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O Cid: triunfante e dilacerado
Não
é difícil visualizar Rodrigo exultante ao pronunciar as últimas palavras que
fecham a cena I, ato V. Sem muito esforço poderemos escutá-lo, aos brados,
desafiar povos inimigos para que estes se unam contra ele, a fim de lutarem.
Assegura-lhes, entretanto, antes mesmo que estes respondam ao seu chamado, que
mesmo unidos não poderão vencê-lo, pois fracos são diante da força que a partir
de então o move, a saber, “uma esperança tão doce”.
D. Rodrigo
Há
um inimigo a quem, ora, a lei não imponha? Navarreses, surgi, Mouros e
Castelhanos, Tudo o que a Espanha tem de valores ufanos, Por combater a mão
dest’arte encorajada!
Sim, formai, todos
vós, unidos, uma armada, Vosso esforço juntai contra esperanças tais: Para a
aura lhes romper, todos vós não bastais. CORNEILLE, [s.d.], p. 79.
D. Rodrigue
Est-il quelque
ennemi qu’à présent je ne dompte? Paraissez, Navarrais, Maures et Castillans,
Et tout ce que l’Espagne a nourri de vaillants; Pour combattre
une main de la sorte animée Unissez-vous ensemble, et faites une armée: Joignez
tous vos efforts contre un espoir si doux; Pour en venir à bout, c’est trop peu
que de vous. (vv. 1558-1564).
O desafio lançado ao vento – já que Ximena havia deixado a cena
e Rodrigo falava apenas para o público diante de si – e imaginário – visto que
os inimigos ali não estavam e nem mesmo se tratava de uma batalha à vista, mas
apenas do duelo contra Dom Sancho e os valores que este representava – só
reflete exteriormente o estado interior de Rodrigo.
Consideramos para Rodrigo a possibilidade do sentimento (affectus)
de exultação, de alegria exacerbada. Na definição de Tomás de Aquino temos exultação pelos
sinais exteriores do prazer interior, que
aparecem exteriormente, enquanto a alegria salta para o exterior. José Thomaz
Brum, sinaliza, entretanto, que “um grande contentamento, uma alegria demasiado
intensa abre diante de nós um abismo de paradoxos.” O estudioso sustenta a sua
assertiva a partir de Agostinho, o qual afirma que a jubilação neste mundo não
é completa. Para Brum, “a finitude humana, com suas lacunas, não poderia
abrigar um júbilo total, absoluto.” Consonantes com esta ideia, acompanhemos a
subida de Rodrigo ao instante de êxtase, não deixando de perceber os percalços
de dores que irão o acompanhar e sem perdermos de vista que se trata de um
momento fugaz.
Pela primeira vez o mancebo usaria seu braço em favor de si
mesmo. Pode a sua súbita coragem, despertada pelas palavras de Ximena, ser
entendida e a mudança no seu tom de voz, mais facilmente escutada, se
considerarmos as duas motivações anteriores a esta que incitaram o guerreiro à
luta, tão diferentes das de agora.
Vinga-te a ti e a mim
Prova, de um pai como eu, ser digno
filho afim.
No opróbrio em que hoje quis a sorte
que me extinga,
Vou deplorá-la.
Vai, corre, e a ambos nós, nos vinga!
CORNEILLE, [s.d.], p. 35.
Venge-moi, venge-toi;
Montre-toi
digne fils d’un père tel que moi Accablé des malheurs où le destin me range,
Je vais les déplorer:
va, cours, vole, et nous venge. (vv. 287-290).
Ao vingar o pai, Rodrigo vingaria a si mesmo. Tão digno quanto o
pai deveria ser o filho. Para buscar a adesão de Rodrigo, Dom Diogo usa de
retórica, na figura da gradação: vai, corre, vinga-nos! Finalmente, o “nós” se
inclui na ampliação do “eu”.
A honra, herança paterna a se preservar, era uma motivação
externa – um código de sociedade. Este valor remonta aos trágicos e
épicos da cultura grega. Trata-se da timé (honra) e do hýbrisma
(ultraje). Estes dois conceitos são desencadeadores de ações trágicas. Pela timé
vai-se a guerra, pelo hýbrisma mata-se. Citamos dois exemplos, ambos de
tragédias: “A acreditar no que tu dizes, foi Zeus que te ditou este oráculo em
que se ordenava a Orestes que vingasse a morte do pai, sem atender em nada ao
respeito (timàs) devido à mãe!”. (Eumênides, de Ésquilo, v. 624).
