente de “desintensificação da amizade”, o contato
com mulheres se faz mais presente na vida de Juca e provoca mais assimetrias na
relação entre este e Frederico.
Tinha
outras razões mais amargas, tinha os bailes. E havia a Rose aparecendo no
horizonte, muito indecisa ainda. Se pouco menos de um ano antes, conhecêramos
juntos para que nos servia a mulher, só agora aos dezesseis, é que a vida
sexual se impusera entre os meus hábitos. Frederico Paciência parecia não
sentir o mesmo orgulho de demonstração e nem sempre queria me acompanhar. Às
vezes me seguia numa contrariedade sensível. O que me levava ao despeito de não
o convidar mais e a existir um assunto importantíssimo pra ambos, mas pra ambos
de importância e preocupações opostas. A castidade serena de meu amigo, eu
continuava classificando de “infâncias”.
Frederico
Paciência, por seu lado, se escutava com largueza de perdão e às vezes certa curiosidade os meus descobrimentos de amor, contados quase
sempre com minúcia raivosa, pra machucar, eu senti mais de uma vez que ele se
fatigava em meio da narrativa insistente e se perdia em pensamentos de
mistério, numa melancolia grave. E eu parava de falar. Ele não insistia. E
ficávamos contrafeitos, numa solidão brutalmente física (p.119).
No fragmento acima, encontramos um jogo
do saber e do não saber, em que o narrador revela certa crueldade ao fazer o
relato de suas experiências amorosas ao amigo: “contados quase sempre com
minúcia raivosa, pra machucar”. Essa crueldade desperta em Frederico uma
“melancolia grave”, espécie de ciúmes deste em relação a Juca.
Como vimos ao tratarmos do conto “Túmulo,
túmulo, túmulo”, também em primeira pessoa, o narrador parece não “sair do
armário”, apresentando certa economia discursiva entre o silêncio e a fala, de
que trata Barcellos. Em “Frederico Paciência”, como em “Túmulo, túmulo,
túmulo”, o narrador oscila entre o dizer e o não dizer, por meio das metáforas
que serviriam como pistas para identificar a configuração de uma possível
nuance homoerótica de sua personalidade. Muitas dessas nuances operam no nível
do implícito, pela configuração simbólica e metafórica.
“contrariedade sensível”, “castidade
serena de meu amigo”, “infâncias”, “escutava com largueza de perdão”. Já o
percurso da impureza refere-se a Juca: “a vida sexual se impusera entre os meus
hábitos”, “orgulho de demonstração”, “os meus descobrimentos de amor”. O
estabelecimento desses dois percursos figurativos opostos correlaciona-se à
proposta de Anatol Roselfeld, que toma por base o ensaio de Mário de Andrade
sobre o cabotino. Aqui, o cabotino desdobra-se em duas personagens opostas: o
da pureza e o da impureza. O primeiro relaciona-se à identidade do sujeito
consigo mesmo, sem mescla psíquica, refere-se a Frederico e suas “infâncias”.
Já o segundo está relacionado a Juca e seu “orgulho de demonstração”, pois esta
personagem se preocupa com os “móveis aparentes”, precisando mostrar ao outro
suas conquistas amorosas para se afirmar enquanto sujeito.
É o narrador quem interpreta as atitudes
de Frederico Paciência disforicamente como
“infâncias”. Os bailes aparecem, nesse contexto, como a necessidade de afirmação de uma
identidade heterossexual, que começa a ser esboçada de forma conflitante com os
desejos homossexuais de Juca em relação a Frederico. O amor proibido dos dois
adolescentes encontra novos obstáculos nos bailes e em Rose,
“aparecendo no horizonte, muito indecisa ainda”. A imagética de Rose aparecendo
indecisa no horizonte serve para acentuar o conflito de identidades sexuais.
Nos jogos identitários conflitivos é Rose quem vence e afasta do narrador a
construção da identidade homoerótica. Em “O peru de Natal”, Rose é transportada
do horizonte nebuloso dos dezesseis anos para a noite natalina dos dezenove
anos do narrador:
Levantamos. Eram quase duas horas, todos
alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou
mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a
Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra
poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei
pra ela, modo de contar onde é que eu ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras
duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!... (p.103).
