19/10/2013

Sermões Completos, do Padre Antônio Vieira

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Vieira em Portugal: sermões restauracionistas

A notícia da Restauração chega ao Brasil em fevereiro de 1641. Vieira então  é enviado a Lisboa, acompanhando o Vice-rei, Marquês de Montalvão, para saudar  o  novo  rei.  Os  biógrafos  do  jesuíta  são  unânimes  em  afirmar  que  houve,  desde  o  início,  profunda  simpatia  entre  o  rei  e  o  jovem  religioso.  Como  afirma  Besselaar,  Vieira encontrou em Portugal um sebastianismo que, em grande parte, adaptara-se  às  novas  circunstâncias  históricas,  transferindo  a  figura  do  rei  encoberto  de  D.  Sebastião  para  D.  João  IV.  Vieira,  segundo  Besselaar,  “já  antes  vagamente  sebastianista”69, aderiu logo à nova crença. 

Bandarra tornara-se “o profeta da Restauração”, uma vez que teria, em suas  Trovas, profetizado que a Restauração do reino ocorreria no “ano de quarenta”, por  intermédio  de  certo  “Dom  João”.  É  claro  que  a  interpretação  das  profecias  do  Bandarra, bem como a dúvida quanto ao texto original, geravam dissabores entre os  ainda  fiéis  sebastianistas  e  os  novos  joanistas.  Outros  textos,  porém,  saudavam  o  cumprimento  das  profecias  que,  segundo  a  crença  geral,  remontavam,  principalmente, a São Bernardo (1090 – 1153) e ao português São Frei Gil (1190? –  1265),  entre  outros.  Entre  essas  obras,  Besselaar  destaca  as  de  Manuel  Bocarro  (1593  –  1662)  e,  sobretudo,  Restauração  de  Portugal  Prodigiosa,  de  autoria  de  certo Gregório de Almeida, na verdade pseudônimo, provavelmente, do jesuíta João  de Vasconcelos (1592 – 1661), conforme Vieira mesmo menciona em seu processo  e  em  algumas  cartas.  Por  sua  vez,  os  sebastianistas  ferrenhos,  longe  de  desanimarem, acreditavam que o governo de D. João IV seria apenas um interregno  até a vinda do esperado D. Sebastião, figura certamente mais propensa a grandes  esperanças que a do timorato duque de Bragança. Em meio a esse clima de euforia,  em que se mesclavam profecias cumpridas e sonhos de grandeza, chegara Vieira a  Portugal. 

Se a insurreição fora bem-sucedida, os fatos que se seguiram a ela tornavam  a recém-reconquistada independência periclitante. D. João IV contava com o apoio  dos nobres revoltosos, mas muitos outros pendiam para o lado espanhol. O mesmo  podia  ser  dito  sobre  o  Santo  Ofício  e  parte  da  Igreja.  Por  outro  lado,  o  novo  rei  encontrava apoio incondicional dos jesuítas. 

A esse panorama de instabilidade interna seguiram-se problemas externos. A  Espanha, obviamente, procurou retomar Portugal, mas a resistência militar lusitana,  apesar  de  sua  precariedade,  conseguiu  manter  a  independência  do  reino.  Como  afirma Muraro, grande parte do sucesso de Portugal em manter sua independência  diante de um inimigo mais poderoso se deve à situação de penúria por que passava  então a Espanha mais que à força militar e econômica do reino lusitano.  Diante  dos problemas do reino e da necessidade de fortalecimento do governo do novo rei,  seu protetor, Vieira subiu ao púlpito, a 1º. de janeiro de 1642, e deu voz ao Sermão  dos Bons Anos, texto em que defendia que as profecias do passado encontravam-se  cumpridas em D. João IV. 

Tomando  como matéria  do  sermão  “Felicidades  de  Portugal,  juízo  dos  anos  que  vêm”,  Vieira  fundamenta  a  prédica  em  Lucas,  2,  passagem  em  que  o  evangelhista  comenta  que  a  circuncisão  de  Cristo  se  deu  oito  dias  depois  de  seu  nascimento, quando então foi chamado de Jesus. Assim, apesar de o episódio não  parecer  o  mais  apropriado  para  falar  de  bons  augúrios,  o  jesuíta  afirma  que  a  circuncisão  de  Cristo  prefigurou  os  bens  que  realizaria  em  sua  vida  adulta.  Vieira  pretende  então  relacionar  o  evento  ocorrido  na  infância  de  Cristo  com  os  eventos  que haviam ocorrido no Portugal Restaurado.

