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26/05/2016

Contos Pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto

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Dois símbolos nacionais
  
Neste tópico, analisaremos a visão de Coelho Netto sobre dois símbolos nacionais: o Hino e a Bandeira, elementos que revelam traços marcantes do seu nacionalismo. Luiz Prates Carrión (1975, p. 305) diz que “A humanidade sempre necessita de símbolos, para representar crenças, famílias, ideais, corporações, dignidades, funções, territórios, etc., pois são imagens que resumem ideias de Pátria, de Religião ou aspirações”; e que:

O estado de espírito do indivíduo fica diferentemente motivado com estímulos inteligentes, sabiamente dirigidos, quem sabe resultante de heranças, ou mesmo como se possa supor, polarizando num cérebro privilegiado o extrato de tradições de um povo, de uma corporação, etc. (CARRIÓN, 1975, p. 305).

E ainda: “[...] Depois de adotado um símbolo, como resultado de heranças culturais daquilo que vai representar, firma-se de tal forma, criando uma tradição” (CARRIÓN, 1975, p. 305). Os símbolos nacionais passam por esse processo de criação, representação e estímulos.

Isto dito, os dois símbolos nacionais, agindo conjuntamente, provocam em Coelho Netto (1928c, p. 189), conforme seu discurso proferido em 19 de novembro de 1927 (Dia da Bandeira), um estímulo que o direciona integralmente à Pátria: “Aqui, [a bandeira] é o symbolo que se vê; o hymno é o symbolo que se ouve. Um é como a chamma; outro é a claridade e o calor; um é o gesto que acena; outro é a voz que incita, os dois completam-se formando uma expressão unica – a Patria”.


O Hino Nacional

A relação de Coelho Netto com o Hino Nacional é forte, pois na sua atuação como Deputado Federal pelo Maranhão, logo no início do primeiro mandato (1909), foi o autor do projeto para a promoção de concurso público visando a oferecer à nação uma nova letra para a vibrante música de Francisco Manuel da Silva. Alvo de muitas controvérsias, o Hino Nacional tem uma história cheia de percalços, que, passadas décadas de sua composição e já em plena República, ainda estava em rodas de discussão importantes.

Francisco Manuel da Silva foi aluno de música do Padre José Maurício e também discípulo do austríaco Sigismund Neukomm, com quem aprendeu contraponto e composição. Muito novo, Francisco Manuel escreveu um Te deum a D. Pedro I, que lhe fez promessa de enviá-lo à Itália, para aperfeiçoar-se; porém, não a cumpriu. Para compensar a desfeita, o Imperador o nomeou para a Capela Real, onde conheceu de perto grandes músicos e onde sofreu ciúmes de Marcos Portugal, importante compositor da época. Em 1830, o Padre José Maurício morre, e Francisco, com 35 anos, prepara-se para escrever a obra que o imortalizaria como compositor: o hino que viria a ser símbolo nacional.96 Muitos concordam que seu esforço foi útil para a sobrevivência da música nacional no conturbado período regencial, de 1831 a 1840 (ALMEIDA, 1958, p. 69-70; MARIZ, 1983, p. 56).

A composição musical de Francisco Manuel, alguns dizem, teria sido inspirada na Independência e se tornado popular em 1831, como Hino ao 7 de Abril, com letra de Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, em comemoração à Abdicação de Pedro I ao trono português. Quando se deu a Coroação do menino Pedro II, em 1841, o hino teria recebido uma nova letra (MARQUES, s.d., p. 11), de um autor anônimo. Entretanto, Baptista Siqueira (1972), após dirimir várias dúvidas e confusões sobre o hino, a partir da descoberta de documentos importantes, informa que a alteração na letra do hino de Francisco Manuel da Silva nada tem a ver com o Hino à Coroação, composto pelo próprio Francisco Manuel em honra a Pedro II. Em outras palavras, o Hino ao 7 de Abril e o Hino à Coroação são dois hinos diferentes (SIQUEIRA, 1972, p. 18, 54).

Quando analisamos as duas letras, percebemos, tanto numa como noutra, nós que estamos acostumados com o “Ouviram do Ipiranga”, certa dificuldade de associação do texto com a música, a começar pela tentativa de sistematizar a distribuição métrica e entre estrofes e coro, radicalmente diferente da letra atual. O problema do mau ajuste das palavras à música, que já teriam sido cantadas pelo público em 14 de abril de 1831, recebeu de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo a seguinte crítica: “a impropriedade da música para o metro e o tipo de estrofes usadas pelo poeta parece decidir a favor de uma adaptação” (apud MARIZ, 1983, p. 58). Já Baptista Siqueira (1972, p. 21), catedrático da Escola de Música da UFRJ, emitiu juízo mais severo:

Desde o primeiro momento se tem dito: O Hino Nacional é obra incontestàvelmente musical. As palavras que lhe foram aplicadas no século passado não tiveram o poder de acompanhar a pujança das cadências nem a beleza da atraente melodia. Além de tudo outros fatôres, não menos importantes, vieram concorrer para o insucesso da poesia heróica do tempo da abdicação: o ritmo troqueu, as terminações esdrúxulas, e a ampliação do canto seguido de ligação melódica que se reune a ancruse integrante naquele passo denominado, pelos leigos, de conjunção. Diante de tais circunstâncias que dependiam de elevados conhecimentos técnicos, os artistas recorriam, nos momentos da execução, ao processo do canto alternado entre o côro e o solista. Entretanto, a inadequação dos versos era tanta que o resultado interpretativo sempre deixou a desejar com as evidentes violações das regras fundamentais de conexão na melodia cantada. O problema permaneceu assim durante todo o século passado numa certa perplexidade incompatível com o patriotismo e o entusiasmo dos brasileiros. Não houve, destarte, unidade entre a música e o poema, ficando prejudicado o conteúdo na sua integração de música prosódica.

Se a música permanecia viva no gosto popular, diz ainda Siqueira, isto se devia à sua espontaneidade, vigor e entusiasmo. Quanto à tentativa de atribuir-lhe uma letra no século XIX, ele comenta: “Quem se dá ao trabalho de examinar em detalhes o aspecto épico, tanto da primeira quanto da segunda letra, logo se convence de que algo andava errado com respeito ao fator coerência” (SIQUEIRA, 1972, p. 21). Baptista Siqueira (1972, p. 57) faz outra observação pertinente: “Se o Hino Nacional tivesse, desde o início, letra compatível com a beleza e pujança da música instrumental, teria por certo comprovado sua filiação monárquica e, como tal, jamais poderia continuar vigorando após a Proclamação da República”. As infelizes tentativas de ajustar poemas à música, no século XIX, concorreram fortuitamente em favor do velho hino para sua manutenção na República.

Pode somar-se a isto a observação trazida a lume por Carrión (1975, p. 310-311), de que o Hino, antes de D. Pedro II, não tinha sentido de representação patriótica, senão de louvação monárquica, fato que, não obstante a segunda letra ter sido mais incisiva no personalismo do segundo imperador, mudou em relação a este:

Esse elevado sentido teve origem nos campos de batalha e nas solenidades em respeito ao Segundo Imperador, porém, é significativo declarar, segundo as pesquisas feitas, que o Hino tocado em atenção ao estimado Sr. Dom Pedro II teve a idéia de Pátria e não a de identificar com a muito respeitada pessoa de S. M. o Imperador (CARRIÓN, 1975, p. 311).