Além de Rose, os bailes interpõem-se como obstáculos para a
construção da identidade homoerótica de Juca. O fato de Juca demonstrar uma
não-aceitação dessa identidade possível faz com que este agrida Frederico, como ocorre no episódio
do livro sobre prostituição: “Era tristeza, era tristeza sim o que eu sentia,
mas com um pouco também de alegria de ver o meu amigo espezinhado, escondendo
que não me acreditava, sem coragem pra me censurar, humilhado na insinceridade.
Eu me sentia superior!” (p.102).
Novamente, encontramos a “insinceridade” como valor aparentado à
impureza, na análise de Rosenfeld. Outro importante episódio que demonstra o
que Alfredo Bosi chamou de “intimidade assimétrica”, ao tratar de “Nízia
Figueira, sua criada”, centra-se nos bailes freqüentados pelos dois amigos. Tal
como numa dança
dramática de proximidade e distanciamento, os bailes acentuam a aceitação e a
recusa de Juca no que se refere a Frederico. O parágrafo do conto relativo a
esses bailes foi suprimido por Mário de Andrade da versão definitiva. Porém,
resgatamos esse fragmento do manuscrito do autor e o transcrevemos na íntegra
para uma posterior análise:
Também por esse tempo se firmara em nós a
entrada na primeira mocidade. Já choviam os convites pra bailes, pra festinhas,
piqueniques, nasciam clubes. Eu é que ensinava Frederico Paciência a dançar,
mas ele foi sempre dançarino ruim. Tinha era convite do corpo deslumbrante, bem
são. As meninas o adoravam, caiam (davam) em cima dele e ele se fatigava. Meio
que se irritava com aquelas demonstrações que imaginava descaradas.
Eu sim, era lânguido, traiçoeiro,
intérprete, dançando. Dançava “com estylo”, como falou um dandy velho, poeta especialista
na arte de amar, que me observou. As meninas não me adoravam, mas adoravam
dançar comigo. Ora eu é que dançava por interesse. Namorava sem ser aceito.
Procurava a sensação dos contatos. Mas si raro conseguia uma pequena só pra
mim, nunca era exatamente despedido porque as meninas achavam bom dançar
comigo. Frederico Paciência dançava pouco, eu demais. Ele dançava por dançar e
era o apertado. Com o caso do beijo (abraço) que uma menina
(garota) lhe deu num piquenique, não sei si foi por despeito, mas abri os olhos
dêle duma vez. Mostrei que as meninas gostavam não era de dançar com ele, mas
“gosa-lo”. Ele quis reagir, fingindo revelação, mas-de-fato já sabia daquilo
sem se resolver a pensar com franqueza no caso. Ficou insultado. Num caso de
perfeição como
o dele, é compreensível que se insultasse, não estava agora pra ser
aproveitamento de ninguém.
Esse trecho completa o sentido de outro,
localizado no final do conto: “Me lembro de uma feita, diante da irritação
enorme dêle comentando aquela (uma) pequena que o beijara no piquenique
(abraçara num baile), sem a menor intenção de trocadilho, mais internamente
glorioso, sem saber o que dizer (só pra falar alguma coisa)”. Como o fragmento supracitado foi retirado, no
lugar de “aquela pequena”, do manuscrito original, o autor operou a escolha
lexical de “uma pequena”. Ora, o pronome demonstrativo “aquela” pressupõe o já
conhecido pelo leitor, enquanto o artigo indefinido “uma” parece introduzir uma
informação nova. Nova? Pelo menos na versão definitiva, a recusa de mulheres
por Frederico não fica tão explícita como
na versão original. Da mesma forma, o beijo, tanto no fragmento longo como neste último, é
substituído, na versão definitiva, pelo abraço. Assim, o beijo vira abraço, o
piquenique vira baile, enfim, o explícito se transforma em implícito e o
narrador, anteriormente glorioso por espezinhar o amigo, apenas profere o
famoso trocadilho: “Paciência, Rico”, que será analisado mais adiante.
Estariam no longo fragmento suprimido da
versão definitiva elementos da recusa da heterossexualidade e da afirmação da
homossexualidade, tão silenciada por Mário de Andrade na sua produção
literária? Em outro fragmento encontrado no acervo do escritor, deparamo-nos
com o seguinte projeto inconcluso: “Fazer um conto com a vida daquele aleijado
maleno que vivia na escadaria do Correio mandando nos meninos homossexuais, que
está na 1ª parte do Café. Ajuntar na personalidade dele a personalidade do
marujo que se tatuava, do mesmo livro.” Onde estão os meninos homossexuais?
