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Vieira
em Portugal: sermões restauracionistas
A notícia da Restauração chega ao Brasil em fevereiro de 1641.
Vieira então é enviado a Lisboa,
acompanhando o Vice-rei, Marquês de Montalvão, para saudar o
novo rei. Os
biógrafos do jesuíta
são unânimes em
afirmar que houve,
desde o início,
profunda simpatia entre
o rei e
o jovem religioso.
Como afirma Besselaar, Vieira encontrou em Portugal um sebastianismo
que, em grande parte, adaptara-se às novas
circunstâncias históricas, transferindo
a figura do
rei encoberto de D. Sebastião
para D. João
IV. Vieira, segundo
Besselaar, “já antes
vagamente sebastianista”69,
aderiu logo à nova crença.
Bandarra tornara-se “o profeta da Restauração”, uma vez que teria,
em suas Trovas, profetizado que a Restauração do
reino ocorreria no “ano de quarenta”, por intermédio
de certo “Dom
João”. É claro
que a interpretação
das profecias do Bandarra,
bem como a dúvida quanto ao texto original, geravam dissabores entre os ainda
fiéis sebastianistas e
os novos joanistas.
Outros textos, porém,
saudavam o cumprimento
das profecias que,
segundo a crença
geral, remontavam, principalmente, a São Bernardo (1090 – 1153) e
ao português São Frei Gil (1190? – 1265), entre
outros. Entre essas
obras, Besselaar destaca
as de Manuel
Bocarro (1593 –
1662) e, sobretudo,
Restauração de
Portugal Prodigiosa, de
autoria de certo Gregório de Almeida, na verdade
pseudônimo, provavelmente, do jesuíta João de Vasconcelos (1592 – 1661), conforme Vieira
mesmo menciona em seu processo e em
algumas cartas. Por
sua vez, os
sebastianistas ferrenhos, longe
de desanimarem, acreditavam que o
governo de D. João IV seria apenas um interregno até a vinda do esperado D. Sebastião, figura
certamente mais propensa a grandes esperanças
que a do timorato duque de Bragança. Em meio a esse clima de euforia, em que se mesclavam profecias cumpridas e
sonhos de grandeza, chegara Vieira a Portugal.
Se a insurreição fora bem-sucedida, os fatos que se seguiram a ela
tornavam a recém-reconquistada
independência periclitante. D. João IV contava com o apoio dos nobres revoltosos, mas muitos outros
pendiam para o lado espanhol. O mesmo podia ser
dito sobre o
Santo Ofício e
parte da Igreja.
Por outro lado,
o novo rei encontrava
apoio incondicional dos jesuítas.
A esse panorama de instabilidade interna seguiram-se problemas
externos. A Espanha, obviamente,
procurou retomar Portugal, mas a resistência militar lusitana, apesar
de sua precariedade,
conseguiu manter a
independência do reino.
Como afirma Muraro, grande parte
do sucesso de Portugal em manter sua independência diante de um inimigo mais poderoso se deve à
situação de penúria por que passava então
a Espanha mais que à força militar e econômica do reino lusitano. Diante dos problemas do reino e da necessidade de
fortalecimento do governo do novo rei, seu
protetor, Vieira subiu ao púlpito, a 1º. de janeiro de 1642, e deu voz ao Sermão dos Bons Anos, texto em que
defendia que as profecias do passado encontravam-se cumpridas em D. João IV.
Tomando como matéria do
sermão “Felicidades de
Portugal, juízo dos
anos que vêm”,
Vieira fundamenta a
prédica em Lucas,
2, passagem em
que o evangelhista
comenta que a
circuncisão de Cristo
se deu oito
dias depois de seu
nascimento, quando então foi chamado de
Jesus. Assim, apesar de o episódio não parecer o
mais apropriado para
falar de bons
augúrios, o jesuíta
afirma que a circuncisão de
Cristo prefigurou os
bens que realizaria
em sua vida
adulta. Vieira pretende
então relacionar o
evento ocorrido na
infância de Cristo
com os eventos que haviam ocorrido no Portugal Restaurado.