Quanto à situação do Hino no novo regime, dizem alguns autores que, com a instauração da República, pensou-se de fato em adotar um novo hino nacional, como Carrión (1975, p. 312-313): “Quando da Proclamação da República, foi mandado abrir concurso para apresentação de composição do Hino, tendo sido solicitada a cooperação de Carlos Gomes, que respondeu da Itália em telegrama lacônico: ‘Não posso’”. Eliane Ubillús (2007) afirma que o compositor teria declinado do convite porque “Ele já conhecia o hino de Francisco Manuel da Silva e naturalmente deve ter previsto que nenhum outro conseguiria ocupar o espaço conquistado pelo primeiro hino”. Já Alvonira Marques (s.d., p. 11) diz que “o advento da República impôs a sua substituição. Abriu-se concurso para a escolha de um novo [...]”.

Mário Meireles (1972, p. 41), por sua vez, ignora completamente isso, apenas se referindo ao concurso mandado fazer em 1909 para a escolha de uma nova letra. A razão pode estar na convicção de Baptista Siqueira (1972, p. 59): “Chamamos a atenção para o fato de não encontrarmos, em nenhum momento, qualquer notícia de concurso para o Hino Nacional mas a respeito do Hino à República, há pouco tempo proclamada”. Quando lemos as várias notícias de jornal elencadas por Siqueira (1972, p. 57-58), sobre iniciativas de composição do hino e sobre o referido concurso, elas sempre se referem ao Hino da República que se queria adotar, nunca com a ideia de substituir o velho hino de Francisco Manuel.

De fato, o Governo Provisório, no dia 22 de novembro de 1889, mandou abrir concurso público para o novo hino republicano. Quando se preparavam as festividades para o 2.º mês após a Proclamação, e não estando ainda prontos para a execução os hinos concorrentes, repentinamente noticiou o jornal Cidade do Rio, de José do Patrocínio, no dia 16 de janeiro de 1890:

O Sr. major Inocêncio Serzedelo (mais conhecido como Serzedelo Correia), dirigindo-se ao Sr. Ministro da Guerra, em nome do povo, exército e armada, em termos eloqüentes, lembrou que o Hino Nacional não é o Hino de um regime mas o Hino da Pátria: já é uma música sagrada que fala ao coração do Brasil; e pediu a sua conservação. / [...] / Em nome do Govêrno o Sr. Ministro respondeu que o Govêrno respeita a vontade da Nação, e as bandas romperam entusiàsticamente executando o velho Hino que despertou os mais frenéticos aplausos (apud SIQUEIRA, 1972, p. 59).

Por mais que a notícia tenha sido chamativa, Siqueira conclui por ela que o apelo popular pelo velho hino ocorreu antes da realização do concurso aberto para a oficialização do hino republicano. “Tanto isto é verdade que, após essa manifestação de acatamento às aspirações das fôrças armadas, continuou o concurso para o nôvo Hino, como se nada tivesse acontecido” (SIQUEIRA, 1972, p. 59). As notícias se sucederam, e os quatro concorrentes inscritos foram: Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno, Jerônimo de Queiroz e Francisco Braga. No dia 20 de janeiro de 1890, feitas as apresentações no Teatro Lírico, o júri, composto por membros do Instituto Nacional de Música, eliminou o hino de Jerônimo de Queiroz e classificou os outros três na seguinte ordem: 1.º Leopoldo Miguez; 2.º Francisco Braga; e 3.º Alberto Nepomuceno. No mesmo dia, saía o Decreto n.º 171, que oficializava a música de Francisco Manuel como Hino Nacional e a de Leopoldo Miguez como Hino da República, com letra de Medeiros e Albuquerque (SIQUEIRA, 1972, p. 60).

Outra questão provocada por Siqueira (1972, p. 61-62) é sobre a famosa frase atribuída ao Marechal Deodoro da Fonseca, quando da execução dos quatro hinos concorrentes: “Prefiro o velho!”. Frase que teria determinado a mudança da intenção do concurso de Hino Nacional para Hino da República. Por ela, Deodoro teria sido o responsável direto pelo “rebaixamento” da música vitoriosa de Miguez a Hino da República. Alguns autores apresentam essa versão, como Alvonira Marques e Vasco Mariz. Quanto a isto, Siqueira (1972, p. 61) sentencia:

Parece tratar-se suposição infundada, uma vez que no dia 15 de janeiro daquele ano, portanto cinco dias antes, já o Marechal havia decidido, por sugestão do major Inocêncio Serzedelo Correia, que falara em nome do povo e das fôrças armadas, manter o Hino de Francisco Manuel da Silva como Hino Nacional do Brasil. Não iria anunciar aquilo que “preferia”, quando aquilo já estava “preferido”.

E põe termo à discussão (SIQUEIRA, 1972, p. 62):

Pelo exposto, verifica-se a sem razão da pecha levantada em tôrno da questão que situa o Marechal Deodoro numa posição equívoca. / Como poderia êle antecipar-se na escolha de um Hino que havia colocado em confronto para ser decidido por hábeis mestres do Instituto Nacional de Música? Em verdade, tudo não passou de mera especulação, pois o concurso era realizado para proclamar o vencedor da música destinada a ser o “Hino da Proclamação da República”, conforme se anunciava intensivamente na imprensa diária do Rio de Janeiro. / Foi necessário dar estas explicações para evitar que se continue propagando uma tal leviandade que, por outro lado, expõe a autoridade governamental ao mau vêzo do julgamento arbitrário, além de colocar mestres de renome e glória numa posição incompatível com a dignidade dos cargos que ocupavam. / Pelo menos no Teatro Lírico, o Hino de Francisco Manuel da Silva não foi confrontado, diante das autoridades, na sessão pública do dia 20 de janeiro de 1890, para merecer a frase atribuída ao Marechal Deodoro da Fonseca. Sabe-se, porém, que o entusiasmo que atingiu a alma dos brasileiros no momento da Proclamação da República não incidiu, absolutamente, sôbre o Hino Nacional, página gloriosa e, por isso mesmo, irreversível nos anais da história pátria [...].

O que não se discute é que, destronada a Monarquia, não houve quem destronasse o velho Hino. Estava no gosto popular. José Murilo de Carvalho (2007, p. 122-128) classifica a manutenção do Hino de Francisco Manuel como vitória da tradição, vitória do povo, depois de até mesmo a Marselhesa, hino francês, ter sido ouvida e reclamada por alguns no contexto do 15 de Novembro: “Mais do que a batalha da bandeira, a do hino nacional significou uma vitória da tradição, pode-se mesmo dizer uma vitória popular, talvez a única intervenção vitoriosa do povo na implantação do novo regime” (CARVALHO, 2007, p. 122).