Provavelmente silenciados na economia discursiva de Mário de Andrade, que
abandonou esse projeto e reelaborou, por dezoito anos, o conto “Frederico
Paciência”, optando pelo implícito no lugar do explícito, evitando, assim,
possíveis choques com o poder normativo da sociedade patriarcal, que reprimia
qualquer desvio da norma de comportamento sexual.
Em aviso sobre plano de publicação de Contos novos,
Mário de Andrade adverte: “Briga das pastoras‟ já foi publicado – E não
pertencerá ao livro, não presta.
"Vestida de preto‟, „Primeiro de Maio‟ e
„Perú de Natal‟ já foram publicados. "Frederico Paciência‟ não se publica si
não no livro, pelo melindroso do assunto”. O “melindroso do assunto” seria uma
referência ao tratamento da questão homossexual presente no conto, o que
explica que este não tenha sido publicado em revistas antes da posterior
publicação em livro.
Se há uma economia discursiva para tratar
do tema tabu ao longo do conto, no fragmento supracitado a construção
identitária de Frederico Paciência parece ficar mais explícita. Primeiramente,
percebemos aqui o predomínio da assimetria sobre a intimidade. Ao contrário de
“Nízia Figueira, sua criada” e “Túmulo, túmulo, túmulo”, cujas relações
sintáticas se orientam da assimetria para a intimidade, em “Frederico
Paciência”, ocorre o contrário. Em nenhum momento do conto, encontramos Juca
tão intenso quanto aos seus desejos sexuais: “dançava „com estylo‟”, “eu é que
dançava por interesse”, “namorava sem ser aceito”, “procurava a sensação dos
contatos”. Além disso, a impureza, no sentido de mescla psíquica e fingimento,
aparece na auto-caracterização do narrador cabotino: “Eu sim, era lânguido,
traiçoeiro, intérprete, dançando”. Se Frederico Paciência parece continuar o
cultivo das “infâncias”, Juca deixa a pureza infantil para adentrar no universo
adulto, representado pela “entrada na primeira mocidade”.
Frederico parece orientar-se por certa
misoginia ou uma recusa total do contato físico com mulheres, como é demonstrado pelo narrador na descrição
do episódio dos bailes: “meio que se irritava com aquelas demonstrações que
imaginava descaradas”, “dançava pouco”, “mostrei que as meninas gostavam não
era de dançar com êle, mas gosa-lo”. Se Frederico Paciência está no paradigma
da perfeição e da pureza (valor tão desejado por Mário de Andrade ao longo da
sua obra, porém nunca obtido), não seria arriscado afirmar que o autor parece
centrar sua análise nessa personagem com fortes traços homossexuais. Tanto
nessa narrativa como
em “Túmulo, túmulo, túmulo”, apesar da economia discursiva e da relativização
dos desejos, o autor transforma o amor em amizade naquele texto, e chama o
conto em análise de “Frederico Paciência”, revelando sua orientação axiológica:
simpatia com a homossexualidade e necessidade de mascaramento dessa sexualidade
interdita pelos padrões sociais da época.
Aqui, a figura do autor parece suplantar
o narrador Juca, pois enquanto este parece rechaçar o comportamento do amigo,
Mário demora dezoito anos para compor essa figura de “solaridade escandalosa”,
que aparece tanto para o autor como para o narrador como “assombração
insatisfeita”, por não ter se concretizado no plano físico.
Há um determinado momento do parágrafo
transcrito em que as noções de autor e enunciador parecem se confundir, pois a
sanção cognitiva disfórica de Juca em relação
às
atitudes misóginas de Frederico dá lugar à voz silenciada do autor: “Ficou
insultado.
Num caso de perfeição como o dele, é compreensível que se
insultasse, não estava agora pra ser aproveitamento de ninguém”.
Espezinhar o outro, humilhar o outro
parecem formas de o narrador tentar destruir qualquer traço homoerótico de sua
personalidade, já que sua identidade se construía na relação com esse outro.
Mas essa não-aceitação, por apresentar mecanismos de fuga (episódios do livro,
da briga e do contato com mulheres), acaba se revelando no discurso do
narrador, por meio dos implícitos do texto. As “infâncias” de que tanto fala o
narrador a respeito de Frederico representariam a ausência de contato com
mulheres.
