02/08/2015

Cid (Teatro), de Pierre Corneille

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O Cid: triunfante e dilacerado

Não é difícil visualizar Rodrigo exultante ao pronunciar as últimas palavras que fecham a cena I, ato V. Sem muito esforço poderemos escutá-lo, aos brados, desafiar povos inimigos para que estes se unam contra ele, a fim de lutarem. Assegura-lhes, entretanto, antes mesmo que estes respondam ao seu chamado, que mesmo unidos não poderão vencê-lo, pois fracos são diante da força que a partir de então o move, a saber, “uma esperança tão doce”.

D. Rodrigo
Há um inimigo a quem, ora, a lei não imponha? Navarreses, surgi, Mouros e Castelhanos, Tudo o que a Espanha tem de valores ufanos, Por combater a mão dest’arte encorajada!
Sim, formai, todos vós, unidos, uma armada, Vosso esforço juntai contra esperanças tais: Para a aura lhes romper, todos vós não bastais. CORNEILLE, [s.d.], p. 79.

D. Rodrigue
Est-il quelque ennemi qu’à présent je ne dompte? Paraissez, Navarrais, Maures et Castillans,
Et tout ce que l’Espagne a nourri de vaillants; Pour combattre une main de la sorte animée Unissez-vous ensemble, et faites une armée: Joignez tous vos efforts contre un espoir si doux; Pour en venir à bout, c’est trop peu que de vous. (vv. 1558-1564).

O desafio lançado ao vento – já que Ximena havia deixado a cena e Rodrigo falava apenas para o público diante de si – e imaginário – visto que os inimigos ali não estavam e nem mesmo se tratava de uma batalha à vista, mas apenas do duelo contra Dom Sancho e os valores que este representava – só reflete exteriormente o estado interior de Rodrigo.

Consideramos para Rodrigo a possibilidade do sentimento (affectus) de exultação, de alegria exacerbada. Na definição de Tomás de Aquino temos exultação pelos sinais exteriores do prazer interior, que aparecem exteriormente, enquanto a alegria salta para o exterior. José Thomaz Brum, sinaliza, entretanto, que “um grande contentamento, uma alegria demasiado intensa abre diante de nós um abismo de paradoxos.” O estudioso sustenta a sua assertiva a partir de Agostinho, o qual afirma que a jubilação neste mundo não é completa. Para Brum, “a finitude humana, com suas lacunas, não poderia abrigar um júbilo total, absoluto.” Consonantes com esta ideia, acompanhemos a subida de Rodrigo ao instante de êxtase, não deixando de perceber os percalços de dores que irão o acompanhar e sem perdermos de vista que se trata de um momento fugaz.

Pela primeira vez o mancebo usaria seu braço em favor de si mesmo. Pode a sua súbita coragem, despertada pelas palavras de Ximena, ser entendida e a mudança no seu tom de voz, mais facilmente escutada, se considerarmos as duas motivações anteriores a esta que incitaram o guerreiro à luta, tão diferentes das de agora.

A primeira disputa contra o pai de Ximena é fruto da desavença entre os pais de ambos. Por mais que Dom Diogo quisesse estender sua vingança a Rodrigo, o “nós” pronunciado por aquele só inclui o jovem na medida em que era ele o digno filho que responderia de modo digno a um digno pai.

Vinga-te a ti e a mim
Prova, de um pai como eu, ser digno filho afim.
No opróbrio em que hoje quis a sorte que me extinga,
Vou deplorá-la. Vai, corre, e a ambos nós, nos vinga!
CORNEILLE, [s.d.], p. 35.

Venge-moi, venge-toi;
Montre-toi digne fils d’un père tel que moi Accablé des malheurs où le destin me range,
Je vais les déplorer: va, cours, vole, et nous venge. (vv. 287-290).

Ao vingar o pai, Rodrigo vingaria a si mesmo. Tão digno quanto o pai deveria ser o filho. Para buscar a adesão de Rodrigo, Dom Diogo usa de retórica, na figura da gradação: vai, corre, vinga-nos! Finalmente, o “nós” se inclui na ampliação do “eu”.