Na segunda parte do sermão, Vieira afirma:
Não quero referir profecias do bem que gozamos,
porque as suponho mui pregadas
neste lugar e
mui sabidas de
todos; reparar sim, e ponderar
o intento delas
quisera. Digo que
ordenou Deus que
fosse a liberdade
de Portugal, como
os venturosos sucessos
dela, tanto tempo
antes e por
tão repetidos oráculos
profetizada, para que,
quando víssemos estas maravilhas humanas,
entendêssemos que eram
disposições e obras divinas, e
para que nos
alumiasse e confirmasse
a fé onde
a mesma admiração nos embaraçasse. (Falo de fé menos
rigorosa, quanta cabe em matérias não
definidas, posto que de grande certeza.) (SII, p. 367).
Para Vieira, as
profecias divinas referentes
aos sucessos de
Portugal não foram
enviadas por Deus
para dar esperança
aos portugueses, senão
para fazer com que acreditassem nas maravilhas ocorridas
no reino assim que acontecessem. Como o
desejo e a dificuldade tornam algumas coisas pouco críveis, segundo afirma Vieira, a profecia da restauração portuguesa
serve para que os homens acreditem que
tudo faz parte
do plano divino
e que recorram
à fé quando
parecem desconfiados dos
sentidos:
E como os sucessos de
nossa restauração eram matérias de tão dificultoso crédito,
que, ainda depois
de vistos, parecem
sonho e quase
se não acabam
de crer, ordenou
Deus que fossem
tanto tempo antes,
como tão singulares circunstâncias e com o nome do
mesmo libertador profetizadas, para que
a certeza das profecias desfizesse os escrúpulos da experiência; para que, sendo objeto da fé, não parecesse
ilusão dos sentidos; para que, revelando-as
tantos ministros de Deus, se visse que não eram inventos dos homens: Ne homo videretur
machinator hujus nominis, quod vocatum est ab angelo, priusquum in utero conciperetur. (SII, p. 369)
Depois de discutir
o que antecedera
os eventos da
restauração, “de tão dificultoso crédito”,
ou seja, as
profecias, Vieira discute
o que se
seguiu às revelações
divinas. O jesuíta
aborda então a
demora de 60
anos para a Restauração:
por que teria Deus teria feito os portugueses esperarem tanto tempo? Responde
o padre: “porque
se há-de recompensar
a dilação da
esperança com a perpetuidade da
posse”. Para justificar
o argumento, o
pregador cita S.
Frei Gil, santo
português cujas profecias
haviam encontrado terreno
fértil naquele período, conforme
já mencionamos. Segundo
o frei, depois
de muito sofrer,
de ter um rei
morto sem herdeiro, Portugal sofreria
até ser remido “não esperadamente por um rei não
esperado”. D. Sebastião,
portanto, não poderia
ser o rei
libertador, uma vez que era
muito esperado pelos
portugueses. Vieira ataca
assim os sebastianistas, que
não haviam deixado
de crer na
volta do rei
desaparecido na África,
pois “os mesmos
sequazes desta Opinião,
com seu esperar,
destruíram sua esperança; porque quanto o faziam mais esperado, tanto
confirmavam mais que não era ele o prometido”. Como
Madalena procurara Cristo
morto e o
encontrara vivo, pois estava
“encoberto”, Portugal procurava um rei morto – D. Sebastião – quando o rei esperado
estava vivo, pois
“encoberto”. Assim sendo,
a demora na
resolução do duque de
Bragança em pleitear
o trono, acusação
que muitos haviam
lhe feito, justificava-se, para
Vieira, do mesmo
modo que a
espera de oito
dias para a circuncisão
de Cristo: porque as coisas que faz Deus devem se dar a seu tempo:
Da mesma maneira se
deu princípio à redenção e restauração de Portugal em
tais dias e
em tal ano,
no celebradíssimo de
40, porque esse
era o tempo
oportuno e decretado
por Deus; e
não antes nem
depois, como os homens
quiseram. Quiseram os homens que fosse antes, quando sucedeu o levantamento de
Évora; quiseram os
homens que fosse
depois, quando assentaram que o dia da aclamação fosse o 1º
de Janeiro, hoje faz um ano; mas a
Providência Divina ordenou se antecipasse, para que pontualmente se
desse princípio à
restauração de Portugal
a seu tempo: Postquam
consummati sunt dies octo. (SII, p. 373).