Quanto ao segundo valor, temos: “Mata-me então, irmão, para que o não faça
nenhum argivo à filha de Agamemnon, tomando-a como objeto de ultraje (hýbrisma).
(Orestes, de Eurípides, v. 1038)
No
monólogo da cena VI, ato I, em meio à hesitação vivenciada entre a virtude
cortesã e o amor, podemos ver o estado de espírito em que se encontrava o jovem
e o que ele previa para si ao optar pela honra: parado e abatido previa a
morte; triste, ele crê que o seu mal não terá fim; sob um poder tirano,
vislumbra a morte dos seus prazeres e a infelicidade. Ao se decidir pela honra
e ao obedecer à vontade do pai, Rodrigo considera-se morto: “A amada, não; a um
pai me devo e à sua defesa; Que eu morra em tal combate, ou morra de tristeza.”
Contraste-se a
absoluta prostração de Rodrigo com a alegria de Dom Diogo, quando este
reencontra o filho vencedor após o duelo com o conde: “Exulto, exulto sem
limite! O fôlego retomo a fim de mais louvar-te.” – é o que lhe diz o pai
orgulhoso de seu sangue. No original, percebemos que enquanto Dom Diogo toma
fôlego para elogiar, Rodrigo suspira de tristeza.
Enquanto Rodrigo lamenta a perda de sua amada, Dom Diogo festeja
a glória do rebento: “Meu filho, orgulho meu, que a velhice me assiste,/Toca o
cabelo branco a que a honra restituíste.” Os sentimentos, contudo, não se
identificam. Dom Diogo não pode sentir a tristeza do filho, pois não ama, e
Rodrigo não pode partilhar da alegria do pai, ainda que a vitória venha de suas
próprias mãos, justamente por amar. Situação complexa e difícil, assinalada já
por Aristóteles, em suas teorizações na Retórica das paixões:
(...) com efeito,
para as pessoas que amam, as coisas não parecem ser as mesmas que para aquelas
que odeiam, nem, para os dominados pela cólera, as mesmas que para os
tranqüilos; mas elas são ou totalmente diferentes ou de importância diferente e
aquele que odeia tem por certo o contrário, e, para o que tem aspirações e esperança,
se o que via acontecer é agradável, parece-lhe que isso acontecerá e será bom,
mas para o indiferente e para o descontente parece o contrário.
Não coincidindo os seus desejos com aqueles do pai, Rodrigo
pedirá a Dom Diogo que o deixe satisfazer a si mesmo: “Mas em vosso prazer não
tenhais ciúme enfim/ De agora, por
meu turno, eu contentar-me a mim.” E diz ainda, nos versos
1049-1052:
Por vos vingar me
armei contra o que amava, e a palma
De um lance triunfal privou-me de minha alma. Nada mais me digais;
por vós tudo perdi;
O que a meu pai devia, hoje lho restituí. CORNEILLE,
[s.d.], p. 64.
Mon bras, pour vous venger, armé
contre ma flamme,
Par ce coup glorieux m’a privé de mon âme; Ne me dites plus
rien; pour vous j’ai tout perdu: Ce que je vous devais, je vous l’ai bien
rendu.
Porém não será desta vez que o rapaz terá a sua vontade
atendida. Além de ser tomado por um braço pronto a fazer vingança, braço este
que pelo golpe da espada separa também sua alma de seu corpo, Rodrigo está
diante de uma dívida impossível de ser quitada, a saber, aquela entre pais e
filhos. Surge então uma nova sugestão de Dom Diogo. Faz-se necessário que o
filho lute pelo bem do país: “Não é tempo ainda, não, de buscar o trespasso;
Teu rei e teu país precisam de teu braço.” A segunda batalha de Rodrigo será, portanto, também motivada por algo exterior a ele. Se, na vingança contra o conde, Rodrigo revive o que um dia fôra o pai, na batalha contra os mouros, ele se colocaria à altura do guerreiro que fôra o conde. É o que podemos ouvir na voz de Dom Diogo, ao incentivar o filho: “Vai, lança-te ao combate, e mostra ao rei de sobra,/ Que o que perdeu no conde, em ti ele o recobra.” Rodrigo já havia afirmado que tudo perdera, mas Dom Diogo insiste em que há ainda muito que se ganhar. Essa lógica do perde e ganha é cômica, na medida em que pensamos que há diferença entre as pessoas e situações. Que grande consolo para Rodrigo!