Na segunda parte do sermão, Vieira afirma:

Não  quero referir profecias do bem que gozamos, porque  as suponho mui  pregadas  neste  lugar  e  mui  sabidas  de  todos;  reparar  sim,  e  ponderar  o  intento  delas  quisera.  Digo  que  ordenou  Deus  que  fosse  a  liberdade  de  Portugal,  como  os  venturosos  sucessos  dela,  tanto  tempo  antes  e  por  tão  repetidos  oráculos  profetizada,  para  que,  quando  víssemos  estas  maravilhas  humanas,  entendêssemos  que  eram  disposições  e  obras  divinas,  e  para  que  nos  alumiasse  e  confirmasse  a  fé  onde  a  mesma  admiração nos embaraçasse. (Falo de fé menos rigorosa, quanta cabe em  matérias não definidas, posto que de grande certeza.) (SII, p. 367).  

Para  Vieira,  as  profecias  divinas  referentes  aos  sucessos  de  Portugal  não  foram  enviadas  por  Deus  para  dar  esperança  aos  portugueses,  senão  para  fazer  com que acreditassem nas maravilhas ocorridas no reino assim que acontecessem.  Como o desejo e a dificuldade tornam algumas coisas pouco críveis, segundo afirma  Vieira, a profecia da restauração portuguesa serve para que os  homens acreditem  que  tudo  faz  parte  do  plano  divino  e  que  recorram  à  fé  quando  parecem  desconfiados dos sentidos:

E como os sucessos de nossa restauração eram matérias de tão dificultoso  crédito,  que,  ainda  depois  de  vistos,  parecem  sonho  e  quase  se  não  acabam  de  crer,  ordenou  Deus  que  fossem  tanto  tempo  antes,  como  tão  singulares circunstâncias e com o nome do mesmo libertador profetizadas,  para que a certeza das profecias desfizesse os escrúpulos da experiência;  para que, sendo objeto da fé, não parecesse ilusão dos sentidos; para que,  revelando-as tantos ministros de Deus, se visse que não eram inventos dos  homens: Ne homo videretur machinator hujus nominis, quod vocatum est ab  angelo, priusquum in utero conciperetur. (SII, p. 369)

Depois  de  discutir  o  que  antecedera  os  eventos  da  restauração,  “de  tão  dificultoso  crédito”,  ou  seja,  as  profecias,  Vieira  discute  o  que  se  seguiu  às  revelações  divinas.  O  jesuíta  aborda  então  a  demora  de  60  anos  para  a  Restauração: por que teria Deus teria feito os portugueses esperarem tanto tempo?  Responde  o  padre:  “porque  se  há-de  recompensar  a  dilação  da  esperança  com  a  perpetuidade  da  posse”.  Para  justificar  o  argumento,  o  pregador  cita  S.  Frei  Gil,  santo  português  cujas  profecias  haviam  encontrado  terreno  fértil  naquele  período,  conforme  já  mencionamos.  Segundo  o  frei,  depois  de  muito  sofrer,  de  ter  um  rei  morto sem herdeiro, Portugal sofreria até ser remido “não esperadamente por um rei  não  esperado”.  D.  Sebastião,  portanto,  não  poderia  ser  o  rei  libertador,  uma  vez  que  era  muito  esperado  pelos  portugueses.  Vieira  ataca  assim  os  sebastianistas,  que  não  haviam  deixado  de  crer  na  volta  do  rei  desaparecido  na  África,  pois  “os  mesmos  sequazes  desta  Opinião,  com  seu  esperar,  destruíram  sua  esperança;  porque quanto o faziam mais esperado, tanto confirmavam mais que não era ele o  prometido”.  Como  Madalena  procurara  Cristo  morto  e  o  encontrara  vivo,  pois  estava “encoberto”, Portugal procurava um rei morto – D. Sebastião – quando o rei  esperado  estava  vivo,  pois  “encoberto”.  Assim  sendo,  a  demora  na  resolução  do duque  de  Bragança  em  pleitear  o  trono,  acusação  que  muitos  haviam  lhe  feito,  justificava-se,  para  Vieira,  do  mesmo  modo  que  a  espera  de  oito  dias  para  a  circuncisão de Cristo: porque as coisas que faz Deus devem se dar a seu tempo:

Da mesma maneira se deu princípio à redenção e restauração de Portugal  em  tais  dias  e  em  tal  ano,  no  celebradíssimo  de  40,  porque  esse  era  o  tempo  oportuno  e  decretado  por  Deus;  e  não  antes  nem  depois,  como  os  homens quiseram. Quiseram os homens que fosse antes, quando sucedeu  o  levantamento  de  Évora;  quiseram  os  homens  que  fosse  depois,  quando  assentaram que o dia da aclamação fosse o 1º de Janeiro, hoje faz um ano;  mas a Providência  Divina  ordenou se antecipasse, para que  pontualmente  se  desse  princípio  à  restauração  de  Portugal  a  seu  tempoPostquam  consummati sunt dies octo. (SII, p. 373).