Como as letras atribuídas ao Hino Nacional eram alusivas à monarquia, e, portanto, incompatíveis com o novo regime político brasileiro, o Hino permaneceu sem letra durante anos. E voltaria a ser tema de debate, quando o maestro cearense Alberto Nepomuceno, Diretor do Instituto Nacional de Música, advertiu o Governo sobre o desrespeito com que era tratado o Hino, executado a bel-prazer por bandas musicais Brasil afora. Irritado, ele escreve uma carta ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Augusto Tavares de Lyra, datada de 20/11/1906, na qual informa que, presente à cerimônia de posse do Presidente Afonso Pena, ouviu o Hino sucessivamente executado por três bandas militares presentes no Palácio Presidencial, quando um fato desagradável chamou-lhe a atenção:

Impressionou-me desagradavelmente o facto de a banda que executou o Hymno em segundo lugar e que, fui informado, era uma das da Brigada Policial, fazel-o com uma variante melodica positivamente errada, pois que se achava em evidente desacordo com a harmonia do acompanhamento, com o qual absolutamente não se compadecia (NEPOMUCENO, 1922).

Sendo o Hino Nacional símbolo oficial da nação, deveria ser executado conforme a composição original, e qualquer erro ou deturpação haveriam de ser evitados, diz Nepomuceno, e em caso de alteração, sem autorização do poder competente, o que incidiria em falsificação de documento público, seus autores deveriam ser penalizados.

Como resultado da crítica de Nepomuceno, o governo de Afonso Pena determinou as providências necessárias, que não passaram da nomeação de uma comissão composta por mestres renomados: o próprio Nepomuceno, Francisco Braga e Frederico Nascimento. Concluíram que “não havia partitura e material de execução em condições nem possuía o Hino, aprovado pelo Governo Provisório, letra adequada à nova situação política do Brasil” (SIQUEIRA, 1972, p. 63). No mais, não houve nenhuma providência efetiva, apenas um relatório foi entregue ao Ministro da Justiça.

Siqueira (1972, p. 63) informa ainda: “Quando Alberto Nepomuceno fêz aquela advertência sôbre o desrespeito ao hino nacional, em 1906, o fato repercutiu na Câmara dos Deputados na palavra eloqüente de Coelho Neto, que lembrou a conveniência de se cuidar de uma letra para o Hino já agora oficial” (SIQUEIRA, 1972, p. 63). De fato, o caso chegou à Câmara, mas Siqueira equivoca-se quanto a Coelho Netto ter estado lá em 1906, pois somente em 1909 assumiu seu primeiro mandato como deputado federal.

O fato é que o relatório chegou à Câmara dos Deputados, merecendo um parecer desfavorável da parte do seu Presidente, o deputado gaúcho Germano Hasslocher. Justificava este o seu parecer negativo dizendo que não se podia conceber, por variadas razões, a realização de um concurso para a escolha de uma letra para o Hino Nacional, e que esta letra um dia surgiria espontaneamente na boca do povo, citando exemplos de hinos pelo mundo afora. Coelho Netto, com seu engajamento patriótico por fazer-se no Parlamento, opôs-se-lhe na palavra com que discursou na sessão de 29 de julho de 1909, cujo texto foi publicado no livro Falando... (COELHO NETTO, 1919b, p. 5-19). Eis os primeiros trechos:

O SR. COELHO NETTO (Movimento de attenção) – Sr. Presidente, no actual momento eu não me atreveria a occupar esta tribuna, freqüentada, com brilho, por oradores de vulto, se não fosse solicitado por dois sentimentos, qual delles mais poderoso – culto da Arte e o exaltado amor da minha Patria. / Foi a Arte que aqui me introduziu e, como artista, trago, e sempre trarei, a esta Casa a minha palavra pequena, por que na disciplina litteraria iniciei a minha carreira e, como leval-a a termo sempre fiel ás suas normas. / Lendo o parecer que diz com um pedido do director do Instituto Nacional de Musica, relativamente à letra do nosso Hymno Nacional, parecer redigido por um dos espiritos mais lucidos que tenho a fortuna de encontrar em meu paiz... (Apoiados)
O SR. GERMANO HASSLOCHER – Obrigado a V. Ex.
O SR. COELHO NETTO – entendi do meu dever contestar desta tribuna as idéas nelle emittidas. Entende S. Ex. refutando, com uma leve ponta de ironia, a proposta do director do Instituto Nacional de Musica, que se não deve substituir a letra, ou melhor a “monstruosidade” que compromette a manifestação mais alta da inspiração da musica em nossa Patria, que é o Hymno de Francisco Manuel. (Muito bem) / Os fundamentos apresentados por S. Ex. não parecem derivar de um homem de progenie germânica [...] (COELHO NETTO, 1919b, p. 5-6).

A partir daí, Coelho Netto passa a falar da característica longeva do apreço dos germânicos por hinos e poesia, citando cenas do folclore e da história, fábulas, batalhas, Goethe, os minnesinger, Hans Sachs, Theodoro Koerner e outros (COELHO NETTO, 1919b, p. 6-8); admira-se ele que Hasslocher, um descendente de alemães, de um povo que cultua tradições seculares como essas, não se sensibilizasse com o apelo patriótico de Alberto Nepomuceno, em favor de uma nova letra para o Hino Nacional.

Ele cita também um grande trecho de Philarête Chasles, que comenta a popularidade do canto e da poesia na Alemanha, além de um texto de Medeiros e Albuquerque, redator da Gazeta de Notícias, publicado no dia anterior, comentando que o governo francês abrira concurso público para a escolha de letra e música de canções, com o objetivo de distrair soldados sedentários, os quais se ocupariam em entoá-las. Diz Medeiros e Albuquerque que o grau de civilização da França permitia àquela nação a realização de concursos banais que, no Brasil, no mínimo, seriam ridicularizados (COELHO NETTO, 1919b, p. 8-9).

Coelho Netto (1919b, p. 10) prossegue, citando o parecer de Hasslocher:

Diz mais S. Ex. / “Não parece que a historia consigne cantos nacionaes, adoptados como hymnos, feitos por via de concurso, em que a inspiração vem da esperança de alcançar premio nessa especie de justa. / Os hymnos são explosões dos grandes sentimentos em horas solemnes da vida nacional; sahindo no sentimento publico, onde se fazem populares, criam raizes, antes dos decretos legislativos que os adoptem officialmente. / [...]”

A isto, ele replica: “Não está bem informado o meu illustre collega” (COELHO NETTO, 1919b, p. 10). Daí passa a citar vários exemplos, como do hino austríaco (substituído após a II Guerra), encomendado a Joseph Haydn, para comemorar o aniversário do imperador, com letra também encomendada a Ludwig Auerbach. Citou ainda o hino da Suécia, uma antiga canção, que recebeu versos do arqueólogo Dybeck, e apesar de o momento da composição poética não ter nenhuma importância histórica, os suecos cantavam esse hino com grande entusiasmo. Também lembrou o hino da Noruega, com letra de Björnson e música de R. Nordraack. E o hino imperial russo (substituído após a Revolução de 1917), encomendado pelo Czar Nicolau I, em 1833, ao general Lwoff, cuja popularidade teria ido além-Rússia (COELHO NETTO, 1919b, p. 10-11). Após esses exemplos vindos da Europa, Coelho Netto (1919b, p. 11) pergunta: “como affirmar, portanto, que o mesmo não se dará no Brasil, onde não existe justamente melodia mais popular que a do Hymno Nacional?”.