Diante das duas
disputas, em que respondera a intentos outros que não os seus, Rodrigo se apresenta
para o terceiro desafio novamente em atitude de submissão. Obediente, o
guerreiro não apenas atende àqueles que o convocam para lutar, mas preza por
lhes dar o que dele esperam. Ao tentar se despedir de Ximena, ele diz acatar
“as leis” estabelecidas por ela e se oferece como libação pelos ressentimentos
causados a esta sua amada: “O imutável amor que a vossas leis me
prende,/ Antes do mortal golpe homenagem vos rende.” E ainda: “Eu corro
a esse feliz momento/ Que há de satisfazer vosso ressentimento.” (grifos
nossos) Na resposta dada a Ximena acerca da sua fraqueza diante do novo
adversário, Rodrigo revela-se como alguém despido de vontade própria.
[...]
Além das paixões contraditórias que, diante do amor, comungam –
dor que não dói, contentamento que é descontente, não querer que é bem querer
–, não há nessa luta perdedores ou vencedores: ganha-se, ao se perder,
vence-se, ao se deixar ser vencido. Ao lado de Rodrigo, Ximena é igualmente uma heroína: ao preservar seu
amor, ela preserva sua glória e seu dever.
Corneille quase não variou
sobre este ponto durante a sua carreira dramática: a sua psicologia amorosa
está em perfeito acordo com o conjunto da sua psicologia do heroi. A noção de
glória geralmente é aplicável igualmente ao exercício guerreiro e ao amor. (…)
A este respeito nós declaramos, no presente momento, uma ambiguidade singular
ali no essencial: voltar a dar ao amor sua glória íntima – ou seja,
definitivamente a sua pureza, a sua lei e as suas exigências próprias – é
considerá-lo como um fim em si, assim como um dever.
Como propõe Merlin-Kajman: “O fracasso não é de Ximena, mas da
retórica. A representação teatral (…) mostra o custo subjetivo da construção de
si pelo código moral, o custo subjetivo da regulaçao pelo ethos.” Para a
estudiosa,
o ethos seria
então igualmente este movimento que faz com que se fale por trás de uma
máscara, ou de preferência de dentro de uma máscara, ou seja em um dado
relativamente fixo – os hábitos de conduta. Ou, ainda, que se fale em segundo lugar, recebendo a
máscara dos que lhe precederam, dos pais, por exemplo, os pais os quais são
forçosamente uma questão em Le Cid.
Não sabemos como foi representada essa última ação de Ximena;
talvez com as duas mãos postas sobre o rosto, quem sabe com uma saída rápida do
palco e com a cabeça baixa. Certo é que o autor chama a nossa atenção, no corpo
do texto, para a mudança ocorrida no corpo de Ximena depois de pronunciada as
suas últimas palavras: “Adeus, com essa palavra eu ardo de vergonha.”
Ximena deixa a cena enrubescida. Interessante notar que ela
mesma é quem faz essa afirmação – não se trata de uma rubrica. Algumas
hipóteses poderiam ser levantadas para o seu constrangimento: sentia ela vexame
por amar o assassino do pai? Por ter sido tão obstinada? Ou por trair o que ela
mesma dissera e desfazer assim a imagem da heroina que ela havia criado para si, ao escolher o amor em detrimento da honra?
A causa da vergonha pode ser entendida, sobretudo, por estar Ximena diante de
quem muito considerava:
(…) necessariamente se sente
vergonha com respeito àqueles por quem se tem consideração. Ora, temos
consideração pelos que nos admiram, por aqueles que admiramos, por aqueles por
quem queremos ser admirados, por aqueles com quem rivalizamos e por aqueles
cuja opinião não desprezamos.