A honra, herança paterna a se preservar, era uma motivação externa – um código de sociedade. Este valor remonta aos trágicos e épicos da cultura grega. Trata-se da timé (honra) e do hýbrisma (ultraje). Estes dois conceitos são desencadeadores de ações trágicas. Pela timé vai-se a guerra, pelo hýbrisma mata-se. Citamos dois exemplos, ambos de tragédias: “A acreditar no que tu dizes, foi Zeus que te ditou este oráculo em que se ordenava a Orestes que vingasse a morte do pai, sem atender em nada ao respeito (timàs) devido à mãe!”. (Eumênides, de Ésquilo, v. 624). Quanto ao segundo valor, temos: “Mata-me então, irmão, para que o não faça nenhum argivo à filha de Agamemnon, tomando-a como objeto de ultraje (hýbrisma). (Orestes, de Eurípides, v. 1038)

No monólogo da cena VI, ato I, em meio à hesitação vivenciada entre a virtude cortesã e o amor, podemos ver o estado de espírito em que se encontrava o jovem e o que ele previa para si ao optar pela honra: parado e abatido previa a morte; triste, ele crê que o seu mal não terá fim; sob um poder tirano, vislumbra a morte dos seus prazeres e a infelicidade. Ao se decidir pela honra e ao obedecer à vontade do pai, Rodrigo considera-se morto: “A amada, não; a um pai me devo e à sua defesa; Que eu morra em tal combate, ou morra de tristeza.”

Contraste-se a absoluta prostração de Rodrigo com a alegria de Dom Diogo, quando este reencontra o filho vencedor após o duelo com o conde: “Exulto, exulto sem limite! O fôlego retomo a fim de mais louvar-te.” – é o que lhe diz o pai orgulhoso de seu sangue. No original, percebemos que enquanto Dom Diogo toma fôlego para elogiar, Rodrigo suspira de tristeza.

Enquanto Rodrigo lamenta a perda de sua amada, Dom Diogo festeja a glória do rebento: “Meu filho, orgulho meu, que a velhice me assiste,/Toca o cabelo branco a que a honra restituíste.” Os sentimentos, contudo, não se identificam. Dom Diogo não pode sentir a tristeza do filho, pois não ama, e Rodrigo não pode partilhar da alegria do pai, ainda que a vitória venha de suas próprias mãos, justamente por amar. Situação complexa e difícil, assinalada já por Aristóteles, em suas teorizações na Retórica das paixões:

(...) com efeito, para as pessoas que amam, as coisas não parecem ser as mesmas que para aquelas que odeiam, nem, para os dominados pela cólera, as mesmas que para os tranqüilos; mas elas são ou totalmente diferentes ou de importância diferente e aquele que odeia tem por certo o contrário, e, para o que tem aspirações e esperança, se o que via acontecer é agradável, parece-lhe que isso acontecerá e será bom, mas para o indiferente e para o descontente parece o contrário.

Não coincidindo os seus desejos com aqueles do pai, Rodrigo pedirá a Dom Diogo que o deixe satisfazer a si mesmo: “Mas em vosso prazer não tenhais ciúme enfim/ De agora, por
meu turno, eu contentar-me a mim.” E diz ainda, nos versos 1049-1052:

Por vos vingar me armei contra o que amava, e a palma
De um lance triunfal privou-me de minha alma. Nada mais me digais; por vós tudo perdi;
O que a meu pai devia, hoje lho restituí. CORNEILLE, [s.d.], p. 64.
Mon bras, pour vous venger, armé contre ma flamme,
Par ce coup glorieux m’a privé de mon âme; Ne me dites plus rien; pour vous j’ai tout perdu: Ce que je vous devais, je vous l’ai bien rendu.

Porém não será desta vez que o rapaz terá a sua vontade atendida. Além de ser tomado por um braço pronto a fazer vingança, braço este que pelo golpe da espada separa também sua alma de seu corpo, Rodrigo está diante de uma dívida impossível de ser quitada, a saber, aquela entre pais e filhos. Surge então uma nova sugestão de Dom Diogo. Faz-se necessário que o filho lute pelo bem do país: “Não é tempo ainda, não, de buscar o trespasso; Teu rei e teu país precisam de teu braço.” A segunda batalha de Rodrigo será, portanto, também motivada por algo exterior a ele. Se, na vingança contra o conde, Rodrigo revive o que um dia fôra o pai, na batalha contra os mouros, ele se colocaria à altura do guerreiro que fôra o conde. É o que podemos ouvir na voz de Dom Diogo, ao incentivar o filho: “Vai, lança-te ao combate, e mostra ao rei de sobra,/ Que o que perdeu no conde, em ti ele o recobra.” Rodrigo já havia afirmado que tudo perdera, mas Dom Diogo insiste em que há ainda muito que se ganhar. Essa lógica do perde e ganha é cômica, na medida em que pensamos que há diferença entre as pessoas e situações. Que grande consolo para Rodrigo!