Com esse passo,
Vieira respondia às
críticas que haviam
sido feitas aos duques
de Bragança, que tanto tempo haviam se omitido em reclamar o trono. Como a razão de Estado, segundo o jesuíta,
consistia em casar a consecução dos intentos e o afastamento dos perigos, a Restauração se
dera no momento em que mais tinha chances
de ser bem-sucedida, ou seja, no momento em que Castela se encontrava mais enfraquecida. Desse modo, a demora do
movimento de libertação se justificava por estar
em concordância com as profecias,
bem como em
concordância com as razões de
Estado. O episódio
da Restauração não
só confirmara o
tempo antecipado pelas profecias,
como também o tempo das profecias provou ser o mais adequado para o sucesso da empresa.
Ao mencionar o
“celebradíssimo” ano de
40, Vieira se
refere tacitamente às Trovas de Bandarra, as quais, segundo Besselaar, não eram bem aceitas à
época da
publicação do sermão,
quando Vieira já
se encontrava em
idade avançada. Como
Cristo fora libertador
do mundo, prenunciado
por Isaías, D.
João IV fora libertador de
Portugal, glória prenunciada
por S. Frei
Gil, como também, principalmente, por
Bandarra. D. João
IV, portanto, reencenava
a história da salvação do
homem com Cristo
e prefigurava o
Quinto Império igualmente
com Cristo:
Rei não
por ambição de
reinar, senão por
compaixão de libertar;
rei verdadeiramente imitador do
Rei dos reis, que sobre todos os títulos de sua grandeza
estimou o nome
de Libertador e
Salvador: Vocatum est
nomen ejus Jesus. (SII, p. 3)
Assim, depois de
arguir o cumprimento
das profecias sobre
o futuro de Portugal
na figura de D. João IV, Vieira, expondo uma premissa que será retomada nas Esperanças
de Portugal e
na sua Defesa, afirma que
“as profecias não se
cumprem,
senão quando sucedem
as cousas profetizadas”, sendo
que “é consequência tão infalível cumpridas as
primeiras profecias haverem-se de cumprir as segundas, que quando se mostra o
cumprimento de umas, logo se podem dar por cumpridas as outras”79. Com
base nesse argumento, o futuro de Portugal haveria de ser grandioso, uma vez que as profecias, como
as de S. Frei Gil, mencionadas no sermão, prognosticavam o
império do mundo.
A certeza desse
futuro grandioso provinha,
igualmente, dos milagres
que se seguiram
à Restauração. Um
deles, também comentado
em Restauração
de Portugal Prodigiosa,
é mencionado por Vieira:
Ora grande
simpatia tem a mão de
Deus com o
nome de João.
Bem o mostrou
o Senhor na
feliz aclamação de
Sua Majestade, que
Deus nos guarde, como há-de guardar muitos anos, pois
aos ecos do nome de João, despregou da
cruz o braço
o mesmo Cristo,
assegurando-nos que, assim como
a mão de Deus estivera com o primeiro João da Judéia, assim estava e havia de estar sempre com o quarto de
Portugal: Etenim manus Dominis erat cum illo. (SII, p. 382)
Tendo o mesmo
nome do precursor
de Cristo, São
João Batista, que anunciara
a vinda do Salvador, D. João IV antecipava de forma análoga o reino de Cristo que Vieira imaginava estar prestes a se
estabelecer no mundo. Assim sendo, o cumprimento
das profecias e os milagres,
para Vieira, eram o início
do estabelecimento do
Quinto Império, já
esboçado pelo jesuíta
neste sermão restauracionista, ainda que não mencionado
explicitamente, o que só viria a reforçar as
palavras de Cristo
a Afonso Henriques
de que Portugal
era a sua
nação escolhida.