Fica assim contestada a affirmação do relator “que a letra dos hymnos precede sempre a sua musica”, affirmação essa que poderiamos contestar com innumeros exemplos tirados do Commers Buch, dos choraes protestantes, etc., etc. A Carmagnole e o Ça ira, cuja popularidade ninguem porá em duvida, foram adaptadas a melodias já conhecidas (COELHO NETTO, 1919b, p. 11).

A erudição do prosador e parlamentar maranhense começa a pôr o deputado e jurista gaúcho em apuros, quando Coelho Netto arremata com maior ímpeto:

Entende S. Ex. que não devemos perder tempo com a preoccupação de uma letra para o nosso Hymno Nacional “porque ella virá opportunamente, quando um sentimento forte a fizer brotar da alma do povo”. / Até lá teremos que ficar com o que possuimos que, sobre ser detestavel como poesia, é uma incongruencia ridícula no regimen politico em que vivemos. / A letra de nosso Hymno Nacional não póde, de modo algum, ser entoado [sic] nos dias que correm porque nem de leve se refere á nação sendo, como é, um canto panegyrico no qual se preconizam apenas as virtudes de D. Pedro II:

Negar de Pedro as virtudes, / Seu talento escurecer, É negar como é sublime / Da bella aurora o nascer.

Como, segundo a formula verdadeira, só se destróe aquillo que se substitue, tratemos, por patriotismo e decência, de destruir essa apologia, cujos versos claudicam deploravelmente (COELHO NETTO, 1919b, p. 11-12).

Para desfechar seu discurso, ele cita ainda dois exemplos constrangedores sobre a falta de uma letra adequada para o Hino: o do diretor da Escola Normal de São Paulo, que, querendo fazer os alunos cantarem o Hino Nacional, estancou diante da letra, não encontrando outra solução que não ele próprio improvisar um poema, que Coelho Netto chamou de “nescio monstrengo métrico”, citado em seguida pelo orador maranhense (COELHO NETTO, 1919b, p. 12-13); o outro caso envolveu Euclides da Cunha, que, em 1904, como chefe brasileiro na comissão mista de Brasil e Peru para retificação das divisas entre os dois países, presenciou a força do hino peruano cantado a plenos pulmões pelos peruanos, ainda pelos mais humildes “índios”. Na noite de 27 de julho, véspera do Dia da Independência do Peru, os militares em volta da bandeira começam a entoar vivamente o seu hino, enquanto Euclides, admirado, ouve o canto patriótico dos peruanos. Diz Coelho Netto (1919b, p. 17-18):

Era verdadeiramente religioso o acto e Euclydes, com o coração a bater, regressou ao seu campo e, recolhendo-se, a ouvir o cântico cada vez mais enthusiastico, dentro da noite sumptuosa, receiou, disse-me elle, que a commissão não findasse antes de 7 de setembro, porque teria de dar aos peruanos, com um triste silencio, a prova humilhante de que somos um povo sem tradição, que nem um hymno possuimos que seja, longe da Patria, a oração de amor com que a ella nos reportemos.

“E senti a nossa inferioridade” concluiu o escriptor.

Coelho Netto (1919b, p. 18) conclui: “É para que outro brasileiro não repita essa phrase dolorosa e possamos entrar no côro das nações com a voz altiva do nosso civismo, que eu venho propor esta emenda substitutiva á conclusão do parecer do meu illestre collega”. Ele venceu o debate com Hasslocher, e sua emenda, aplaudida no plenário e aprovada (Emenda substitutiva ao parecer n.º 13, de 1909), autorizava o governo a abrir concurso público e premiar a melhor letra para a música de Francisco Manuel da Silva.

Estava pronto o projeto para a nova letra do Hino Nacional, cuja poesia seria orientada pelas instruções técnicas de Alberto Nepomuceno, para harmonizar-se perfeita-mente à melodia de Francisco Manuel. Assim, realizado o concurso, em 1909, saiu vencedor o poema de Joaquim Osório Duque Estrada, o famoso “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas...”. Mas o problema foi resolvido só em parte, porque ainda teriam de esperar mais treze anos para que a letra de Osório fosse oficializada, embora o Legislativo tenha enviado várias mensagens ao Governo, nesse sentido. Pois foi exatamente na véspera do primeiro centenário da Independência, que o Decreto n.º 15.671/1922 declarou oficial a letra do Hino Nacional, composta por Duque Estrada, ou seja, no 33.º ano da República. O direito autoral da letra foi adquirido pelo Estado brasileiro, através do Decreto n.º 4.559/1922, pagando cinco mil contos de réis a Osório, enquanto o canto do hino foi tornado obrigatório em todas as escolas e entidades afins, através da Lei n.º 259/1936.

Coelho Netto tinha muito apreço pelo Hino Nacional, por considerá-lo sagrado. No Breviário cívico, ele observa:

Se uma só palavra do nosso idioma, ouvida a alguem em terra, toca-nos fundo o coração no que elle tem de mais sensível, como nos não ha de commover o hymno que é, a bem dizer, a benção da mesma Patria? / [...]

O hymno chama-nos ao dever reunindo-nos em volta da bandeira como a campainha do acolyto no templo filia-nos á Cruz. / É canto pastoral que nos congrega e é brado que nos excita. / [...] / É o canto triumphal dos vivos e é a nenia funeral dos mortos. / [...] (COLEHO NETTO, 1921, p. 25-26).



Sua veneração patriótica pelo Hino era pura convicção nacionalista, acompanhando-o pelo resto da vida. Culto não inferior prestou também a outro símbolo nacional, a Bandeira, que mereceu dele bastantes referências.

A Bandeira Nacional

Sem precisar vasculhar a evolução histórica dos vários tipos de bandeira que o país teve ao longo de sua história, nem ainda a questão legal quanto a sua oficialidade e mudanças, é suficiente mencionar que o símbolo que ela representa é marcante para o patriótico autor de que estamos tratando. Um pedaço de pano, insignificante em natureza, mas que representa simbolicamente a pátria, como ele costumava definir.

Nessa relação de representação, aqui entendida como o relacionamento de uma imagem presente (bandeira) com um objeto ausente (a nação, a pátria) (CHARTIER, 2002, p. 20-21), Coelho Netto vê a bandeira como símbolo sagrado e poderoso, capaz de representar tantos elementos quantos forem necessários para identificação pátria. Como nesta descrição da bandeira, na palestra aos alunos da Escola Naval, em 1912:

Assim a bandeira: pedacinho de seda onde se contem a Patria – nelle a terra, nelle o céu, nelle o mar, nelle o espirito, a honra, o passado, o presente e o futuro, o amor, que é a vida; a poesia, que é o ideal; a historia, que é o relicario do tempo e das acções dos homens; e a religião, que é o horizonte da alma. / Folha do evangelho no mastro do navio, á frente dos exercitos, em todos os angulos da Patria, ubiqua como a luz e como a divindade (COELHO NETTO, 1918, p. 260).

