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O problema dos Commentarii:
o ornatus
Em vários aspectos podemos medir a aproximação dos Commentarii de
Bello Gallico, com os preceitos da historia ornata. Vale antes de
tudo lembrar que o gênero commentarii não se confundia com o gênero
historiográfico. Via de regra, os comentários não eram considerados literatura,
mas notas para futura redação de histórias literárias. Em Roma, temos o dado de
que os comandantes em campo remetiam periodicamente ao Senado relatórios das
batalhas. É desses relatórios, mais do que de uma obra histórica, que os Commentarii
se aproximavam.
Era costumeiro na república romana, e manteve-se assim até o tempo do
imperador Augusto, que os comandantes de exército e governadores enviassem ao
Senado um relatório escrito de suas atividades. Tais relatórios poderiam ser
usados para apresentar seus feitos ao público geral caso necessitasse. Os
relatórios de César ao Senado foram, por sua vez, a base de seus “Comentários”
sobre a Guerra Gálica.
A obra de César, no entanto, ganhou status histórico por seu valor
literário, e pela importância de seu ilustre autor. Recorreremos à antológica
citação de Cícero, à qual voltaremos ainda outras vezes:
(...) orationes quidem eius mihi uehementer probantur. compluris autem
legi; atque etiam commentarios quosdam scripsit rerum suarum.
Valde quidem, inquam, probandos; nudi enim sunt, recti et uenusti, omni
ornatu orationis tamquam ueste detracta. Sed dum uoluit alios habere parata,
unde sumerent qui uellent scribere historiam, ineptis gratum fortasse fecit,
qui uolent illa calamistris inurere: sanos quidem homines a scribendo
deterruit; nihil est enim in historia pura et inlustri breuitate dulcius.
As suas orações são realmente aprovadas por mim. Muitas de fato eu li; e
também aqueles comentários que escreveu dos seus feitos, muito devem ser aprovados;
são, realmente, nus, diretos e belos, desprovidos de qualquer ornamento
oratório, como um corpo sem sua roupa. Mas, enquanto quis deixar pronto
material para outros escreverem a história, fez talvez obra grata aos ineptos
que vão querer dotá-la de excessivos ornamentos, mas desencorajou os sensatos
de escrever; nada é realmente mais doce, em história, do que a pura e clara
brevidade.
Aqui atentaremos à expressão “desprovidos de qualquer ornamento
oratório”, literalmente desprovida do ornatus, é esse o ponto que
descaracteriza a obra enquanto história. E é por esse ponto, que marca a
ausência daqueles três elementos presentes nos outros historiadores, que muitos
não consideram os Commentarii como obra de história:
A estrutura por acontecimentos em vez da tradicional analística romana:
César se mantém apegado à descrição ano a ano, uma justificativa para
tanto é que as operações militares cessavam durante o inverno, de modo que
realmente as campanhas eram anuais. Além disso, o relato não tematiza o todo da
relação entre os romanos e os gauleses, mas se limita aos incidentes
político-militares do período do proconsulado de César; incidentalmente, no
livro sétimo, temos a pacificação definitiva da Gália. O livro oitavo,
descartados os problemas de autoria, serve como uma junção com o Bellum
Ciuile.
A pesquisa das causas e circunstâncias de cada ato:
César visa, de certo modo, explicar as causas para os atos dos povos e
das pessoas, essa explicação, no entanto, carece de profundidade quanto ao
problema das relações galo-romanas. Eis um exemplo:
Apud Heluetios longe nobilissimus fuit et ditissimus Orgetorix. is M.
Messala (et P.) M. Pisone consulibus regni cupiditate inductus coniurationem
nobilitatis fecit et ciuitati persuasit, ut de finibus suis cum omnibus copiis
exirent: perfacile esse, cum uirtute omnibus praestarent, totius Galliae
imperio potiri. Iid hoc facilius iis persuasit, quod undique loci natura
Heluetii continentur: una ex parte flumine Rheno latissimo atque altissimo, qui
agrum Heluetium a Germanis diuidit, altera ex parte monte Iura altissimo, qui
est inter Sequanos et Heluetios, tertia lacu Lemanno et flumine Rhodano, qui
prouinciam nostram ab Heluetiis diuidit. His rebus fiebat ut et minus late
uagarentur et minus facile finitimis bellum inferre possent; qua ex parte
homines bellandi cupidi magno dolore adficiebantur. Pro multitudine autem
hominum et pro gloria belli atque fortitudinis angustos se fines habere
arbitrabantur, qui in longitudinem milia passuum CCXL, in latitudinem CLXXX
patebant.