Rodrigo parece preencher cada uma dessas motivações: era o alvo
do amor de Ximena, enquanto esta era também o foco de seu amor. Percebe-se,
assim, uma mútua admiração; Ximena quer ser admirada por Rodrigo, pois, do
contrário, não insistiria tão veementemente nas questões concernentes à sua
própria honra, não fazendo de seu amante seu adversário e limitando-se ao amor
que este lhe devotava; por fim, é ele alguém cujas opiniões ela leva em conta,
o que pode ser percebido tanto na aceitação das afirmações de Rodrigo acerca de
sua honra, as quais ela acata sem muita dificuldade, e também no repetir de
suas próprias frases, em que, mesmo para distorcer, ela se apropria de algo que
pertence a ele.
A frase “Sai vencedor da ação de que o prêmio é Ximena.”, é o
“sim” da amada a Rodrigo, antes mesmo que ela fosse entregue a ele.
Scudéry, nas suas Observations, não vê outra reação
possível para a jovem senão aquela descrita por Corneille: “Ela tem razão ao
ruborizar-se e se esconder depois de uma ação que a cobre de infâmia por ver a
luz.” Certamente o crítico está mais preocupado com o humilhação social que com
o gesto amoroso que denuncia o desejo de agradar e/ou rivalizar com o seu
parceiro. O rosto vermelho de Ximena é um sinal externo de um desnudamento
interno: o amor vencera a honra. (Há que se lembrar que “o amor é fogo que arde
sem se ver...”). Para Scudéry, todavia, essa vitória é desonrosa.
Vemos nela [na peça Le Cid] uma filha desnaturada que
fala apenas de suas loucuras, quando ela deve falar somente de seu desespero,
lamentar a perda de seu amante, quando ela deve pensar apenas na de seu pai;
amar ainda o que ela deve abominar; tolerar ao mesmo tempo e na mesma casa este
assassino e este pobre corpo; e, para finalizar sua impiedade, juntar sua mão
àquela que desgosta ainda do sangue de seu pai.
Scudéry parece extremamente preocupado com o “dever” de
Ximena. Essa palavra é repetida no trecho acima, no sentido de reforçar o que
ela deveria ter feito em lugar do que de fato fez. Sob este aspecto, ele parece
mesmo mais zeloso da honra da jovem que seu amado. A preocupação do opositor do
dramaturgo de Rouen não era, no entanto, com a felicidade de Ximena, mas sim em
manter a bienséance. Disso Corneille mostra estar a par ao se
pronunciar. “As duas visitas que Rodrigo faz à sua amada têm alguma coisa que
choca esta bienséance da parte de quem as sofre; o rigor do dever
gostaria que ela renunciasse a falar com ele e se fechasse em seus
aposentos no lugar de escutá-lo.”
O amor de Rodrigo por Ximena, coincidindo com o de Ximena por
Rodrigo, esquece as demais virtudes que estavam em jogo. Ao se alegrar, no
final da cena, o riso de Rodrigo não é apenas aquele vivificador, mas também o
do vitorioso. É o riso do rebelde que ganha mais um adepto para a sua causa.
Esse tipo de riso [de alegria]
constitui uma reação fisiológica a uma transbordante situação de alegria para
com o próprio ser. Este riso, em si mesmo, não está ligado a fatores de caráter
moral. No riso de zombaria o que nos dá prazer é uma vitória de caráter moral,
enquanto no riso de alegria trata-se de uma vitória das forças vitais e da
alegria de viver. Muito frequentemente esses dois aspectos se
fundem. Quem ri é o vencedor: o perdedor nunca ri. O riso moral, ou
seja, o riso comum e saudável do homem normal, é signo da vitória daquilo que
ele considera justo. (grifos nossos)
Triplamente vitorioso: sobre os interesses do pai, do Estado e
do seu próprio, a imagem que temos de Rodrigo é a do heroi glorioso, ainda em
vida, que a plenos pulmões, sorriso nos lábios, quem sabe com algumas
gargalhadas a entrecortar a sua fala, proclama a si mesmo ao chamar quem quer
que seja para guerrear contra ele. Ximena completa o brilho que o conde e os
mouros já haviam lhe trazido, vence a sociedade ao desprezar escrúpulos vãos.
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Fonte:
Mariana Reis Furst: “A mistura de paixões em Le
Cid, de Pierre Corneille”. (Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos necessários para
a obtenção do título de Mestre em Letras: Estudos Literários. Área de
concentração: Teoria da Literatura. Linha de pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural. Orientadora: Profª. Drª Tereza
Virgínia Ribeiro Barbosa). Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de
Letras, 2010.
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