Diante das duas disputas, em que respondera a intentos outros que não os seus, Rodrigo se apresenta para o terceiro desafio novamente em atitude de submissão. Obediente, o guerreiro não apenas atende àqueles que o convocam para lutar, mas preza por lhes dar o que dele esperam. Ao tentar se despedir de Ximena, ele diz acatar “as leis” estabelecidas por ela e se oferece como libação pelos ressentimentos causados a esta sua amada: “O imutável amor que a vossas leis me prende,/ Antes do mortal golpe homenagem vos rende.” E ainda: “Eu corro a esse feliz momento/ Que há de satisfazer vosso ressentimento.” (grifos nossos) Na resposta dada a Ximena acerca da sua fraqueza diante do novo adversário, Rodrigo revela-se como alguém despido de vontade própria.


[...]


Além das paixões contraditórias que, diante do amor, comungam – dor que não dói, contentamento que é descontente, não querer que é bem querer –, não há nessa luta perdedores ou vencedores: ganha-se, ao se perder, vence-se, ao se deixar ser vencido. Ao lado de Rodrigo, Ximena é igualmente uma heroína: ao preservar seu amor, ela preserva sua glória e seu dever.

Corneille quase não variou sobre este ponto durante a sua carreira dramática: a sua psicologia amorosa está em perfeito acordo com o conjunto da sua psicologia do heroi. A noção de glória geralmente é aplicável igualmente ao exercício guerreiro e ao amor. (…) A este respeito nós declaramos, no presente momento, uma ambiguidade singular ali no essencial: voltar a dar ao amor sua glória íntima – ou seja, definitivamente a sua pureza, a sua lei e as suas exigências próprias – é considerá-lo como um fim em si, assim como um dever.

Como propõe Merlin-Kajman: “O fracasso não é de Ximena, mas da retórica. A representação teatral (…) mostra o custo subjetivo da construção de si pelo código moral, o custo subjetivo da regulaçao pelo ethos.” Para a estudiosa,

o ethos seria então igualmente este movimento que faz com que se fale por trás de uma máscara, ou de preferência de dentro de uma máscara, ou seja em um dado relativamente fixo – os hábitos de conduta. Ou, ainda, que se fale em segundo lugar, recebendo a máscara dos que lhe precederam, dos pais, por exemplo, os pais os quais são forçosamente uma questão em Le Cid.

Não sabemos como foi representada essa última ação de Ximena; talvez com as duas mãos postas sobre o rosto, quem sabe com uma saída rápida do palco e com a cabeça baixa. Certo é que o autor chama a nossa atenção, no corpo do texto, para a mudança ocorrida no corpo de Ximena depois de pronunciada as suas últimas palavras: “Adeus, com essa palavra eu ardo de vergonha.”

Ximena deixa a cena enrubescida. Interessante notar que ela mesma é quem faz essa afirmação – não se trata de uma rubrica. Algumas hipóteses poderiam ser levantadas para o seu constrangimento: sentia ela vexame por amar o assassino do pai? Por ter sido tão obstinada? Ou por trair o que ela mesma dissera e desfazer assim a imagem da heroina que ela havia criado para si, ao escolher o amor em detrimento da honra? A causa da vergonha pode ser entendida, sobretudo, por estar Ximena diante de quem muito considerava:

(…) necessariamente se sente vergonha com respeito àqueles por quem se tem consideração. Ora, temos consideração pelos que nos admiram, por aqueles que admiramos, por aqueles por quem queremos ser admirados, por aqueles com quem rivalizamos e por aqueles cuja opinião não desprezamos.