A revelação de
D. João IV
como o verdadeiro
“encoberto” reaparece no Sermão de São José, pregado na Capela
Real, em 1642, data em que o monarca completava 38 anos e em que se celebrava
também o dia do Santo. Vieira comenta que,
estando Cristo na cruz, Ele pede que seu discípulo João acompanhe sua mãe daí em diante. Por que teria escolhido João
para tal tarefa em meio a tantos outros discípulos,
inclusive mais velhos que ele? Porque acompanhar Maria era tarefa de José
e, morto este,
quem viria a
substituí-lo seria João.
Assim, por esse
ato, segundo Vieira, João
renasceria como filho de Maria para substituir José.
Vieira, em seguida,
analisa, conforme os
“matemáticos” (astrólogos), as influências planetárias
do dia em que se
celebra São José.
Contrariamente aos “horóscopos”, que prescreviam maus augúrios
para o Planeta correspondente, Vieira acredita que
o que ocorre
é justamente o
contrário. A morte
de José, no
Egito, correspondeu ao
crescimento dos judeus.
Assim, o dia
em que se
comemora São José,
e também o
aniversário do monarca
português, é certamente
uma data propícia e favorável ao futuro dos
portugueses. Como Jesus, D. João IV nascera sob a guarda de São José e de forma encoberta:
Sendo, pois, estes
dois reis nascidos ambos reis, ambos redentores e ambos encobertos,
o primeiro, como
diz a profecia
de Isaías: Vere tu
es Deus absconditus,
Deus Israel, salvator
- o segundo,
prometido pela profecia
e; tradição de
Santo Isidoro a Espanha, não
com outro nome ou
antonomásia, senão a do
Encoberto, vejamos quão particularmente encobriu a um e outro o que
a um e
outro deu Deus
por guarda o
cuidado e vigilância
de São José.
A Cristo encobriu-o como Esposo
de Maria, nove meses e treze dias, desde
sua conceição até depois de seu nascimento, em que o descobriu a estrela no Oriente, aos Magos, e os Magos, em
seguimento dela, a toda Judéia. (SII, p. 474)
Da mesma forma
que Cristo fora
encoberto e protegido por
José durante muitos anos, tendo, inclusive, de exilar-se no
Egito a fim de se subtrair aos perigos de
Herodes, D. João IV também ficara encoberto, mas dentro das próprias terras de seus
inimigos. A explicação
de como isso
havia sido possível
revela agora uma estratégia
hábil do pregador:
Mas em
encobrir o nosso
Encoberto neste grande
perigo de o declararem as
evidências ou conjecturas
de alguns destes
afetos, mostrou o santo
quão alta e
delicadamente observou as
obrigações do ofício
de o guardar:
Custos
nati regis - equivocando milagrosamente um rei
com outro rei, e encobrindo um vivo com outro morto. Perdeu-se, ou morreu,
na batalha de
África el-rei Dom Sebastião, e puderam tanto as saudades
de um rei,
que se tinha
perdido a si
e a nós,
que, sem se divertirem
aonde deviam, deram em esperar dele, e por sua vida e vinda, a
nossa redenção, e
este foi o
altíssimo conselho com
que São José, debaixo
das cinzas do rei passado e morto, conservou e teve encoberto o rei futuro e vivo (SII, p. 476).
Vieira, ao mesmo tempo em que justifica ser D. João IV o
“encoberto” referido nas profecias,
em detrimento de D. Sebastião,
“de triste memória”,
destaca aos sebastianistas
um papel a
cumprir no xadrez
divino. A crença
sebástica teria desviado os olhos dos inimigos de Portugal
para um rei que não voltaria, enquanto que o
verdadeiro libertador do
reino permanecia seguro,
já que “encoberto”.
A relação do Sermão de São José com o dos Bons Anos fica evidente. A demora da Restauração,
bem como o
sebastianismo de milhares
de lusitanos, reforçavam
as maravilhas anteriormente
profetizadas, as quais tinham se realizado na figura do rei restaurador.
Do mesmo modo,
o nome do
rei e o
dia do nascimento
apontavam igualmente para uma
série de “coincidências” com alguns episódios bíblicos, que se tornavam claras revelações do destino de
Portugal, povo eleito.