A ideia de que a bandeira contém a Pátria é uma representação típica do nacionalismo patriótico do início do século XX; mas trazê-la ao lume da religião, chamando-a de “folha do evangelho” e “ubiqua como a divindade”, é tornar mais poderoso o apelo e inescusável o dever cívico diante do simples “pedacinho de seda”, isto é, do país que ele representa. Para Coelho Netto (1926, p. 58), em discurso pronunciado em 19 de fevereiro de 1922, publicado em Orações, é como se a própria bandeira pudesse falar, austera e inconfundivelmente, chamando os filhos patriotas ao sacrifício honroso pela pátria, à semelhança da cruz para os antigos mártires cristãos:

[...] O vosso grito na paz deve ser o que ahi está na bandeira: Ordem e Progresso. / Mas se essa mesma bandeira acenar-vos ao coração pedindo-vos o sacrificio do que nelle tendes de mais precioso: a vida, certo não lh’o recusareis, porque a bandeira é para o Patriotismo o que é a Cruz para a Religião. / E assim como os christãos não hesitavam um momento em sacrificar-se pelo sagrado emblema e corriam a abraçar-se com elle entre feras e algozes, assim vos precipitareis, briosos, ao primeiro reclamo da bandeira e, tomando-a no punho, vencereis com ella.

Noutra ocasião, em palestra aos marinheiros, na sede do Riachuelo F. Club (Ilha das Cobras), no dia 11 de junho de 1917, ele diz: “Lembrai-vos do Brasil e honrai-o com brio, defendei-o com bravura, porque o que fizerdes será visto por elle, presente no navio, como Deus no altar, em um symbolo, que é a bandeira” (COELHO NETTO, 1926, p. 13). A bandeira, semióforo poderoso na propaganda nacionalista do início do século XX, é aqui tida como os olhos do Brasil, que recebe atributos divinos de ubiquidade ou onipresença.

Por falar nisso, citamos de novo um trecho do Breviário cívico (COELHO NETTO, 1921, p. 21-22), em que a bandeira aparece ligada a sentimento análogo ao religioso:

Não ha religião sem Deus nem Patria sem bandeira. / Prestar culto á bandeira é venerar o espaço e o tempo nos limites geographicos de uma nação e nelles a raça e tudo o que ella representa. / Venera-se na bandeira o espaço pelo amor á terra maternal. / [...] / Que é uma bandeira? é um panno e é uma nação, como a cruz é um madeiro e é toda uma Fé. / [...] / Assim como nos descobrimos diante do sacrário, que encerra a hostia, que é o symbolo de Deus, descubramo-nos diante da bandeira, que é o symbolo da Patria.

Agora, em discurso do dia 19 de julho de 1920, para os reservistas do Tiro de Guerra 525, ela encarna dois caracteres típicos da representação clássica da nação, que estão postos, inclusive, na letra do hino nacional: o da mãe gentil e pacífica que agasalha e protege seus filhos, e o de nação justa e guerreira que ergue da justiça a clava forte:

Na bandeira, á qual prestastes juramento de lealdade, tendes um symbolo admiravel. / Vêde-a como se mostra em seda, tão leve que um brando sopro a enruga e agita. Aberta é pallio que agasalha e é benção de amor. Entretanto a haste em que se prende é lança – vêde-lhe o ferro alumiar na ponta. / É bem a imagem de Minerva meiga e forte, docil e altiva, pacifica, porém armada. Assim tambem deveis ser (COELHO NETTO, 1926, p. 43).

No discurso pronunciado na Prefeitura Municipal, em 19 de novembro de 1915 (Festa da Bandeira), por ocasião da entrega da medalha cívica, mandada cunhar pelo Presidente da República, Wenceslau Braz, ao aluno salesiano Antônio Carlos das Chagas, que salvou a bandeira nacional do naufrágio da barca Sétima, publicado tanto em Versas quanto em Livro de Prata (COELHO NETTO, 1918, p. 301-313; 1928c, p. 71-82), há bastantes elementos de identificação da bandeira com o sagrado, o sagrado da pátria.

Doze anos mais tarde (1927), na mesma festa da Bandeira, na mesma Prefeitura, a bandeira, para ele, continua objeto digno de adoração: “Mas, senhores, não basta acclamá-la, como aqui fazemos, é necessario cercá-la de veneração e respeito” (COELHO NETTO, 1928c, p. 187). Uma simples cerimônia de hasteamento é como estar numa congregação de adoração: “[...] aqui nos achamos congregados em acto de religião, como em igreja [...]” (COELHO NETTO, 1928c, p. 189). Por isso, seu culto requer um bom caráter e a reverência de um adorador: “O culto da bandeira deve ser feito com honestidade e veneradamente” (COELHO NETTO, 1928c, p. 188). Os componentes da bandeira carregariam em si vários aspectos que o escritor considera importantes:

Esse mastro é um symbolo. Na sua rectidão, é o caracter; na sua resistencia, é a força; na sua altura, é o brio e a driça que suspende a bandeira não é senão a solidariedade, o esforço de todos, por isto vistes andarem unidas as duas mãos do que realisou, ha pouco, triunphalmente, o surto do glorioso panno. Curvai o mastro e a bandeira roçará em terra, derrubai-o e vê-la-eis humilhada e maculada (COELHO NETTO, 1928c, p. 188-189).

Ainda evocando similitudes com a religião, para ele, a bandeira é como uma alma ou espírito, substância imaterial que vivifica a matéria (corpo). Isto fica patente na cerimônia de morte de um navio, o velho cruzador “República”, “espetaculo ao mesmo tempo bello e commovente”. Ele narra o episódio, numa alocução datada de 19 de fevereiro de 1922 (COELHO NETTO, 1926, p. 57):

Ancorada, a velha nau de guerra parecia em festa. Era a sua ultima viagem. Iam dar-lhe baixa. / Pobre cruzador! Não mais singraduras longas, caricias de bonanças, bategas de temporaes, portos de terras longinquas, calores tórridos, invernias gélidas! / Lá estava o comndenado. No mastro, como a chamma de um círio, a bandeira afflava ao vento. Ainda tinha vida o velho barco. / Realisou-se a cerimonia lugubre, foi lavrada a acta, ou certidão de obito. Ia o “Republica” passar de nau de guerra a mesquinho pontão: cadaver! / Ainda, entanto, o não era. Por que? Porque vivia: lá estava a bandeira desfraldada no tope do mastro (COELHO NETTO, 1926, p. 59).

A única razão do navio “moribundo” ainda continuar “vivo” era a bandeira que o animava, como alma ou espírito que habitasse seu corpo. Um marinheiro, porém, se adianta lentamente, comovido, e faz descer o estandarte nacional, que, tremulante, chega-lhe às mãos. Coelho Netto (1926, p. 59), num vislumbre poético, sente-lhe a morte na agonia do navio que vai perdendo a alma: “Arfa o cruzador nas ondas, como um corpo estrebucha”. Está consumado: “Fôra-se-lhe a alma. Quedou morto”. A mera aposentadoria do navio ganha ares de funeral, tudo por causa da bandeira que acabava de ser retirada de seu mastro.

Sua conclusão moral é esta: “Patricios, assim como a bandeira arriada do tope do mastro, deixou morto o navio, assim succederia á Patria se não houvesse homens que a defendessem e mantivesse no alto [...]” (COELHO NETTO, 1926, p. 60). A bandeira, portanto, é um dos símbolos mais representativos no estudo da temática nacionalista em Coelho Netto, a ponto de se confundir com a própria pátria a qual ela tão-somente representa.