Parece que para Frederico a questão da
identidade sexual estava resolvida, o que não ocorre para Juca. Na descrição de
uma primeira aproximação física entre os dois, Juca oscila entre o amor e o
medo, entre a pureza e a impureza.
Mas de tudo isso, do livro, da
invencionice dos colegas, da nossa revolta exagerada, nascera entre nós uma
primeira, estranha frieza. Não era medo de calúnia alheia, era como um quebrar de esperanças insabidas, uma
desilusão, uma espécie amarga de desistência. Pelo contrário, como que basofientos, mais diante de nós
mesmos que do mundo, nasceu de tudo isso o nos aproximarmos fisicamente um do
outro, muito mais que antes. O abraço ficou quotidiano em nossos bons-dias e
até-logos. (p.117)
A aproximação física de Juca e Frederico
que parece se dar de forma intensa, ao mesmo tempo causa certo receio. Amor e
medo andam juntos nessa relação. Nesse fragmento, encontramos vários
anti-sujeitos do percurso de aproximação dos dois adolescentes: o livro, a
discriminação dos colegas, o “quebrar de esperanças insabidas”, a “estranha
frieza”, a “desilusão”, a “espécie amarga de desistência”. Juca parece lutar
durante todo o tempo contra esse amor homoerótico, numa espécie de auto-censura
na concretização dos seus desejos. Um conflito tão intenso e exasperado que faz
com que o narrador pense até em morrer, como
forma de fugir daquela situação de conflito interno.
Então
eu quis morrer. Si Frederico Paciência largasse de mim...Si se aproximasse
mais...
Eu quis morrer. Foi bom entregar o livro,
fui sincero, pelo menos assim ele fica me conhecendo mais. Fiz mal, posso fazer
mal a ele. Ah que faça! ele não pode continuar aquela “infância”. Queria
dormir, me debatia. Quis morrer. (p.111)
No momento que chamamos de
“intensificação da amizade”, as paixões de Juca e de Frederico são tão intensas
que caminham para a concretização da identidade homoerótica. No entanto, esse
momento é marcado por intensos conflitos, como
o fato de Juca saber que não consegue atingir essa identidade, mas ao mesmo
tempo desejar estar com Frederico. Um medo muito intenso de que Frederico
pudesse deixá-lo, mas ao mesmo tempo um medo incontrolável de que o amigo
pudesse se aproximar mais. Todo esse conflito irá desembocar no segundo momento
do conto, que chamamos de “desintensificação da amizade”. Nesse momento,
ocorrem algumas “mortes” na vida de Frederico: a morte do pai, a morte da mãe e
a morte da amizade com Juca.
Meu amigo sofreu muito. Mas, sem indicar
insensibilidade nele (aliás era natural que não amasse muito um pai que fora
indiferentemente bom) me parece que a dor maior de Frederico Paciência não foi
perder o Pai, foi a decepção que isso lhe dava. Sentiu um espanto formidável
essa primeira vez que deparou com a morte. Mas fosse decepção, fosse amor,
sofreu muito. Fui eu a consolar e consegui o mais perfeito dos sacrifícios,
fiquei mudo, ali. O melhor alívio para a infelicidade da morte é a gente
possuir consigo a solidão silenciosa duma sombra irmã. Vai-se pra fazer um
gesto, e a sombra adivinha que a gente quer água, e foi buscar. Ou de repente
estende o braço, tira um fiapo que pegou na vossa roupa preta. (p.123)
Fica evidente aqui uma oposição entre as
personagens Juca e Frederico. Enquanto o primeiro assume o papel de pai ao
consolar o amigo da perda de um pai “que fora indiferentemente bom”, o segundo
exerce o papel de filho, com um “espanto formidável” ao se deparar com a morte,
a qual ganha uma conotação de ruptura. Perder o pai biológico representaria
perder o modelo masculino, que mais adiante vai ser substituído por Juca. No
trecho “a dor maior de Frederico Paciência não foi perder o Pai”, chama-nos a
atenção que nesse conto as palavras “pai” e “mãe” são grafadas com letras
maiúsculas, o que é explicado por Telê Ancona Lopez: “o resgate da experiência
homossexual compensa a transgressão grafando „Pai‟ e „Mãe‟ sempre com iniciais
maiúsculas, como o nome de Deus”. Temos, então, na marcação estilística desse
narrador, elementos que denotam sua auto-censura na rememoração da experiência
homoerótica com Frederico Paciência, pois Pai, Mãe e Deus atuariam como instâncias sancionadoras do que seria a ruptura com as normas sociais
preestabelecidas na sociedade patriarcal.