Dois anos depois, na mesma Capela Real, Vieira pregava o Sermão de São Roque, na ocasião do
aniversário do príncipe D. Afonso. A existência então de dois herdeiros
e de quatro
sucessores – D.
João IV possuía
dois filhos e
duas filhas – garantia
a sucessão em Portugal:
Por que
cuidamos, portugueses, que se acabaram
as luzes de
Portugal? Que causa
cuidamos que houve
para padecermos aquela
noite eterna de sessenta anos
tão cumpridos? A
causa foi porque,
como Deus queria eclipsar as glórias de Portugal, permitiu que
ficasse a luz pendente de uma só tocha: um
rei, D. Sebastião,
outro rei, D.
Henrique, ambos sem
sucessão, ambos sem herdeiros.
Porém hoje, quando Deus foi servido de nos restaurar e restituir, engrossa a linha da geração
atenuada com dobrados sucessores, assegura o
lume das tochas
com multiplicadas luzes,
para que assim como se
interrompeu o cetro
de Portugal por
dois reis sem
sucessor, se perpetue
em durações eternas
por um rei
já com dois
sucessores. Dois sucessores temos, e quatro herdeiros. Ditoso o
dia, e ditoso o nascimento, em que se
cerrou e aperfeiçoou este bem estreado número (SII, p. 388).
A esterilidade da sucessão de D. Sebastião e de D. Henrique
assinalava um lapso nas glórias de
Portugal. Depois da Restauração, no entanto, a fecundidade de sucessores
assinalava, ao contrário,
a multiplicação das
glórias outrora eclipsadas em um futuro próximo:
De sorte
que não consiste
a nossa firmeza
só na multiplicação
do número, senão também na repartição do sexo. Isto é,
não só em serem quatro irmãos e duas
irmandades, senão uma de filhos, outra de filhas. E por quê? Porque os reinos e os impérios conservam-se e sustentam-se
em duas raízes: das portas adentro, na
sucessão dos reis naturais; das portas afora, com a confederação dos reis estrangeiros. E por isso nos acabou
Deus de dar, em tal dia como hoje,
tantos filhos como filhas: os filhos, para que não faltassem reis ao reino próprio; e as filhas, para que possamos dar
rainhas aos estranhos (SII, p. 390).
Na esteira dos
sermões comentados anteriormente, a
fecundidade da prole de
D. João IV confirmava a verdade das profecias:
Nasceu hoje
à geração real
portuguesa esterilizada o
primeiro filho, e nasceu
juntamente com ele a fé das promessas divinas feitas ao primeiro rei. Estava
estéril, pelos pecados
de Portugal, a
geração de seus
reis, como outra
Sara; mas, como
Deus tinha prometido
que nessa geração esterilizada
e atenuada poria
seus olhos, quando
a geração real portuguesa outra
vez se vê
fecunda, não há
dúvida que com
o primeiro fruto desta fecundidade nos nasceu juntamente
a fé daquelas promessas: In partu
suo fidem peperit. - Neste nascimento
acabou o sinal
do castigo. Com
este nascimento nasceu
a fé do
remédio. Porque, assim como foi
sinal evidente de Deus querer acabar Portugal fazer a geração real estéril, assim é confirmação evidente de
Deus querer estabelecer Portugal fazer a
geração real fecunda (SII, p. 391).
De maneira contrária,
como salienta o
pregador, Castela, que
contava com dois príncipes, poucos anos antes, então
contava com nenhum. A situação havia se invertido, e
Vieira fazia questão
de ressaltar que
a nova prole
real portuguesa era um
indício concreto da intervenção divina nos destinos da nação. No entanto, se a libertação havia sido algo maravilhoso,
mantê-la seria custoso. Abandonando por um momento
o plano profético,
Vieira introduz questões
de ordem prática,
tão necessárias diante dos
problemas enfrentados pelo reino. A fim de fortalecer o reino e
implementar o projeto
divino, o Rei
Restaurador necessitava do
apoio de seus vassalos. Assim,
era preciso cautela
quanto aos perigos
que rondavam a
nação, como também eram
necessários “remédios perigosos”. Estes consistiam na criação de
duas companhias mercantis,
a Oriental e
a Ocidental, “cujas
frotas poderosamente armadas
tragam seguras contra
Holanda as drogas
da Índia e do Brasil”. Eis o projeto a que Vieira dedicaria
tanto esforço nos anos seguintes. No entanto, havia
outro projeto, mais
polêmico ainda, que
custaria muito a
Vieira. O projeto
das companhias levantava
um obstáculo inicial:
de onde obter
os fundos necessários?