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Fonte:

CLAUNÍSIO AMORIM CARVALHO: "O INSIGNE PAVILHÃO: NAÇÃO E NACIONALISMO NA OBRA DO ESCRITOR COELHO NETTO". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social (Mestrado Acadêmico) da Universidade Federal do Maranhão, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em História Social. Orientadora:  Prof.ª  Dr.ª  Maria  Izabel Barboza de Morais Oliveira). São Luís, 2012.

Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

26/12/2015

O Morto: Memórias de um fuzilado, de Coelho Neto

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O “SOLDADO DESCONHECIDO”

No dia 5 de outubro de 2011, a presidente do Brasil, Dilma Roussef, chegou à Bulgária, terra do seu pai, para um compromisso oficial de dois dias. Encontrando-se na capital Sófia com o presidente búlgaro, Georgui Parvanov, recebeu deste a maior condecoração daquela república: a ordem Stara Planina. Depois, ela participou de uma cerimônia que nos chamou a atenção: “Dilma colocou uma coroa de flores com as cores da bandeira brasileira no túmulo do soldado desconhecido [...]. Diante do monumento, ela foi recebida oficialmente por seu anfitrião, com honras militares e os hinos das duas nações” (DILMA INICIA..., 2011).

Cerimônias como essa não devem, no entanto, causar-nos estranheza, pois túmulos de soldados desconhecidos são mais comuns do que imaginamos. Tanto que existe até o Dia do Soldado Desconhecido, comemorado em vários países em 28 de novembro. Numa simples pesquisa ao site Wikipédia (2012a), é possível localizar diversos monumentos erigidos pelas nações em honra a soldados desconhecidos, como aquele da Bulgária, mortos em batalha, cujos corpos não foram identificados. Às vezes, trata-se de um túmulo simbólico, chamado de cenotáfio, isto é, sem que necessariamente haja restos mortais dentro dele.

No rastro do Wikipédia (2012a) e de Silva et al. (1966), encontramos vários desses monumentos, da Polônia à Austrália, da Argentina à Rússia, do Chile à Inglaterra, da França à Índia. Enquanto o mais antigo conhecido é o Landsoldaten (“Soldado de Infantaria”), de 1849, da Primeira Guerra de Schleswig (1848-1851), em Frederícia (Dinamarca), talvez o mais famoso seja o “Túmulo ao Soldado Desconhecido” norte-americano, atração turística do Cemitério Nacional de Arlington (Vírgínia). Deste, Silva et al. (1966, p. 1403) dizem que:

coube ao sargento Younger, sobrevivente da guerra, condecorado pelos governos francês e americano, designar, entre quatro esquifes, o do Soldado Desconhecido. Com os olhos vendados, depositou num esquife um buquê de flores: era assim designado o Soldado Desconhecido americano. No dia 11 de novembro de 1921, era o esquife conduzido ao cemitério de Arlington, sendo ali inumado. A inscrição do túmulo dizia: “Aqui repousa, em honra e glória, um soldado americano, somente conhecido por Deus”.

Edificar e consagrar túmulos de soldados desconhecidos tombados em guerra, a partir da I Guerra Mundial (1914-1918), parece ter sido uma tendência consequente à iniciativa britânica para com um herói não identificado, morto na Guerra e sepultado com honras nacionais, em 1920, na Abadia de Westminster. Esse soldado simbolicamente representava todos os demais soldados do Império Britânico mortos em combate. O caso britânico é muito parecido com o americano na forma da escolha, ou, antes, por ser mais antigo, serviu-lhe de modelo: “para ser escolhido o Soldado Desconhecido inglês, muitos corpos foram exumados nos campos de campanha, em Flandres, e um oficial, de olhos vendados, tocou com a mão direita um dos esquifes” (SILVA et al., 1966, p. 1403).

Depois vieram os exemplos notáveis da França, com seu famoso túmulo ao soldado desconhecido sob o Arco do Triunfo, em Paris, também inaugurado em 1921, escolhido pelo soldado Auguste Thin, dentre oito esquifes que se achavam na câmara mortuária da cidadela de Verdun (MOMENTOS..., 2012); e também da Bélgica, Itália, Polônia, Portugal, Grécia e Iugoslávia, todos inaugurados na década de 1920.

No Brasil, talvez o monumento mais expressivo, nesse sentido, seja o erigido no Rio de Janeiro, em 1960, em homenagem aos “pracinhas”, combatentes brasileiros mortos na Itália, durante a II Guerra Mundial (1939-1945), cujos restos mortais foram resgatados do cemitério de Pistoia, na Itália (SILVA et al., 1966, p. 1404; WIKIPÉDIA, 2012b).

O caso de Portugal, citado acima, é de grande interesse para nós, pois mereceu de Coelho Netto (2007, p. 19-22) uma crônica, por ocasião do fato. Tal consagração se deu, na realidade, em relação a dois soldados, um morto na França, e outro em Moçambique, cuja autorização de traslado dos corpos foi dada pelo governo em março de 1921. Todo o cerimonial, de repercussão nacional, desde o embarque até o sepultamento oficial, tomou vários dias do mês de abril. Detalhes dos fatos, várias fotografias e até um vídeo podem ser vistos no site português Momentos de História (2012).

Intitulada “O soldado desconhecido”, a crônica de Coelho Netto foi publicada originalmente na sua coluna semanal no jornal carioca A Noite (31 mar. 1921), e coligida em

Às quintas, publicação de 1924. Coelho Netto (2007), ali, elogia a bravura e o esforço de todos os soldados que dignificaram a nação de Portugal, em suas conquistas, e toma o “soldado desconhecido” como símbolo de todos os anônimos, assim na morte como na vida, que se entregaram pela pátria lusitana. Ele diz:

As Nações não escolhem, não têm preferências, buscam apenas no morto um distintivo que lhe assinale a origem e, tanto que o descobrem, tomam-no a si e, desde logo, aquele despojo anônimo da Morte, transfigurado em símbolo, é inscrito na ata da cerimônia sublime com o nome de Povo mártir, esse “Ninguém” que é tudo, esse tumulto que entra na História dissolvido em heroísmo, como o sal no oceano (COELHO NETTO, 2007, p. 20).

E “esse ninguém que é tudo” é especialmente invocado para designar o coração de um Povo, no caso o português, mas bem poderia ser, para Coelho Netto, o brasileiro, eis por que esse cerimonial deveria servir, segundo ele, de exemplo às nações:

E que monumento mais significativo e mais verdadeiro poderia, cada uma das Nações guerreiras, erigir em memória do seu Povo do que esse, constituído de um bocado desse mesmo Povo?

O bronze é metal, o mármore é pedra, e que neles afeiçoa a figura é o estatuário. O soldado desconhecido é corpo, plasma divino em terra, foi o sacrário de uma alma, latejou nele um coração cheio de amor patriótico, amor tão grande que suplantou todos os outros amores, levando-o a morrer por ele em terra alheia, só porque para terra tal, ao apelo de outros que se ajuntavam, em enxame, em volta da Humanidade, seguira a bandeira do seu Portugal, tão pequenino na geografia e tão grande em projeção na História (COELHO NETTO, 2007, p. 20-21).