Com  esse  passo,  Vieira  respondia  às  críticas  que  haviam  sido  feitas  aos  duques de Bragança, que tanto tempo haviam se omitido em reclamar o trono. Como  a razão de Estado, segundo o jesuíta, consistia em casar a consecução dos intentos  e o afastamento dos perigos, a Restauração se dera no momento em que mais tinha  chances de ser bem-sucedida, ou seja, no momento em que Castela se encontrava  mais enfraquecida. Desse modo, a demora do movimento de libertação se justificava  por  estar  em  concordância  com  as  profecias,  bem  como  em  concordância  com  as  razões  de  Estado.  O  episódio  da  Restauração  não  só  confirmara  o  tempo  antecipado pelas profecias, como também o tempo das profecias provou ser o mais adequado para o sucesso da empresa. 

Ao  mencionar  o  “celebradíssimo”  ano  de  40,  Vieira  se  refere tacitamente  às  Trovas de Bandarra, as quais, segundo Besselaar, não eram bem aceitas à época  da  publicação  do  sermão,  quando  Vieira  já  se  encontrava  em  idade  avançada.  Como  Cristo  fora  libertador  do  mundo,  prenunciado  por  Isaías,  D.  João  IV  fora  libertador  de  Portugal,  glória  prenunciada  por  S.  Frei  Gil,  como  também,  principalmente,  por  Bandarra.  D.  João  IV,  portanto,  reencenava  a  história  da  salvação  do  homem  com  Cristo  e  prefigurava  o  Quinto  Império  igualmente  com  Cristo: 

Rei  não  por  ambição  de  reinar,  senão  por  compaixão  de  libertar;  rei  verdadeiramente imitador do Rei dos reis, que sobre todos os títulos de sua  grandeza  estimou  o  nome  de  Libertador  e  Salvador:  Vocatum  est  nomen  ejus Jesus. (SII, p. 3)  

Assim,  depois  de  arguir  o  cumprimento  das  profecias  sobre  o  futuro  de  Portugal na figura de D. João IV, Vieira, expondo uma premissa que será retomada  nas  Esperanças  de  Portugal  e  na  sua  Defesa,  afirma  que  “as  profecias  não  se  cumprem,  senão  quando  sucedem  as  cousas  profetizadas”,  sendo  que  “é  consequência tão infalível cumpridas as primeiras profecias haverem-se de cumprir  as segundas, que quando se mostra o cumprimento de umas, logo se podem dar por  cumpridas as outras”79. Com base nesse argumento, o futuro de Portugal haveria de  ser grandioso, uma vez que as profecias, como as de S. Frei Gil, mencionadas no  sermão,  prognosticavam  o  império  do  mundo.  A  certeza  desse  futuro  grandioso  provinha,  igualmente,  dos  milagres  que  se  seguiram  à  Restauração.  Um  deles,  também  comentado  em  Restauração  de  Portugal  Prodigiosa,  é  mencionado  por  Vieira: 

Ora  grande  simpatia  tem  a  mão  de  Deus  com  o  nome  de  João.  Bem  o  mostrou  o  Senhor  na  feliz  aclamação  de  Sua  Majestade,  que  Deus  nos  guarde, como há-de guardar muitos anos, pois aos ecos do nome de João,  despregou  da  cruz  o  braço  o  mesmo  Cristo,  assegurando-nos  que,  assim  como a mão de Deus estivera com o primeiro João da Judéia, assim estava  e havia de estar sempre com o quarto de Portugal: Etenim manus Dominis  erat cum illo. (SII, p. 382)

Tendo  o  mesmo  nome  do  precursor  de  Cristo,  São  João  Batista,  que  anunciara a vinda do Salvador, D. João IV antecipava de forma análoga o reino de  Cristo que Vieira imaginava estar prestes a se estabelecer no mundo. Assim sendo,  o  cumprimento  das  profecias  e  os  milagres,  para  Vieira,  eram  o  início  do  estabelecimento  do  Quinto  Império,  já  esboçado  pelo  jesuíta  neste  sermão  restauracionista, ainda que não mencionado explicitamente, o que só viria a reforçar  as  palavras  de  Cristo  a  Afonso  Henriques  de  que  Portugal  era  a  sua  nação  escolhida.