A solução prontamente
aventada por Vieira
era a de
buscar esses recursos junto aos cristãos-novos. Usando os
exemplos de São Roque, que dividiu a riqueza herdada
com os pobres,
de Davi, que
usou o ouro
de um ídolo
para enriquecer sua
coroa com mais
metal, e dos
30 dinheiros de
Judas que, além
de serem usados para a compra de
um campo para sepultar peregrinos, faziam parte das
armas de Portugal,
como o próprio
Cristo teria pedido
a Afonso Henriques, Vieira argumenta que os fins cristãos a que
servem o dinheiro são mais importantes que
a sua origem:
Há coisa
mais sacrílega que os trinta
dinheiros de Judas?
Há coisa mais sagrada
que as cinco chagas de Cristo? E, contudo, manda Deus ao primeiro rei
português que componha
as armas de
Portugal das chagas
de Cristo e mais do
dinheiro de Judas,
para que entendamos
que o dinheiro
de Judas cristãmente aplicado, nem descompõe as chagas
de Cristo, nem descompõe as armas
de Portugal. Antes,
compostas juntamente de
um e outro
preço, podem tremular vitoriosas
nossas bandeiras na conquista e restauração da fé, como
sempre fizeram em
ambos os mundos.
E se Deus
compôs assim as armas
de Portugal, se Deus não achou inconveniente nesta união, que muito é que o imaginasse assim um homem? Ora, perdoai-lhe,
quando menos, que tem bom fiador o
pensamento (SII, p. 403).
E conclui então
o padre: “a
bondade das obras
está nos fins,
não está nos instrumentos. As
obras de Deus
todas são boas;
os instrumentos de
que se serve podem
ser bons e maus”. Desse modo, não deveria causar pavor aos portugueses utilizar dinheiro “judeu” para alcançar os
seus intentos, pois, como sentenciava Vieira,
uns são servos de
Deus porque servem a Deus; outros
são servos de
Deus porque Deus se serve deles.
Os que são servos de Deus porque servem a
Deus, necessariamente
hão de ser bons; os que são servos de Deus porque Deus se serve deles, bem podem ser maus (SII, p. 404).
Portanto, para Vieira, todo artifício de um Estado cristão acaba
se mostrando um artifício
da Providência. No
caso dos judeus,
como já podemos
ver, isso era evidente
para Vieira.
O Sermão de
São Roque (1644) não é o único sermão dos primeiros anos de Vieira
em Portugal que
se destaca em seu
clamor por recursos
financeiros. Antes disso, no Sermão de Santo Antônio (1642), o pregador engendrava um
movimento político complicado:
justificar o fim da isenção de impostos para a nobreza e o clero. Além disso, em 1643, viera a público a primeira
Petição de Vieira, dirigida ao rei: a “Proposta
em que lhe representava o miserável estado do reino e a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que
andavam por diversas partes da Europa”.
O Sermão de
São Roque só expõe mais claramente o ápice das preocupações de Vieira com o destino do reino. Não é difícil
vislumbrar o estado caótico em que se encontravam as
finanças de Portugal,
acossado por um
lado pela ameaça
da Holanda, estabelecida já em
Pernambuco, e, por outro, pela Espanha, interessada em reaver sua “província” desgarrada. Como
afirma Besselaar:
(...) a garantia
divina não justifica a inatividade humana. O messianismo de Vieira não é suicídio em Deus. À
livre-iniciativa de Deus deve corresponder,
por parte do homem,
uma obediência incondicional e um esforço incessante e inteligente para
transformar este mundo no Reino de Deus (AV, p. 21).