Sendo o que sobrou de uma vida, sucumbido no anonimato, esse misterioso defunto havia de falar sem palavras. Para Coelho Netto, o culto à memória do herói ignoto serviria de consolo poético a todas as mães e esposas cujos filhos ou maridos, dados como mortos/ desaparecidos, caíram em terra estranha: “Esse soldado desconhecido, que entra a terra portuguesa representando o Povo luso, passará ante os olhos das mulheres de luto como uma urna colhendo lágrimas”. E completa: “Todas poderão ver nele o que perderam – o sem nome terá todos os nomes; o desconhecido será o amado de todos; o anônimo será a multidão, um símbolo como a bandeira, que também é nada e é tudo” (COELHO NETTO, 2007, p. 21).

O herói-morto-desconhecido abarca, pois, sentidos de existência, de continuidade, de comunhão perpétua, e é tomado aqui como elemento inspirador de integração coletiva em torno da ideia de nação, pois, mesmo depois de extinto da terra, permanece espiritualmente a ela ligado (no seu legado e no símbolo que representa para os vivos). Escolher heróis desconhecidos como símbolos pátrios equivale a dizer que a Pátria hoje amada já foi amada antes, e a corrente que passa de geração a geração não pode ser quebrada, pois é um vínculo espiritual a unir os de agora com os que já se foram e com os do porvir. Eis uma das facetas da propaganda nacionalista moderna.


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Fonte:
Claunísio Amorim Carvalho: “O insigne pavilhão: nação e nacionalismo na obra do escritor Coelho Netto”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social (Mestrado Acadêmico) da Universidade Federal do Maranhão, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em História Social. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira). São Luís, 2012.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.

As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

16/11/2014

As sete dores de N. Senhora, de Coelho Neto

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A Reabilitação de Coelho Neto nos Anos 40 e 50

Nos debates ocorridos nos cadernos de cultura e suplementos literários das décadas de 40 e 50, o que se procurou, além de reabilitar Coelho Neto, foi situá-lo no quadro geral do romance brasileiro. Importava sobretudo ler o romancista e se desfazer dos preconceitos e das intransigências da critica anterior. O debate se intensificou inclusive na imprensa do final da década de 50. É que em 1958 a Editora Aguillar lançava no mercado editorial o primeiro volume da obra seleta de Coelho Neto. Acompanhava a edição um ensaio de Brito Broca e outro de Hennan Lima, além de uma pequena iconografia e um esboço biográfico escrito por Paulo Coelho Neto.

Mas, para se ter uma idéia dos bons ventos que sopravam sobre a fortuna crítica de Coelho Neto basta recuperar neste momento o número especial do Suplemento Literário de A Manhã  dedicado ao romancista. A primeira página desta revista trazia um pouco da produção poética de Coelho Neto, realçando por um lado sua opulência verbal, e por outro, seu lirismo tingido de cores românticas, e levemente matizado por um simbolismo. Nos trechos selecionados pelos organizadores constavam as seguinte temáticas: o amor, o dever cívico, a figura do poeta e sua relação com a imprensa_ O Suplemento continha não  somente uma antologia da obra de Coelho Neto, mas um apanhado de sua fortuna crítica. No cômputo geral a seleção dos textos críticos sobre a obra do romancista era satisfatória. O Suplemento procurava contrabalançar as opiniões extremadas, mas o recorte dos textos em prosa apresentava-se sofríveL Tornemos este trecho como exemplo:

"Os passarinhos deviam cantar à noite, para alegria da alma. Assim como há constelações para o regalo dos olhos, devia haver gorgeios para o encanto dos ouvidos.

A impressão que se fica é que o texto foi colocado apenas para aproveitar um espaço que estaria sobrando no canto inferior da página. E o grave deste procedimento é que tais textos  ó servem para confirmar a imagem de um escritor afetado, dotado de um didatismo poético e de uma sensibilidade de fundo romântica, o que em última instância é ocasião para os sarcasmos e deboches da critica literária. Outros problemas ainda são detectados nesta coletânea de textos críticos. É o caso do artigo de Adelmar Tavares que para se referir ao talento de Coelho Neto usa a seguinte expressão: "claviculário do mais opulento tesouro vocabular da língua" ou então, João Neves da Fontoura que traça um parentesco entre o ornamentalismo da prosa do romancista e o Barroco mineiro:

"Estes enfeites vocabulares, o amor às perífrases., o purismo das construções deram ao seu estilo literário por vezes alguma coisa de barroco, que faz insensivelmente lembrar certas obras de Aleijadinho na arquitetura colonial de nossas igrejas."

Passando da comparação estilística ao comentário do gênero literário, encontra-se ainda no Suplemento Literário opiniões como a de Machado de Assis, que ao comentar o romance Miragem faz a seguinte observação:

"( ... )aqui está Coelho Neto, romancista, que podemos chamar historiador, no sentido de contar a vida das almas e dos costumes.”

Em contrapartida, José Maria Bello concluiria que na obra de Coelho Neto falta realidade e ambiente, a paisagem é cenográfica; as figuras que criou são inconsistentes, em suma, é urna obra que padece da artificialidade da oratória.

Pode-se resumir esta coletânea de textos críticos organizado pelo Suplemento Literário em dois momentos. O primeiro descarta a obra de Coelho Neto por ela ser marcada pelo vício da oratória, neste viés o romancista é caricaturizado como "mestre de orquestra". O segundo momento quer recuperar o escritor por sua opulência verbal, ou pelo lado de crônica de costumes presente em alguns romances.

O início dos anos 50 é marcado por alguns estudos de Lúcia Miguel Pereira. Em Prosa de Ficção (de 1870 a 1920)18, a autora realizaria uma análise arguta, porém demasiadamente severa. Seu veredicto acerca dos romances coelhonetianos é de que o verdadeiro caminho do romancista "seria o habitual cotidianismo da ficção brasileira". Para a autora, O Morto (1898) e Miragem (1895) seriam bom exemplos de romances nos quais Coelho Neto teria renunciado um pouco do seu amor pelas palavras.

Em Cinquenta Anos de Literatura19, Lúcia Miguel Pereira retomaria suas análises sobre a produção literária do início do século. Agora, de um modo sumário, a autora discutiria logo nas primeiras páginas do seu estudo o fenômeno da oratória. Lúcia Miguel Pereira se perguntaria qual a relação entre um clima eufórico nas letras e os acontecimentos políticos e sociais. Será na expressividade de algumas personagens do início do século que a autora encontrará o elo causal. Primeiro, o destaque de Santos Durnont na Europa; em seguida,. Rui Barbosa, "a águia de Haia"; e no plano político, econômico e social, Prudente de Morais iniciando a recuperação financeira do país, cujo término se daria com Campos Sales. Por sua vez, este saneamento do déficit público em muito ajudaria as reformas de Rodrigues Alves na urbanização e remodelização do Rio de Janeiro. Tais fatos subscreveram o clima de euforia e eloquência nas letras:

"Há um ruflar de asas, um enfunar de velas, uns toques de clarim nas frases rutilantes., faiscantes, que a moda exigia tão ricas em curvas como as mulheres de então; no tom superiormente afirmativo, o seu tanto de dogmático, de muitos, senão da maioria dos escritores.”