As relações substitutivas de pai e filho
intensificam-se depois do enterro do pai de Frederico, quando Juca recomenda
que este descanse um pouco e o mesmo obedece.
Ele deitou, exagerando a fadiga, sentindo
gosto em obedecer. Sentei na borda da cama, como que pra tomar conta dele, e olhei o meu
amigo. Ele tinha o rosto iluminado por uma frincha de janela vespertina. Estava
tão lindo que o contemplei embevecido. Ele principiou lento, meio menino,
reafirmando projetos. (p.124)
As expressões “sentindo gosto em
obedecer”, “pra tomar conta dele”, “meio menino” reforçam a posição filial de
Frederico Paciência em relação a Juca. Juca passa a substituir a figura do pai
ausente de Frederico. No entanto, apesar da intensificação da amizade entre os
dois rapazes, a partida de Frederico para o Rio de Janeiro acabou por separá-los. Juca
ainda tenta uma aproximação ao saber da morte da mãe do seu amigo, no entanto,
a auto-censura do narrador faz com que o mesmo desista desse contato.
Desta vez o cadáver não seria empecilho,
seria ajuda, o que nos salvou foi a distância. Não havia jeito de eu ir ao Rio . Era filho-família, não tinha dinheiro. Ainda assim
pedi pra ir, me negaram. E quando me negaram, eu sei, fiquei feliz, feliz! Eu
bem sabia que haviam de me negar, mas não bastava saber. Como que eu queria tirar de cima de mim a
responsabilidade da minha salvação. Ou me tornar mais consciente da minha
pobreza moral. Fiquei feliz, feliz! Mandei apenas “sinceros pêsames” num
telegrama. (p.128)
A auto-censura do narrador vem marcada no
seu discurso pelas seguintes expressões: “o que nos salvou”, “salvação”,
“pobreza moral”. Dessa forma, a identidade homoerótica acaba não sendo
totalmente construída, pois existe dentro da consciência do narrador um forte
sentimento de culpa, uma sensação até mesmo de pecado, pois já que o processo
de construção da identidade se forma na relação com a sociedade, e esta não
aceitaria uma relação homossexual, o narrador opta por aderir a essa sociedade
e nega a possibilidade do homoerotismo.
Tudo o mais foram idealismos, vergonhas,
abuso de preconceitos, a última semana foram dias de noivado pra nós, que de
carícias! Mas não quisemos, tivemos um receio enorme de provocar um novo
instante como
aquele de que o morto nos salvara. Não se trocou mais palavra sobre o sucedido
e forcejamos por provar um ao outro a inexistência daquela realidade
estrondosa, que nos conservara amigos tão desarrazoados mas tão perfeitos por
mais de três anos. Positivamente não valia a pena sacrificar perfeição tamanha
e varrer a florada que cobria o lodo (e seria o lodo mais necessário, mais
“real” que a florada?) numa aventura insolúvel. Só que agora a proximidade da
separação justificava a veemência dos nossos transportes. Não saíamos da casa dele,
com vergonha de mostrar a um público sem nuanças, a impaciência das nossas
carícias. (p.125-6)
Novamente, há um novo balanço que Juca
faz de sua relação com Frederico Paciência, num trecho que elucida as questões
da auto-censura e do conflito interno do narrador. A oposição entre pureza e
impureza da primeira parte da narrativa é marcada aqui pela configuração
metafórica da florada em oposição ao lodo, uma florada que seria mais
necessária que o lodo, porque a primeira representa a pureza, não no sentido
atribuído por Rosenfeld, mas o ideal que a sociedade espera, enquanto o lodo
representa o entregar-se ao amor homossexual, o que representaria a satisfação
das paixões individuais do narrador. O receio e a vergonha aparecem como paixões de
consciência dessa impossibilidade de satisfação de desejos, isto é, de
concretizar essa “aventura insolúvel”. Dessa forma, o fragmento acima citado
parece apontar para o desenlace do conto: Juca prefere optar pelas convenções
sociais e deixar de lado suas paixões individuais.