A  revelação  de  D.  João  IV  como  o  verdadeiro  “encoberto”  reaparece  no  Sermão de São José, pregado na Capela Real, em 1642, data em que o monarca   completava 38 anos e em que se celebrava também o dia do Santo. Vieira comenta  que, estando Cristo na cruz, Ele pede que seu discípulo João acompanhe sua mãe  daí em diante. Por que teria escolhido João para tal tarefa em meio a tantos outros  discípulos, inclusive mais velhos que ele? Porque acompanhar Maria era tarefa de  José  e,  morto  este,  quem  viria  a  substituí-lo  seria  João.  Assim,  por  esse  ato,  segundo Vieira, João renasceria como filho de Maria para substituir José.

Vieira,  em  seguida,  analisa,  conforme  os  “matemáticos”  (astrólogos),  as  influências  planetárias  do  dia  em  que  se  celebra  São  José.  Contrariamente  aos  “horóscopos”, que prescreviam maus augúrios para o Planeta correspondente, Vieira  acredita  que  o  que  ocorre  é  justamente  o  contrário.  A  morte  de  José,  no  Egito,  correspondeu  ao  crescimento  dos  judeus.  Assim,  o  dia  em  que  se  comemora  São  José,  e  também  o  aniversário  do  monarca  português,  é  certamente  uma  data  propícia e favorável ao futuro dos portugueses. Como Jesus, D. João IV nascera sob  a guarda de São José e de forma encoberta:


Sendo, pois, estes dois reis nascidos ambos reis, ambos redentores e ambos  encobertos,  o  primeiro,  como  diz  a  profecia  de  Isaías:  Vere  tu  es  Deus  absconditus,  Deus  Israel,  salvator  -  o segundo,  prometido  pela  profecia  e;  tradição  de  Santo  Isidoro  a  Espanha,  não  com  outro nome  ou  antonomásia,  senão a do Encoberto, vejamos quão particularmente encobriu a um e outro o  que  a  um  e  outro  deu  Deus  por  guarda  o  cuidado  e  vigilância  de  São  José.  A  Cristo encobriu-o como Esposo de Maria, nove meses e treze dias,  desde sua conceição até depois de seu nascimento, em que o descobriu a estrela  no Oriente, aos Magos, e os Magos, em seguimento dela, a toda Judéia. (SII, p.  474) 

Da  mesma  forma  que  Cristo  fora  encoberto  e  protegido  por  José  durante  muitos anos, tendo, inclusive, de exilar-se no Egito a fim de se subtrair aos perigos  de Herodes, D. João IV também ficara encoberto, mas dentro das próprias terras de  seus  inimigos.  A  explicação  de  como  isso  havia  sido  possível  revela  agora  uma  estratégia hábil do pregador:

Mas  em  encobrir  o  nosso  Encoberto  neste  grande  perigo  de  o  declararem  as  evidências  ou  conjecturas  de  alguns  destes  afetos,  mostrou  o   santo  quão  alta  e  delicadamente  observou  as  obrigações  do  ofício  de  o  guardar:  Custos  nati  regis -  equivocando  milagrosamente  um  rei com outro rei, e encobrindo um vivo com outro morto. Perdeu-se, ou  morreu,  na  batalha  de  África  el-rei  Dom Sebastião, e puderam tanto as  saudades  de  um  rei,  que  se  tinha  perdido  a  si  e  a  nós,  que,  sem  se  divertirem aonde deviam, deram em esperar dele, e por sua vida e vinda,  a  nossa  redenção,  e  este  foi  o  altíssimo  conselho  com  que  São  José,  debaixo das cinzas do rei passado e morto, conservou e teve encoberto  o rei futuro e vivo (SII, p. 476).

Vieira, ao mesmo tempo em que justifica ser D. João IV o “encoberto” referido  nas  profecias,  em  detrimento  de  D.  Sebastião,  “de  triste  memória”,  destaca  aos  sebastianistas  um  papel  a  cumprir  no  xadrez  divino.  A  crença  sebástica  teria  desviado os olhos dos inimigos de Portugal para um rei que não voltaria, enquanto  que  o  verdadeiro  libertador  do  reino  permanecia  seguro,  já  que  “encoberto”.  A  relação do Sermão de São José com o dos Bons Anos fica evidente. A demora da  Restauração,  bem  como  o  sebastianismo  de  milhares  de  lusitanos,  reforçavam  as  maravilhas anteriormente profetizadas, as quais tinham se realizado na figura do rei  restaurador.  Do  mesmo  modo,  o  nome  do  rei  e  o  dia  do  nascimento  apontavam  igualmente para uma série de “coincidências” com alguns episódios bíblicos, que se  tornavam claras revelações do destino de Portugal, povo eleito.