Entre os helvécios, foi Orgetórix, de longe, o mais nobre e o mais rico.
Ele, durante o consulado de Marco Messala e Marco Pisão, movido pelo desejo de
reinar, fez uma conjuração da nobreza, e persuadiu à sua cidade que saísse do
seu território com todos os seus recursos, dizendo ser facílimo, uma vez que em
valor excediam a todos os demais, apossarem-se do império de toda a Gália. Isto
os persuadiu mais facilmente, porque de todos os lados os helvécios estão apertados
pela natureza do lugar; de uma parte, pelo rio Reno, muito largo e profundo,
que divide seus campos helvécios dos germanos; de outra, pelo altíssimo monte
Jura, que está entre os séquanos e eles; da terceira, pelo lago Lemano e
rio Ródano, que divide a nossa província deles. Por estas razões, acontecia que
podiam se estender menos, e menos facilmente levar guerra aos vizinhos; razão
pela qual, homens tão desejosos de guerrear grande mágoa sofriam. Pela sua
multidão de homens e pela glória na guerra e na resistência, julgavam estreito
o seu território, o qual se estendia duzentos e sessenta mil passos em comprimento
e cento e oitenta mil em largura.
Temos aqui a enumeração das razões do personagem Orgetórix: a ambição
pessoal de reinar diante da condição de preponderância; e a enumeração dos
motivos de guerra para o povo: certeza da superioridade, por força e por
número, situação inicial inferior àquela que eles consideravam digna para si.
A ausência da justificativa e da moral
Este é um ponto controvertido que se encontra no cerne do problema da
propaganda nos Commentarii, basicamente, o autor se esforça justamente
por mascarar seu julgamento e sua proposta, insinuando-os em meio à quase
inevitabilidade dos acontecimentos. Esta característica está intimamente
relacionada ao fato de ser ele mesmo o personagem principal de seu relato e às
suas motivações políticas no momento da publicação da obra.
Autobiográfica
Por narrarem um evento do qual o autor tomou parte, os Commentarii
são também material autobiográfico. Esse tipo de discurso teve larga difusão e
aceitação na antiguidade e, em Roma, desenvolveu uma importante tradição.
Tradição da autobiografia em Roma
Em Roma, principalmente em seu princípio, o Estado era visto como uma
projeção da família, uma arqui-família; pois era composto pelas tribos, que se
dividiam em cúrias e as cúrias em gentes. Se, por um lado a fonte de
celebridade era sempre a política, por outro a política romana era
justamente conduzida pelos grandes aristocratas. Assim, a história das gentes,
as grandes famílias, e a história do Estado eram pensadas sobre a mesma
estrutura.
É considerado geralmente que crônicas das grandes
famílias Romanas existem desde os primeiros anos da república; esta visão é defendida
na força de uma observação de Lívio, que fala, com referências a fontes dos
primórdios históricos de Roma, de príuatis publicisque monumentis, que
foram perdidos no incêndio de Roma. Mas a interpretação tradicional
dessa passagem é dificilmente defensível. O próprio Lívio, escrevendo na época
de Augusto, assuma uma distinção entre “público” e “privado” (literalmente “à
parte”, por exemplo, do Estado) que pode, dificilmente, ter existido nos
primeiros dias. A literatura histórica dos romanos, embora baseada na tradição
das famílias patrícias, não consistia nas histórias dessas famílias, mas nas do
Estado Romano.
A grandeza da aristocracia romana, que caracteriza toda a política
interna e externa da república, deixou sua peculiar impressão nos anais
nacionais. Enquanto a historia de países com governos déspotas é de uma extensa
narrativa pessoal dos feitos dos sucessivos governantes, a história de Roma é
uma soma total de crônicas conectadas que registram as explorações das grandes
famílias.
Exempla, mos maiorum e laudatio.
A grande relevância da biografia em Roma se deve ao
caráter romano basear-se nos exempla dos antepassados ilustres; a
imitação destes antepassados era o cerne do mos maiorum, literalmente o
costume dos antepassados. Esta tradição parte do culto familiar, no qual os
antepassados eram divinizados, isto gerou a laudatio, discurso fúnebre
que recordava os feitos do falecido. Estes discursos celebrizavam pro que meios
um homem era considerado digno de servir de exemplo, isto é, ser citado como
referência dos valores da cidade, passando, assim, a fazer parte da tradição.