Consideramos o fragmento citado de
extrema relevância para entendermos a personalidade do narrador de “Frederico
Paciência”, nas nuances de seus conflitos e do processo de construção da
identidade. Ao estabelecer as relações entre enunciação e enunciado dos Contos
novos, Rabello descreve como
o discurso do narrador se revela reprimido no tempo do enunciado e retorna a
questão da identidade homoerótica no momento da enunciação.
Em “Frederico Paciência”, o movimento do
narrador (...) dá forma ao pensamento torturado que busca a significação de uma
vivência proibida. O desejo homossexual, interditado na fala e reprimido na
vida do adolescente Juca, retorna como
escrita ao presente da enunciação. O desejo que não tivera espaço de realização
na vida pregressa é nomeado, na situação do presente do narrador, na
metáfora que reafirma a censura e nas justificativas suspeitas.
O desejo de que fala Rabello é expresso
no fragmento citado, em que o narrador vê suas pulsões como um lodo, reafirmando a censura e o desejo
homossexual interditado na fala e reprimido em sua vida. Temos, então, Juca, no
momento de produção de seu discurso ou enunciação reavaliando sua vida ao
produzir seu discurso. Antes de iniciar a descrição do momento de desagregação
da amizade com Frederico Paciência, Juca deixa marcas da enunciação no seu
discurso: “Estou lutando desde o princípio destas explicações sobre a
desagregação da nossa amizade, contra uma razão que me pareceu inventada
enquanto escrevia, para sutilizar psicologicamente o conto. Mas agora não
resisto mais.” (p.121)
O momento de auto-avaliação se dá durante
o processo da enunciação. Pela debreagem temporal enunciativa, Juca procura,
enquanto narrador, retardar a descrição dos acontecimentos que propiciaram a
desagregação de sua amizade com Frederico Paciência. Durante o tempo do então,
isto é, o tempo em que Juca conheceu Frederico, ocorre um desejo de “acabar com
aquela „infância‟” (p.110), de “acabar com aquela „amizade besta‟” (p.100).
Esse tempo do então, ou ainda tempo do enunciado, dividimos em momento de
intensificação da amizade e momento de desintensificação.
No momento da intensificação, tanto Juca como Frederico parecem
estar comungados do mesmo objetivo. Possuem a amizade como
objeto modal, como
relação necessária para o alcance do objeto valor identidade. No entanto, no
percurso passional, cada uma das personagens apresenta sentimentos diferentes
em relação a essa amizade: Frederico a vive plenamente e de forma sincera,
enquanto Juca a encara com jogos e disfarces de forma insincera.
Durante praticamente todo o momento de
intensificação da amizade, o plano da mentira
aparece muitas vezes, como no momento em que
Frederico Paciência começa a fazer planos para irem morar juntos no Rio : “Fiquei de pensar e, dialogando com as aspirações
dele, pra não ficar atrás, meio que menti. Acabei mentindo duma vez. Veio
aquele prazer de me transportar pra dentro do romance, e tudo foi se realizando
num romance de bom-senso discreto, pra que a mentira não transparecesse”
(p.109). No episódio do livro, o plano da mentira e o da sinceridade chegam a
se confundir nas atitudes de Juca ao ficar extasiado com o fato de Frederico
ter desaprovado o livro: “Ele agora estava me olhando na cara outra vez,
sereno, generoso, e menti. Fui de uma sem-vergonhice grandiosa, menti
apressadamente, com um tal calor de sinceridade que eu mesmo não chegava bem a
perceber que era tudo mentira”(p.112-3).
Juca apresenta um momento de verdade em
relação a Frederico Paciência, quando lhe confessa o que sente, logo no início
da narrativa: “Depois da aula, naquela pequena parte do caminho que fazíamos
juntos até o largo da Sé, puxando o assunto para os colegas, afinal acabei,
bastante atrapalhado lhe confessando que ele era o meu
„único‟ amigo” (p.107). A confissão
implica em verdade, no entanto, o narrador parece não ser capaz de manter esse
estado de verdade durante toda a relação com Frederico Paciência, passando a se
valer de jogos para evitar qualquer tipo de concretização desse amor que para
ele, narrador, era interdito.