Dois anos depois, na mesma Capela Real, Vieira pregava o  Sermão de São  Roque, na ocasião do aniversário do príncipe D. Afonso. A existência então de dois  herdeiros  e  de  quatro  sucessores  –  D.  João  IV  possuía  dois  filhos  e  duas  filhas  –  garantia a sucessão em Portugal:


Por  que  cuidamos,  portugueses,  que  se  acabaram  as  luzes  de  Portugal?  Que  causa  cuidamos  que  houve  para  padecermos  aquela  noite  eterna  de  sessenta  anos  tão  cumpridos?  A  causa  foi  porque,  como  Deus  queria  eclipsar as glórias de Portugal, permitiu que ficasse a luz pendente de uma só  tocha:  um  rei,  D.  Sebastião,  outro  rei,  D.  Henrique,  ambos  sem  sucessão,  ambos sem herdeiros. Porém hoje, quando Deus foi servido de nos restaurar  e restituir, engrossa a linha da geração atenuada com dobrados sucessores,  assegura  o  lume  das  tochas  com  multiplicadas  luzes,  para  que  assim  como  se  interrompeu  o  cetro  de  Portugal  por  dois  reis  sem  sucessor,  se  perpetue  em  durações  eternas  por  um  rei  já  com  dois  sucessores.  Dois  sucessores temos, e quatro herdeiros. Ditoso o dia, e ditoso o nascimento,  em que se cerrou e aperfeiçoou este bem estreado número (SII, p. 388).

A esterilidade da sucessão de D. Sebastião e de D. Henrique assinalava um  lapso nas glórias de Portugal. Depois da Restauração, no entanto, a fecundidade de  sucessores  assinalava,  ao  contrário,  a  multiplicação  das  glórias  outrora  eclipsadas  em um futuro próximo:
  
De  sorte  que  não  consiste  a  nossa  firmeza  só  na  multiplicação  do  número,  senão também na repartição do sexo. Isto é, não só em serem quatro irmãos e  duas irmandades, senão uma de filhos, outra de filhas. E por quê? Porque os  reinos e os impérios conservam-se e sustentam-se em duas raízes: das portas  adentro, na sucessão dos reis naturais; das portas afora, com a confederação  dos reis estrangeiros. E por isso nos acabou Deus de dar, em tal dia como  hoje, tantos filhos como filhas: os filhos, para que não faltassem reis ao reino  próprio; e as filhas, para que possamos dar rainhas aos estranhos (SII, p. 390). 

Na  esteira  dos  sermões  comentados  anteriormente,  a  fecundidade  da  prole  de D. João IV confirmava a verdade das profecias:

Nasceu  hoje  à  geração  real  portuguesa  esterilizada  o  primeiro  filho,  e  nasceu juntamente com ele a fé das promessas divinas feitas ao primeiro  rei.   Estava  estéril,  pelos  pecados  de  Portugal,  a  geração  de  seus  reis,  como  outra  Sara;  mas,  como  Deus  tinha  prometido  que  nessa  geração  esterilizada  e  atenuada  poria  seus  olhos,  quando  a  geração  real  portuguesa  outra  vez  se  vê  fecunda,  não  há  dúvida  que  com  o  primeiro  fruto desta fecundidade nos nasceu juntamente a fé daquelas promessas:  In  partu  suo  fidem  peperit.  -  Neste  nascimento  acabou  o  sinal  do  castigo.  Com  este  nascimento  nasceu  a  fé  do  remédio. Porque, assim  como foi sinal evidente de Deus querer acabar Portugal fazer a geração  real estéril, assim é confirmação evidente de Deus querer estabelecer  Portugal fazer a geração real fecunda (SII, p. 391).