A libertação portuguesa
do jugo espanhol
implicava, portanto, um comprometimento da
nação para a
“conservação” da liberdade,
conforme Vieira afirmara no
Sermão de
Santo Antônio (1642). O
esforço justificava-se, na
ótica do jesuíta,
como um ato
de agradecimento dos
portugueses para Deus,
que fora tão zeloso quanto
aos destinos do
reino. O sucesso
da empresa restauradora
era apenas um
primeiro estágio rumo
ao estabelecimento do
Quinto Império. Desse modo, o
desinteresse dos portugueses
quanto aos altos
desígnios de seu
próprio povo poderia
desencadear uma ira
divina, o que
já teria ocorrido
no caso de D. Sebastião.
Também Deus tinha
libertado o povo do cativeiro do Egito, e, porque lhe foi ingrato,
o sepultou todo
em um deserto.
Pois, se Deus
é este, e nós não somos melhores,
que vã confiança
é a nossa?
Nós não nos
mudamos, e queremos,
que se mude
Deus? Cuidamos que
há de dispensar
Deus conosco no atributo de sua
justiça? Cuidamos que para nós e por nós há de mudar as leis de sua providência? Dizei-me -
que o não quero perguntar a outrem -
qual foi a razão da parte de Deus, e qual a causa da parte nossa por
que nos tirou
o mesmo Deus
o rei e
a liberdade, e
nos teve cativos sessenta
anos? Todos dizemos
e confessamos que
pelos pecados de Portugal.
Pois, se Portugal se tem emendado tão pouco, como vemos, se os pecados
são hoje os
mesmos, e pode
ser que maiores
que dantes, logo queremos
que nos favoreça hoje Deus pelas mesmas culpas por que ontem nos
castigava? Cuidamos que
a justiça divina
não tem mais
que um castigo? Sete vezes libertou Deus o povo de
Israel no tempo dos Juízes, e sete vezes
o tornou a
cativar, porque sete
vezes reincidiram em
seus pecados (SII, p. 258-9).
Essas ideias foram desenvolvidas no Sermão pelo Bom Sucesso de Nossas Armas, pregado por ocasião de D. João IV ter ido
à campanha para lutar contra os espanhóis, em
1645. A inferioridade
do poderio militar
português diante do
maior número de
seus inimigos despertava
desconfiança no reino
quanto ao sucesso
da guerra. No entanto, alicerçado
em episódios bíblicos, Vieira, procurando despertar a confiança de sua audiência, narra como os
povos apoiados por Deus conseguiram sempre seus
intentos, mesmo que
seus exércitos tivessem
força muito inferior. Assim,
uma possível derrota
dos exércitos portugueses
seria decorrente de um castigo divino e não do esforço espanhol:
Tantas ingratidões
sobre tantos benefícios! Tantos esquecimentos de Deus sobre
tantas mercês de
Deus! Deus quebrando
as leis da
natureza, e
fazendo milagres
por nós, e nós faltando
a todas as
leis da razão, cometendo tantas ofensas contra Deus! Não
conhece a Deus quem o não teme em
tal estado. Que importa
que Cristo despregasse
o braço, se nós lho
tornamos a pregar
com nossos pecados: Iterum crucifigentes Filium Dei? (SII, p. 260, grifo nosso).
Vieira, na expressiva
passagem grifada no
excerto acima, relembra
aos portugueses o milagre da
Aclamação, já citado anteriormente, em que a imagem de Cristo teria soltado uma das mãos durante a
missa que celebrou a posse de D. João IV. Diante
de tantas profecias
e maravilhas, indignava-se
o pregador da
falta de confiança dos portugueses e aproveitava para
relembrar, novamente, o episódio de D.
Afonso Henriques:
Hoje faz quatrocentos
e cinquenta e dois anos que acabou a vida mortal el-rei D.