Toda esta exasperação do brilho e do adorno conduziria na opinião da autora a uma espécie de estagnação literária na década de dez. O abuso do descritivo, do paisagismo, das exterioridades pitorescas descambariam numa artificialidade estética e num "preconceito da forma". Ora, será justamente este quadro de características que Lúcia Miguel Pereira irá identificar e reprovar nos romances de Coelho Neto.

Numa perspectiva diferente colocar-se-á Brito Broca em seu ensaio "Coelho Neto, Romancista" de 1952. O ensaísta além de dar algumas diretrizes para o exame dos romances em Coelho Neto, ainda o teria restaurado no cânon da literatura brasileira. Aliás, na opinião de Antônio Cândido este teria sido o maior feito de Brito Broca enquanto "releitor".

É importante sublinhar no ensaio de Brito Broca suas estratégias para desobstruir o acúmulo de estereótipos que pesavam na obra do romancista. O argumento inicial do estudo baseia-se no impacto da geração de 22 para a recepção critica da obra coelhonetiana. Neste sentido, Brito Broca coloca dois pontos que foram o fiel da balança na fortuna crítica de Coelho Neto. Entre os preconceitos, os impropérios e os estereótipos herdados pela geração do pós 22 e as preocupações sociais da literatura dos anos 30, organizou-se um certo consel150 do passadismo literário de Coelho Neto:

"As preocupações sociais que surgiram na literatura brasileira depoís de 1930, o neo naturalismo de 1932, com suas obsessões documentárias, implicando o desprezo pela forma, o descrédito da arte pela arte e da 'literatura', concorreram para que Coelho Neto continuasse no esquecimento e na hostilidade a que o relegaram os modernistas.”

Brito Broca procurará aplacar esta hostilidade refazendo o itinerário do romancista, e neste percurso, o ensaísta irá apontar os desvios, os acertos e as promessas da prosa coelhonetiana Começando pelo romance de estréia A Capital Federal, o ensaísta critica o equivoco de parte da historiografia literária ao identificar neste romance influências diretas de As Cidades e as Serras ( 1901) de Eça de Queiróz. O parentesco mais plausível entre os dois livros é o ceticismo quanto ao progresso material que poderia vir da civilização técnica. A Capital Federal se insere num gênero híbrido: misto de crônica da vida carioca do século XIX com romance. Daí viria inclusive na opinião de Brito Broca os defeitos do livro:

"Os personagens são criações puramente intelectuais e ressentem-se daquele humor admirável que faria Lima Barreto atingir o máximo de sua arte num livro um pouco semelhante, por ser igualmente uma crônica do Rio: Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá.”

Passando de A Capital Federal para um outro romance, Miragem, Brito Broca localiza o ponto nevrálgico que teria feito que mesmo os antipáticos à estética do escritor aceitassem este romance como algo digno da literatura brasileira:

“Quando os negadores de Coelho Neto ressalvam A Mrragem, o que os leva a isso é, porém, o fato de nos haver o autor oferecido alguns flagrantes da proclamação da República, de não ter-se alheado da nossa realidade ..."

Esta tendência realista com alguns matizes românticos de A Miragem seria retomada anos mais tarde em Turbilhão o que faz Brito Broca pensar que a variedade da obra coelhonetiana força o crítico a comentá-la e organizá-la do ponto de vista cronológico. É que o escritor desenvolve uma tendência, abandona-a, e depois a retoma em um outro romance.

[...]
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Fonte:

Marcos Aparecido Lopes: “No purgatório da crítica: Coelho Neto e o seu lugar na história da literatura brasileira”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Letras na Área de Teoria Literária. Orientador: Prof Dr. Francisco Foot Hardman). Campinas, 1997.

02/03/2014

O Turbilhão, de Coelho Neto

 O Turbilhão, de Coelho Neto
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Entre dois modus vivendi: arcaísmo e modernidade em Turbilhão

Interessante notar que o enredo de Turbilhão frustra, em certo sentido, as expectativas do leitor que espera ver, no romance, a transposição do que, na maioria dos casos, ocorre com as moças que, àquele tempo, resolviam traçar os rumos do seu destino fora da rotina do casamento ou da vida religiosa. Nesse sentido, até certo ponto, Violante, na medida em que é caracterizada como uma moça bela e tola, sonhadora, que passava os dias sorridente, debruçada à janela, configura-se, aparentemente, como uma moça que se dará mal após ter fugido com um homem, pois seria desvirginada e perderia, assim, a honra e o respeito. Engano: ela não fugira por amor, mas por um desejo de ascensão socioeconômica e por uma sede de liberdade, de ser dona de seu destino, mesmo que a contrapartida disso fosse a perda de sua suposta honra.

Outro ponto interessante é que Paulo, ao ver a irmã envolta em luxo e riqueza, prontamente deixa de julgar a atitude dela como inerente a de moças sem juízo: ela passa a representar o modelo de audácia e coragem de que ele mesmo se julgava incapaz. Além do que, algum dos figurões com quem ela mantinha contato poderia, mesmo, “arranjar-lhe alguma colocação...” (p. 102).

Talvez, se tivesse sido publicado cem anos antes, o enredo do romance poderia ser taxado de inverossímil. Mas, no Rio de Janeiro de meados do século XX, uma cidade que vivia a Belle Époque e que começava a se modernizar em ritmo acelerado, já é perfeitamente cabível que uma moça, mesmo às custas da “honra” de seu nome, possa traçar, por si mesma, os rumos de sua vida.

A respeito das transformações que a capital fluminense – e, à época,  capital do país – passava, José G. V. de Moraes, em seu Cidade e cultura urbana na primeira república (1994), registra aspectos responsáveis pelas mudanças inerentes ao modo de vida dos habitantes das cidades, quais sejam as transformações modernizadoras pelas quais os aglomerados urbanos passavam. O autor afirma que não só o espaço físico se transformava, mas também a mentalidade, os modos de agir e as concepções morais.

Desse modo, as personagens de Turbilhão plasmam, se não uma reabilitação, ao menos um novo olhar sobre o que é considerado como mundanismo e amoralismo numa sociedade que, embora cada vez mais afeita aos contornos de um modus vivendi cosmopolita, afinado com a modernidade, ainda se deixa marcar por estruturas arcaicas, típicas de uma civilização de molde e extração patriarcais e conservadores, controlada por uma oligarquia baseada na economia rural. Nesse sentido, as personagens do romance são modernas e individualistas, mas convivem numa sociedade que, mesmo em transformação, ainda é controlada por códigos de honra e de boa conduta – principalmente para as mulheres –, uma vez que toda sociedade de cunho patriarcal sempre cobra mais das mulheres do que dos homens.

De um ou de outro modo, as personagens de Turbilhão, vivendo um verdadeiro turbilhão de transformações, são egocêntricas e fortes: ousam romper códigos, ousam ser o que realmente querem ser. E nisso também reside a grandiosidade desse romance.

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Fonte:
Rafael Ferreira Campos Mendes (Bolsista PIBIC/UEG) / Ewerton de Freitas Ignácio (pesquisador-líder): “Entre dois modus vivendi: arcaísmo e modernidade em Turbilhão, de Coelho Netto”. Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica e V Jornada de Pesquisa e Pós-Graduação - Universidade Estadual de Goiás. Disponível em: http://www.prp.ueg.br/