De  maneira  contrária,  como  salienta  o  pregador,  Castela,  que  contava  com  dois príncipes, poucos anos antes, então contava com nenhum. A situação havia se  invertido,  e  Vieira  fazia  questão  de  ressaltar  que  a  nova  prole  real  portuguesa  era  um indício concreto da intervenção divina nos destinos da nação. No entanto, se a  libertação havia sido algo maravilhoso, mantê-la seria custoso. Abandonando por um  momento  o  plano  profético,  Vieira  introduz  questões  de  ordem  prática,  tão  necessárias diante dos problemas enfrentados pelo reino. A fim de fortalecer o reino  e  implementar  o  projeto  divino,  o  Rei  Restaurador  necessitava  do  apoio  de  seus  vassalos.  Assim,  era  preciso  cautela  quanto  aos  perigos  que  rondavam  a  nação,  como também eram necessários “remédios perigosos”. Estes consistiam na criação  de  duas  companhias  mercantis,  a  Oriental  e  a  Ocidental,  “cujas  frotas  poderosamente  armadas  tragam  seguras  contra  Holanda  as  drogas  da  Índia  e  do  Brasil”. Eis o projeto a que Vieira dedicaria tanto esforço nos anos seguintes. No  entanto,  havia  outro  projeto,  mais  polêmico  ainda,  que  custaria  muito  a  Vieira.  O  projeto  das  companhias  levantava  um  obstáculo  inicial:  de  onde  obter  os  fundos  necessários?  A  solução  prontamente  aventada  por  Vieira  era  a  de  buscar  esses  recursos junto aos cristãos-novos. Usando os exemplos de São Roque, que dividiu a  riqueza  herdada  com  os  pobres,  de  Davi,  que  usou  o  ouro  de  um  ídolo  para  enriquecer  sua  coroa  com  mais  metal,  e  dos  30  dinheiros  de  Judas  que,  além  de  serem usados para a compra de um campo para sepultar peregrinos, faziam parte  das  armas  de  Portugal,  como  o  próprio  Cristo  teria  pedido  a  Afonso  Henriques,  Vieira argumenta que os fins cristãos a que servem o dinheiro são mais importantes  que a sua origem:

Há  coisa  mais  sacrílega  que  os  trinta  dinheiros  de  Judas?  Há  coisa  mais  sagrada que as cinco chagas de Cristo? E, contudo, manda Deus ao primeiro  rei  português  que  componha  as  armas  de  Portugal  das  chagas  de  Cristo  e  mais  do  dinheiro  de  Judas,  para  que  entendamos  que  o  dinheiro  de  Judas  cristãmente aplicado, nem descompõe as chagas de Cristo, nem descompõe  as  armas  de  Portugal.  Antes,  compostas  juntamente  de  um  e  outro  preço,  podem tremular vitoriosas nossas bandeiras na conquista e restauração da fé,  como  sempre  fizeram  em  ambos  os  mundos.  E  se  Deus  compôs  assim  as  armas de Portugal, se Deus não achou inconveniente nesta união, que muito é  que o imaginasse assim um homem? Ora, perdoai-lhe, quando menos, que tem  bom fiador o pensamento (SII, p. 403).

E  conclui  então  o  padre:  “a  bondade  das  obras  está  nos  fins,  não  está  nos  instrumentos.  As  obras  de  Deus  todas  são  boas;  os  instrumentos  de  que  se  serve  podem ser bons e maus”. Desse modo, não deveria causar pavor aos portugueses  utilizar dinheiro “judeu” para alcançar os seus intentos, pois, como sentenciava Vieira,   

uns são servos de Deus porque servem a Deus; outros  são  servos  de  Deus  porque Deus se serve deles. Os que são servos de Deus porque servem a
Deus, necessariamente hão de ser bons; os que são servos de Deus porque  Deus se serve deles, bem podem ser maus (SII, p. 404).

Portanto, para Vieira, todo artifício de um Estado cristão acaba se mostrando  um  artifício  da  Providência.  No  caso  dos  judeus,  como  já  podemos  ver,  isso  era  evidente para Vieira. 

O Sermão de São Roque (1644) não é o único sermão dos primeiros anos de  Vieira  em  Portugal  que  se  destaca  em  seu  clamor  por  recursos  financeiros.  Antes  disso, no Sermão de Santo Antônio (1642), o pregador engendrava um movimento  político complicado: justificar o fim da isenção de impostos para a nobreza e o clero.  Além disso, em 1643, viera a público a primeira Petição de Vieira, dirigida ao rei: a  “Proposta em que lhe representava o miserável estado do reino e a necessidade que  tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa”.

O Sermão de São Roque só expõe mais claramente o ápice das preocupações de  Vieira com o destino do reino. Não é difícil vislumbrar o estado caótico em que se  encontravam  as  finanças  de  Portugal,  acossado  por  um  lado  pela  ameaça  da  Holanda, estabelecida já em Pernambuco, e, por outro, pela Espanha, interessada  em reaver sua “província” desgarrada. Como afirma Besselaar:

(...) a garantia divina não justifica a inatividade humana. O messianismo de  Vieira não é suicídio em Deus. À livre-iniciativa de Deus deve corresponder,
por parte do homem, uma obediência incondicional e um esforço incessante e inteligente para transformar este mundo no Reino de Deus (AV, p. 21).