Afonso Henrique, fundador
do Reino de
Portugal, e hoje
faz cinco anos
- sem se
advertir em tal
concurso de tempo
- que foi
recebido nesta corte, e começou a reinar El-Rei D. João o
Quarto, restaurador do mesmo reino. Dia
é este, Senhor,
muito para vos
trazer à memória
as promessas que então fizestes ao primeiro rei, e nele ao
último que também agora é o primeiro.
Prometestes a el-rei D. Afonso - como ele testemunhou e jurou no seu
testamento - que
depois de atenuada
sua descendência poríeis
os olhos de
vossa misericórdia na
décima-sexta geração sua: Usque ad decimam sextam
generationem, in qua
attenuabitur proles, et
in ipsa sic attenuata ego
respiciam, et videbo. - Sendo, pois,
o rei por
quem nos restaurastes,
a mesma geração
décima-sexta, tempo é,
Senhor de pordes nela
e em nós
os olhos de
vossa divina misericórdia,
senão por nossos merecimentos,
pelos muitos e
grandes daquele santo
rei que tanto
vos soube servir
então, e obrigar
para o futuro.
Ponde os olhos,
Senhor dos exércitos,
no nosso exército,
e lembrai-vos que
todo é daqueles portugueses que no mesmo testamento
escolhestes para conquistadores de vossa
fé, e para debaixo de suas armas levarem vosso santíssimo nome às gentes
tão remotas e
estranhas, que antes
de nós o
não conheciam: Ut portent nomem meum in exteras nationes (SII, p. 262).
O sermão termina
assim com um
pedido a Deus
para assegurar a vitória
portuguesa, reencenando pedido
semelhante feito anos antes no Sermão pelo Bom Sucesso das
Armas de Portugal
contra as de
Holanda. Vieira, desse
modo, encontrava-se como uma figura de destaque no reinado de D. João
IV, preocupado em granjear
apoio e em
fornecer conselhos ao
soberano, envolto que
estava em problemas de toda ordem.
Em suma, como já havia notado Cantel, o messianismo português é
resultado da convergência
de três correntes:
duas religiosas e uma
política. Entre as religiosas, haveria
a corrente judaica,
tomada de expectativas
messiânicas, e uma católica, simbolizada
pelas Trovas
de Bandarra e
pelo pensamento de
Vieira que, para
Cantel, compartilhariam tendências neojoaquimitas
embaladas pelos descobrimentos e pela consequente missão
evangelizadora e cruzada de Portugal. Por
fim, a corrente política configurar-se-ia na oposição ao domínio espanhol, como
salientamos, fortemente apoiada
pelos jesuítas. Ainda
que não se
possa separar efetivamente uma coisa da outra, a
argumentação religiosa – especialmente a partir da
parenese restauracionista, como
ilustra o estudo
cuidadoso de João
Francisco Marques – tratou de
criar e propagar uma legitimização essencialmente profética da Restauração
portuguesa, ligando o
“milagre de Ourique”
à Aclamação, profetizada por
Bandarra. Vieira seria
o maior exemplo
dessa empresa legitimizadora. Contudo,
vale salientar, como
já notamos anteriormente, que
Vieira, como homem do século
XVII, não pensava
a política separadamente
da teologia. A
própria existência do Estado
português se dera a partir de um evento miraculoso no campo de Ourique. A partir disso, já é possível
notar o problema do domínio espanhol que, usurpando um
reino estabelecido por Cristo,
carecia de legitimidade
para tal. Mais ainda, dentro
do projeto messiânico
de Vieira, a
independência portuguesa é necessária
para o cumprimento das profecias. Desse modo, ainda que acreditemos que
Cantel tenha sido
preciso ao identificar
os elementos formadores
do messianismo português,
é preciso pensá-los
conjuntamente, como bem
ensinou Pécora (2008).
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Fonte:
Marcus De Martini: “As Chaves do
Paraíso: Profecia e
Alegoria na Obra de Padre Antônio Vieira”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras, Área de
Concentração em Estudos Literários, da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como
requisito parcial para obtenção do grau de Doutor
em Letras. Orientador: Prof. Dr. Lawrence Flores Pereira). Santa Maria, RS,
Brasil, 2011
Muito obrigada por disponibilizar esse material.
ResponderExcluirMuito obrigado
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