O apelo à autobiografia tornou-se particularmente importante para
projetar ou justificar um político na época de César. Desde o fim das Guerras
Púnicas, o poder pessoal só fez crescer em Roma até o ponto da primeira guerra
civil e da ditadura de Sila (82 a 79). Este ditador logo tratou de escrever uma
autobiografia, assim como fizeram os cônsules Escauro e Rufo, contemporâneos de
Sila. A turbulência política propiciava a proliferação de obras de
autojustificação.
Na vida política, onde o desejo por poder encontra sua mais intensa
expressão e a manutenção da posição de um homem aos olhos do público é uma das
maiores preocupações, a autobiografia, que aparecia apenas raramente entre os antigos
em outras esferas, foi largamente utilizada, e a vida em Roma, que visava a
liderança individual e a atividade responsável, no mínimo, com o desenvolvimento
de um senso comum prático e que, por sua vez, como uma atividade consistente
com um propósito definido, supria a massa dos auto-retratos dos tempos antigos.
Aqui, a autobiografia era considerada como um tipo de trabalho literário
reconhecido.
Cícero e a retórica
Cícero também considera esse fenômeno em suas obras, demonstrando a
importância de conhecer e se referir aos antepassados:
Cícero, no diálogo sobre a teoria da ética, um dos diálogos imaginários
no qual ele aparece como principal falante, traz como trunfo contra a filosofia
epicurista um argumento político-histórico: A teoria epicurista, diz ele, de
que o prazer é o único bem não pode apelar aos grandes nomes da história, e é
incompatível com a atitude requerida de um servo do Estado. Desta maneira ele
coloca perante seu interlocutor, um aristocrata Romano o qual ele apresenta
como um defensor do Epicurismo, a situação do aristocrata que tivesse que
responder por suas visões e atividades quando subisse à Rostra e tivesse que
declarar diante de uma audiência pública o objeto de suas ações, objetivos e
esforços: “Você proclamará as regras que você se propôs a observar ao
administrar justiça, e também, se você achar por bem, você seguirá o costume
antigo de fazer alguma referencia a seus ancestrais e a você mesmo.”
Assim compreendemos que a biografia e a autobiografia encontram em Roma
ambiente fértil para se desenvolver de maneira sistemática. Tinha sua base
cultural nas laudatio, sua função determinada pelo ambiente político, e
sua forma desenvolvida pelos padrões do estilo epidítico de retórica.
O problema dos Commentarii
Os Commentarii fornecem material autobiográfico, referindo-se às
campanhas de César na Gália, e foram publicadas no contexto de
autojustificação, logo antes do início da Guerra Civil, com clara intenção de garantir
a dignitas do autor. Há, no entanto, diversos desvios na obra em relação
ao estilo clássico de biografia, pois não se dedicam à descrição de uma pessoa
e não há descrições minuciosas dos caracteres da personalidade do general. De
fato, há uma intencional ausência de qualificações, exceto aquelas estritamente
ligadas aos acontecimentos, ainda assim com uma forte simplificação. A obra não
acompanha toda a vida de César, mas apenas o período da guerra.
O tempo
A primeira limitação no aspecto autobiográfico dos Commentarii é
em relação ao tempo. A obra cobre apenas os anos de proconsulado na Gália, era
nesta campanha que César esperava realizar a sua gloria e demonstrar sua
dignitas. Isto limita a imagem que o autor deseja passar de si: o
general vitorioso. Sabemos que em Roma o valor pessoal e a capacidade
administrativa eram medidas pelo sucesso nas armas. Prova disso é a campanha de
Cícero pela cedant arma togae, que se esforçou por mudar este
costume.
Os Comentários de César não são uma autobiografia.
Eles lidam apenas com cerca de nove anos de sua vida, sete deles sendo cobertos
pela Guerra Gálica e o restante pela guerra civil, ou, mais precisamente, seu
primeiro período (49-48 a.C.), até a batalha de Farsália e a morte de Pompeu. O
intervalo entre as duas guerras foi depois preenchido por Hírcio, que adicionou
um “livro” aos sete da Guerra Gálica. Ele estende a obra sobre a guerra civil
“tão longe” ele diz “quanto à conclusão, não da luta civil, da qual nós não
vemos o fim, mas da vida de César”. Este ponto de vista biográfico é um
elemento adicional introduzido na obra que, como um relatório militar factual,
começa: “A Gália é toda dividida em três partes.” Mas César forneceu mais em
seus Comentários do que uma obra autobiográfica qualquer. Eles oferecem um
exemplo de auto-revelação que pôde servir como amostra para as autobiografias
dos historiadores e políticos das épocas seguintes, que em seu auto-retrato
buscaram adotar um estilo elevado na clássica tradição antiga.