A  libertação  portuguesa  do  jugo  espanhol  implicava,  portanto,  um  comprometimento  da  nação  para  a  “conservação”  da  liberdade,  conforme  Vieira  afirmara no  Sermão  de  Santo Antônio  (1642).  O  esforço  justificava-se,  na  ótica  do  jesuíta,  como  um  ato  de  agradecimento  dos  portugueses  para  Deus,  que  fora  tão  zeloso  quanto  aos  destinos  do  reino.  O  sucesso  da  empresa  restauradora  era  apenas  um  primeiro  estágio  rumo  ao  estabelecimento  do  Quinto  Império.  Desse  modo,  o  desinteresse  dos  portugueses  quanto  aos  altos  desígnios  de  seu  próprio  povo  poderia  desencadear  uma  ira  divina,  o  que  já  teria  ocorrido  no  caso  de  D.  Sebastião. 

Também Deus tinha libertado o povo do cativeiro do Egito, e, porque lhe foi  ingrato,  o  sepultou  todo  em  um  deserto.  Pois,  se  Deus  é  este,  e  nós  não  somos  melhores,  que  vã  confiança  é  a  nossa?  Nós  não  nos  mudamos,  e  queremos,  que  se  mude  Deus?  Cuidamos  que  há  de  dispensar  Deus  conosco no atributo de sua justiça? Cuidamos que para nós e por nós há de  mudar as leis de sua providência? Dizei-me - que o não quero perguntar a  outrem - qual foi a razão da parte de Deus, e qual a causa da parte nossa  por  que  nos  tirou  o  mesmo  Deus  o  rei  e  a  liberdade,  e  nos  teve  cativos  sessenta  anos?  Todos  dizemos  e  confessamos  que  pelos  pecados  de  Portugal. Pois, se Portugal se tem emendado tão pouco, como vemos, se os  pecados  são  hoje  os  mesmos,  e  pode  ser  que  maiores  que  dantes,  logo  queremos que nos favoreça hoje Deus pelas mesmas culpas por que ontem  nos  castigava?  Cuidamos  que  a  justiça  divina  não  tem  mais  que  um  castigo? Sete vezes libertou Deus o povo de Israel no tempo dos Juízes, e  sete  vezes  o  tornou  a  cativar,  porque  sete  vezes  reincidiram  em  seus  pecados (SII, p. 258-9).

Essas ideias foram desenvolvidas no  Sermão pelo Bom Sucesso de Nossas  Armas, pregado por ocasião de D. João IV ter ido à campanha para lutar contra os  espanhóis,  em  1645.  A  inferioridade  do  poderio  militar  português  diante  do  maior  número  de  seus  inimigos  despertava  desconfiança  no  reino  quanto  ao  sucesso  da  guerra. No entanto, alicerçado em episódios bíblicos, Vieira, procurando despertar a  confiança de sua audiência, narra como os povos apoiados por Deus conseguiram  sempre  seus  intentos,  mesmo  que  seus  exércitos  tivessem  força  muito  inferior.  Assim,  uma  possível  derrota  dos  exércitos  portugueses  seria  decorrente  de  um  castigo divino e não do esforço espanhol: 

Tantas ingratidões sobre tantos benefícios! Tantos esquecimentos de Deus  sobre  tantas  mercês  de  Deus!  Deus  quebrando  as  leis  da  natureza,  e
fazendo  milagres  por  nós,  e  nós  faltando  a  todas  as  leis  da  razão,  cometendo tantas ofensas contra Deus! Não conhece a Deus quem o não  teme  em  tal  estado.  Que  importa  que  Cristo  despregasse  o  braço,  se  nós  lho  tornamos  a  pregar  com  nossos  pecadosIterum  crucifigentes  Filium Dei? (SII, p. 260, grifo nosso).


Vieira,  na  expressiva  passagem  grifada  no  excerto  acima,  relembra  aos  portugueses o milagre da Aclamação, já citado anteriormente, em que a imagem de  Cristo teria soltado uma das mãos durante a missa que celebrou a posse de D. João  IV.  Diante  de  tantas  profecias  e  maravilhas,  indignava-se  o  pregador  da  falta  de  confiança dos portugueses e aproveitava para relembrar, novamente, o episódio de  D. Afonso Henriques:


Hoje faz quatrocentos e cinquenta e dois anos que acabou a vida mortal el-rei  D.  Afonso  Henrique,  fundador  do  Reino  de  Portugal,  e  hoje  faz  cinco  anos  -  sem  se  advertir  em  tal  concurso  de  tempo  -  que  foi  recebido  nesta  corte, e começou a reinar El-Rei D. João o Quarto, restaurador do mesmo  reino.  Dia  é  este,  Senhor,  muito  para  vos  trazer  à  memória  as  promessas  que então fizestes ao primeiro rei, e nele ao último que também agora é o  primeiro. Prometestes a el-rei D. Afonso - como ele testemunhou e jurou no  seu  testamento  -  que  depois  de  atenuada  sua  descendência  poríeis  os  olhos  de  vossa  misericórdia  na  décima-sexta  geração  sua:  Usque  ad  decimam  sextam  generationem,  in  qua  attenuabitur  proles,  et  in  ipsa  sic  attenuata  ego  respiciam,  et  videbo.  -  Sendo,  pois,  o  rei  por  quem  nos  restaurastes,  a  mesma  geração  décima-sexta,  tempo  é,  Senhor  de  pordes  nela  e  em  nós  os  olhos  de  vossa  divina  misericórdia,  senão  por  nossos  merecimentos,  pelos  muitos  e  grandes  daquele  santo  rei  que  tanto  vos  soube  servir  então,  e  obrigar  para  o  futuro.  Ponde  os  olhos,  Senhor  dos  exércitos,  no  nosso  exército,  e  lembrai-vos  que  todo  é  daqueles  portugueses que no mesmo testamento escolhestes para conquistadores de  vossa fé, e para debaixo de suas armas levarem vosso santíssimo nome às  gentes  tão  remotas  e  estranhas,  que  antes  de  nós  o  não  conheciam:  Ut  portent nomem meum in exteras nationes (SII, p. 262).

O  sermão  termina  assim  com  um  pedido  a  Deus  para  assegurar  a  vitória  portuguesa, reencenando pedido semelhante feito anos antes no Sermão pelo Bom  Sucesso  das  Armas  de  Portugal  contra  as  de  Holanda.  Vieira,  desse  modo, encontrava-se como uma figura de destaque no reinado de D. João IV, preocupado  em  granjear  apoio  e  em  fornecer  conselhos  ao  soberano,  envolto  que  estava  em  problemas de toda ordem. 

Em suma, como já havia notado Cantel, o messianismo português é resultado  da  convergência  de  três  correntes:  duas  religiosas  e  uma  política.  Entre  as  religiosas,  haveria  a  corrente  judaica,  tomada  de  expectativas  messiânicas,  e  uma  católica,  simbolizada  pelas  Trovas  de  Bandarra  e  pelo  pensamento  de  Vieira  que,  para  Cantel,  compartilhariam  tendências  neojoaquimitas  embaladas  pelos  descobrimentos e pela consequente missão evangelizadora e cruzada de Portugal.  Por fim, a corrente política configurar-se-ia na oposição ao domínio espanhol, como  salientamos, fortemente  apoiada  pelos  jesuítas.  Ainda  que  não  se  possa  separar  efetivamente uma coisa da outra, a argumentação religiosa – especialmente a partir  da  parenese  restauracionista,  como  ilustra  o  estudo  cuidadoso  de  João  Francisco  Marques – tratou de criar e propagar uma legitimização essencialmente profética da  Restauração  portuguesa,  ligando  o  “milagre  de  Ourique”  à  Aclamação,  profetizada  por  Bandarra.  Vieira  seria  o  maior  exemplo  dessa  empresa  legitimizadora.  Contudo,  vale  salientar,  como  já  notamos  anteriormente,  que  Vieira,  como  homem  do  século  XVII,  não  pensava  a  política  separadamente  da  teologia.  A  própria  existência do Estado português se dera a partir de um evento miraculoso no campo  de Ourique. A partir disso, já é possível notar o problema do domínio espanhol que,  usurpando um  reino estabelecido  por  Cristo,  carecia  de  legitimidade  para  tal.  Mais  ainda,  dentro  do  projeto  messiânico  de  Vieira,  a  independência  portuguesa  é  necessária para o cumprimento das profecias. Desse modo, ainda que acreditemos  que  Cantel  tenha  sido  preciso  ao  identificar  os  elementos  formadores  do  messianismo  português,  é  preciso  pensá-los  conjuntamente,  como  bem  ensinou  Pécora (2008).


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Fonte:
Marcus De Martini: “As Chaves do Paraíso:   Profecia e Alegoria na Obra de Padre Antônio Vieira”. (Tese apresentada ao  Programa de Pós-Graduação em Letras,  Área de Concentração em Estudos Literários, da  Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS),  como requisito parcial para obtenção do grau de  Doutor em Letras. Orientador: Prof. Dr. Lawrence Flores Pereira). Santa Maria, RS, Brasil, 2011

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