Rodrigo parece preencher cada uma dessas motivações: era o alvo do amor de Ximena, enquanto esta era também o foco de seu amor. Percebe-se, assim, uma mútua admiração; Ximena quer ser admirada por Rodrigo, pois, do contrário, não insistiria tão veementemente nas questões concernentes à sua própria honra, não fazendo de seu amante seu adversário e limitando-se ao amor que este lhe devotava; por fim, é ele alguém cujas opiniões ela leva em conta, o que pode ser percebido tanto na aceitação das afirmações de Rodrigo acerca de sua honra, as quais ela acata sem muita dificuldade, e também no repetir de suas próprias frases, em que, mesmo para distorcer, ela se apropria de algo que pertence a ele.

A frase “Sai vencedor da ação de que o prêmio é Ximena.”, é o “sim” da amada a Rodrigo, antes mesmo que ela fosse entregue a ele.

Scudéry, nas suas Observations, não vê outra reação possível para a jovem senão aquela descrita por Corneille: “Ela tem razão ao ruborizar-se e se esconder depois de uma ação que a cobre de infâmia por ver a luz.” Certamente o crítico está mais preocupado com o humilhação social que com o gesto amoroso que denuncia o desejo de agradar e/ou rivalizar com o seu parceiro. O rosto vermelho de Ximena é um sinal externo de um desnudamento interno: o amor vencera a honra. (Há que se lembrar que “o amor é fogo que arde sem se ver...”). Para Scudéry, todavia, essa vitória é desonrosa.

Vemos nela [na peça Le Cid] uma filha desnaturada que fala apenas de suas loucuras, quando ela deve falar somente de seu desespero, lamentar a perda de seu amante, quando ela deve pensar apenas na de seu pai; amar ainda o que ela deve abominar; tolerar ao mesmo tempo e na mesma casa este assassino e este pobre corpo; e, para finalizar sua impiedade, juntar sua mão àquela que desgosta ainda do sangue de seu pai.

Scudéry parece extremamente preocupado com o “dever” de Ximena. Essa palavra é repetida no trecho acima, no sentido de reforçar o que ela deveria ter feito em lugar do que de fato fez. Sob este aspecto, ele parece mesmo mais zeloso da honra da jovem que seu amado. A preocupação do opositor do dramaturgo de Rouen não era, no entanto, com a felicidade de Ximena, mas sim em manter a bienséance. Disso Corneille mostra estar a par ao se pronunciar. “As duas visitas que Rodrigo faz à sua amada têm alguma coisa que choca esta bienséance da parte de quem as sofre; o rigor do dever gostaria que ela renunciasse a falar com ele e se fechasse em seus aposentos no lugar de escutá-lo.”

O amor de Rodrigo por Ximena, coincidindo com o de Ximena por Rodrigo, esquece as demais virtudes que estavam em jogo. Ao se alegrar, no final da cena, o riso de Rodrigo não é apenas aquele vivificador, mas também o do vitorioso. É o riso do rebelde que ganha mais um adepto para a sua causa.

Esse tipo de riso [de alegria] constitui uma reação fisiológica a uma transbordante situação de alegria para com o próprio ser. Este riso, em si mesmo, não está ligado a fatores de caráter moral. No riso de zombaria o que nos dá prazer é uma vitória de caráter moral, enquanto no riso de alegria trata-se de uma vitória das forças vitais e da alegria de viver. Muito frequentemente esses dois aspectos se fundem. Quem ri é o vencedor: o perdedor nunca ri. O riso moral, ou seja, o riso comum e saudável do homem normal, é signo da vitória daquilo que ele considera justo. (grifos nossos)

Triplamente vitorioso: sobre os interesses do pai, do Estado e do seu próprio, a imagem que temos de Rodrigo é a do heroi glorioso, ainda em vida, que a plenos pulmões, sorriso nos lábios, quem sabe com algumas gargalhadas a entrecortar a sua fala, proclama a si mesmo ao chamar quem quer que seja para guerrear contra ele. Ximena completa o brilho que o conde e os mouros já haviam lhe trazido, vence a sociedade ao desprezar escrúpulos vãos.


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Fonte:
Mariana Reis Furst: “A mistura de paixões em Le Cid, de Pierre Corneille”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras: Estudos Literários. Área de concentração: Teoria da Literatura. Linha de pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural. Orientadora: Profª. Drª Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa). Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Letras, 2010.

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