A ausência da laudatio
Outro ponto em que os Commentarii destoam das autobiografias
tradicionais é em relação ao estilo retórico. Por serem obras políticas, as
autobiografias traziam, assim como os panegíricos,
características do estilo epidítico: a descrição com o elogio ou a censura.
Nesta obra César dispensa o processo de laudatio para falar de si, e
descreve sempre na perspectiva da ação, chegando a narrar feitos de outros em
concordância com a coerência dos acontecimentos da guerra. Isso não quer dizer
que não haja um elogio, mas que este parte das ações para sugerir, sem
expli-citar, as qualidades do general.
A característica desta atitude é a objetividade no tratamento de si
mesmo. César fala de si de um modo não-envolvido, na terceira pessoa, mas
usando seu próprio nome, que ele gosta de usar repetidamente — por exemplo,
“César, tendo antecipado que isto podia ser o curso natural dos eventos,
esperou por dois dias para...” Ele não evitou absolutamente o uso da primeira
pessoa, mas como romano, fala de soldados como “nossos homens”, nostri,
e como autor usa o pluralis maiestatis, o “nós real”, em frases
subsidiárias como “nós mostramos que...” Assim a pessoa focada e a pessoa que
foca são separadas, enquanto que para nós a identidade dos dois é a marca essencial
da autobiografia.
O excesso de narratio
César, em sua obra, traz, como vimos, características tanto da historia
ornata quanto da tradição analística romana. Como descreve Misch:
Mas o dispositivo que César usa não é, de modo algum, artificial,
parece, na verdade, a maneira natural de se expressar, pois é baseado num sério
propósito, aplicável tanto para o historiador quanto para o homem de estado
fixar-se aos fatos e deixá-los falar. São os fatos e não ele mesmo que
proclamam sua fama. Ele não usará da retórica, e chama uma espada de espada,
sem adornos de nenhum tipo; e da mesma maneira ele abstém-se de qualquer
expressão de sentimento.
A objetividade no texto da descrição dos fatos busca somar a simplicitas
da pureza estilística à grauitas da ação. César, na verdade, faz um
avanço em relação à tradição autobiográfica: ele busca transmitir, pelo estilo,
as mesmas qualidades que atribui a si enquanto general. Como tinha a dignitas
como objetivo, ele tratou de emular os antigos heróis romanos, não só nos
feitos, mas trazendo uma qualidade considerada rara em sua época. Justo ele,
que se incluía no grupo dos oradores “áticos”, mesclou a influência
helênica com a tradição latina, utilizando um estilo sucinto e a estrutura
analística, tidos como arcaizantes e opostos à proposta retórica da historia
ornata.
Outro ponto destoante é a atenção dispensada aos feitos de outros
personagens. O autor se preocupa em descrever todos os fatos relevantes para a
condução das campanhas, isso inclui a ação de seus ajudantes e de seus
adversários. Agindo assim, ele se aproximava de um historiador mais preocupado
com a coerência e inteligibilidade do relato do que com a descrição de um personagem
específico. Como se os acontecimentos na Gália fossem por si mais importantes
do que a pessoa do general. Isto denuncia uma intenção de demonstrar modéstia.
Esta objetividade inclui precisão dos detalhes militares, mas isto
também inclui qualidades humanas e morais: em vez de atribuir cada sucesso a si
mesmo, no estilo das memórias políticas, César deu proeminência aos serviços
prestados pelos seus ajudantes, e suas memórias são livres do abuso de seus
inimigos, o que é uma notável característica da autobiografia de Sila, seu
predecessor no poder ditatorial, e com a qual encontramos também na
autobiografia de seu sucessor César Augusto.
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Fonte:
Paulo Roberto Souza da Silva: "A figura de César, autor e personagem, nos Commentarii de Bello Gallico". (Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Dra. Ana Thereza Basílio Vieira). Rio de Janeiro, 2006.
Fonte:
Paulo Roberto Souza da Silva: "A figura de César, autor e personagem, nos Commentarii de Bello Gallico". (Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Dra. Ana Thereza Basílio Vieira). Rio de Janeiro, 2006.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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