Frederico, por outro lado, vive essa
relação de forma muito mais sincera, pois faz planos para os dois morarem
juntos no Rio e chega a demonstrar sinceridade
em muitos momentos do conto. A sua perfeição moral e física, sua solaridade
escandalosa, tão ressaltada por Juca ao longo do conto, refletem o estado de
sinceridade. Na dimensão do “armário” citada por Barcellos, Frederico já “saiu
do armário”, sua solaridade escandalosa reflete uma aceitação de sua possível
identidade homoerótica. Juca sabe dessa sinceridade e busca ser sincero na
relação de alteridade com Frederico:
“O olho, o procuro nos olhos, lhe
devorando os olhos internados, mas o olho com tal ansiedade, com toda a
perfeição do ser, implorando me tornar sincero, verdadeiro, digníssimo...”
(p.112) A grande recorrência da palavra “olho”, como verbo e substantivo, dá a
dimensão do olhar de Frederico como forma de Juca penetrar no universo da
sinceridade. Mas Juca não consegue adentrar esse universo, pois as amarras
sociais e sua auto-censura revelam-se dominantes na sua dimensão conflitiva, o
que causa a desagregação da amizade, percebida no momento que chamamos de “desintensificação
da amizade”.
No momento da desintensificação da
amizade, o plano
rítmico do conto possibilita uma marcação entre as diferenças de comportamento
de Juca e de Frederico Paciência. Esse ritmo está ligado com a dimensão
temporal, que se relaciona com a iminência do término da amizade. No aspecto
temporal, cada uma das personagens lida de forma diferente com o tempo, resultando
na oposição paciência x impaciência presente no texto.
Durante todo o conto, enquanto Frederico
busca apressar o tempo para estar conjunto com Juca, o narrador busca o
adiamento desse tempo, pois tem a consciência da impossibilidade de
concretização do amor homoerótico. É notório, no momento da enunciação, o fato
de o narrador procurar retardar o momento de “desintensificação da amizade”.
Assim, Frederico busca vivenciar a amizade por Juca de forma intensa, enquanto
o narrador quer viver essa amizade no seu aspecto extensivo, adiando o mais que
puder o momento da ruptura entre ambos.
No que concerne à temporalidade mnésica
(referente ao passado e ao futuro), o narrador deixa transparecer sua
predileção pelos valores extensos, aqueles que permitem a formação de durações
e que requerem necessariamente um andamento desacelarado. O sujeito paciente
espera o futuro em sua dimensão extensa, ou se quisermos, adiada, retardada,
etc. Do mesmo modo, esse sujeito rejeita o futuro em sua dimensão intensa, ou
seja, como iminência
decorrente de algum tipo de apressamento ou de antecipação.
Assim, a “desagregação” da amizade, que
aparece em várias passagens do conto, parece ser adiada pelas mortes do pai e
da mãe de Frederico. Juca adia a todo o momento a ruptura da amizade com Frederico.
No momento da despedida dos dois, o narrador parece protelar com paciência a
narração da despedida. “Afinal a despedida chegou mesmo. Curta, arrastada,
muito desagradável, com aquele trem custando a partir, e nós ambos já muito
indiferentes um pelo outro, numa já apenas recordação sem presença, que não
entendíamos nem podia nos interessar.” (p.127).
Consideramos de fundamental importância a
palavra “paciência” no conto, principalmente no desenlace, com a partida de
Frederico para o Rio de Janeiro
e a diminuição gradativa de sua permanência na memória de Juca: “A imagem dele
foi se afastando, se afastando, até se fixar no que deixo aqui.” (p.129). No
entender de Luiz Tatit, “Ter paciência é, ainda, poder se apropriar do tempo em
sua forma extensa, expandida, eliminando, como
já vimos, os estados de urgência.”. O próprio narrador, no tempo da enunciação,
durante a produção do seu relato, faz uma reflexão sobre a paciência. O
narrador lembra de um episódio em que Frederico demonstrou irritação por ter
sido abraçado por uma moça num baile. Nesse episódio, o narrador diz
“Paciência, Rico.” ao que este lhe responde “Paciência me chamo eu”.
O diálogo acima transcrito oferece
algumas incongruências no nome da personagem-título do conto. Como vimos pelo percurso passional dos dois
adolescentes, Frederico busca apressar o tempo para vivenciar todas as
possibilidades da amizade com Juca. No entanto, este, devido às coerções
proibitivas do espaço social em que se encontrava e também devido à sua
auto-censura e não aceitação de uma possível identidade homoerótica, prefere
retardar o tempo para adiar as possibilidades de vivenciar a plenitude desse
sentimento proibido. Ora, se ter paciência é poder se apropriar do tempo de
forma extensa, Juca seria o sujeito paciente e não Frederico, que tem a
paciência apenas no nome. Juca não age, ele não toma decisões de ir para o Rio de Janeiro com
Frederico. Este sim é o agente, já que não via coerções na configuração de sua identidade sexual. É ele quem opta por agir, enquanto Juca
permanece no estado de “assombração insatisfeita”
Não guardei este detalhe para o fim, pra
tirar nenhum efeito literário, não. Desde o princípio que estou com ele pra
contar, mas não achei canto adequado. Então pus aqui porque, não sei... essa
confusão com a palavra “paciência” sempre me doeu mal-estarentamente. Me queima
feito uma caçoada, uma alegoria, uma assombração insatisfeita. (p.129)
Rabello descreve, em muitos momentos do
seu ensaio, a importância da rememoração feita pelo narrador dos contos
“Vestida de preto”, “O peru de Natal”, “Tempo da camisolinha” e “Frederico
Paciência”, como forma de o narrador já adulto buscar, nessa rememoração de fatos
ocorridos na sua infância e adolescência, o seu “sentido da vida", a sua
própria identidade. Todavia, esse movimento de busca de elementos do passado
para atingir o auto-conhecimento, é marcada por constantes tensões e conflitos,
como vemos na
análise do conto “Frederico Paciência”.
Na leitura de Paulillo, a frase
“Paciência me chamo eu!” é compreendida como espécie de chave da personalidade
de Frederico que ainda, no plano da enunciação, “queima feito uma caçoada” em
Juca, como uma “assombração insatisfeita” pelo fato de revelar, ao mesmo tempo,
“a aceitação total de Frederico em relação à amizade que Juca jamais conseguiu
assumir inteiramente” e “a incapacidade do Juca adolescente e do narrador
adulto entenderem um ser que estava acima da fraqueza e da ambivalência humana”.
Ainda sobre a “assombração insatisfeita”,
esta sugere a incompletude na relação de Juca com Frederico. O espelho do eu
representado por Frederico parece não ter mais reflexo. A “assombração
insatisfeita” sugere, também, se quisermos as palavras de Lafetá, “a imagem da
crise (ou a crise da imagem?), a máscara de uma intimidade atormentada, feita
de mutilações e desencontros, uma espécie de espelho sem reflexo”.
O que deve ficar claro é o fato de a
palavra assombração ser utilizada com freqüência por Mário de Andrade nos seus
escritos, no sentido do retorno de uma emoção passada para o presente. Dessa
forma, no jogo das identidades, há um embate do narrador consigo mesmo e com a
sociedade que busca moldar seus comportamentos.
Apesar de intitular o conto “Frederico
Paciência” e de querer apresentar ao narratário essa personagem, o narrador, ao
falar do outro, acaba por se revelar nas entrelinhas do discurso, uma vez que
ao fugir do outro, foge de si mesmo e, por conseguinte, não atinge sua
plenitude e muito menos a “solaridade escandalosa” do amigo, permanecendo,
assim, na insatisfação das sombras.
A construção da narrativa de “Frederico
Paciência”, dentro do quadro do viés memorialístico, representa uma tentativa
de construção da identidade, a qual se apresenta sem contornos definidos. É o
espelho sem reflexo, imerso em angústia e insatisfação. Na construção da
identidade, operam conceitos internos e externos. Dessa forma, Juca apresenta
uma identidade cambiante em todo momento do conto, como
também nos contos “Vestida de preto” e “O peru de Natal”. Em nenhuma dessas
duas narrativas, o narrador consegue superar seus conflitos internos diante de
um ambiente familiar opressor. Em “Frederico Paciência”, como já comentamos, o conflito é intenso, é
muito maior que a rede conflitiva dos outros dois contos: trata-se da
dificuldade de aceitação de uma identidade homoerótica que começa a se delinear
na relação com o outro.
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Fonte:
Fonte:
Fernando de Moraes Gebra: “Identidades
intersubjetivas em contos de Mário de Andrade”. (Tese apresentada ao
Curso de Pós-Graduação em Letras- Área de Estudos Literários, da Universidade
Federal do Paraná, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Doutor. Orientadora: Dra. Raquel Illescas Bueno). Curitiba , 2009.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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