23/12/2015

"Há uma gota de sangue em cada poema", de Mário de Andrade

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HÁ UMA GOTA DE SANGUE EM CADA POEMA

Sabe-se que os ritos mágico-religiosos são precedidos de práticas, também rituais, que preparam o homem para a entrada no domínio do sagrado. Como se o iniciasse em um rito, Há uma gota de sangue em cada poema impõe ao leitor uma série de textos preliminares, que o aprontam para a leitura da obra propriamente dita. Antes de chegar aos poemas do livro, deve o leitor “passar” – trata-se, mesmo, de uma série de passagens – por um título singularmente explicativo, por uma biografia do autor em  verso, por uma explicação, em prosa, das razões que levaram o poeta a escrever e a publicar o livro e, finalmente, por um prefácio em forma de soneto. A sucessão de introduções, excessiva mesmo para um livro de estréia, ou para uma “obra imatura”, em que se compreende a intenção do autor de apresentar a si e a seu trabalho, exige que o leitor se demore no limiar da obra, como se penetrasse um templo, o que confere um caráter particularmente solene à entrada de Há uma gota de sangue em cada poema. Na medida em que obriga o leitor a realizar uma seqüência de paradas iniciáticas, a deter-se em sucessivas estações preparatórias, o conjunto de preâmbulos torna cerimonial a  leitura, ao mesmo tempo em que realça a estrutura ritual da composição do livro. Como se verá, Há uma gota de sangue tem, na liturgia católica, especialmente na missa, um de seus modelos compositivos fundamentais.

[...]

Voltando a Há uma gota de sangue em cada poema, sugerimos que, do rito que a obra dramatiza, o título do livro, a “Explicação”, a “Biografia” e o “Prefácio” constituem uma fase preliminar de preparação, funcionando como ritos de entrada, ou ritos de limiar. Além da quantidade superior à usual, o próprio teor desses preâmbulos assemelha-se ao das práticas rituais que antecedem as cerimônias mágico-religiosas: neles, o autor sucessivamente faz uma profissão de fé, profere uma encantação mágica propiciatória e transmite ao leitor, como se o iniciasse nos mistérios do livro que está prestes a ler, conhecimentos essenciais sobre a natureza, as origens e as finalidades da obra. A solenidade de que esses textos se revestem – o título, por exemplo, é um verso dodecassílabo e o prefácio, um soneto em decassílabos predominantemente heróicos –, completa a feição litúrgica do pequeno conjunto.

Desde sua abertura, portanto, Há uma gota de sangue em cada poema demanda que o ato de ler se transfigure em participação ritualística. As implicações dessa exigência, como se pode imaginar, não são pequenas. Colhido no processo de absorção ritual imposto pela obra, o leitor é induzido, como qualquer indivíduo que ingressa na  jurisdição do sagrado, a perder suas características específicas e a dissolver-se na “obscura indivisão do princípio religioso venerado sob o nome de mana”. A distância entre o leitor e a obra deve converter-se em uma forma ambígua de identificação – característica da experiência humana do sagrado –, que estranhamente encerra a alteridade e a identidade ao mesmo tempo. Por sua vez, a reflexão, própria da leitura, transmuda-se na mimese, própria dos ritos. Nestes, como se sabe, o indivíduo deve identificar-se com o que é absolutamente outro, ou seja, com os próprios deuses cujos atos o rito reatualiza – o rito, antes de tudo, é uma imitatio dei. Dessa forma, em Há uma gota de sangue em cada poema, o “contrato de leitura” sofre uma alteração que José Antonio Pasta Júnior tem demonstrado ser freqüente na literatura brasileira: “o ‘contrato de leitura’ – que preserva a distinção das partes em jogo mesmo no mais aceso dos processos identificatórios – duplica-se no caráter fusional do pacto – que por definição supõe um comprometimento dos limites subjetivos”. No limite, portanto, como uma verdadeira iniciação, o conjunto de prelúdios de Há uma gota de sangue estabelece, como condição de leitura da obra, a própria morte do leitor.

Sendo assim, considerando-se que a seqüência de introduções ao livro tem a função de instruir e de preparar o leitor para a leitura da obra – em outras palavras, tendo em vista que toda iniciação é um processo peculiar de formação –, pode-se afirmar, ainda com base nos estudos de Pasta Júnior sobre o romance brasileiro, que Há uma gota de sangue em cada poema “forma o leitor pela sua supressão”. Por um lado, em sua quantidade excessiva e em seu teor formativo, o grupo de preâmbulos do livro solicita e constitui, exageradamente inclusive, a instância do leitor. Por outro, contudo, justamente o número excessivo e a feição iniciática desses textos, uma vez que conferem um caráter ritual à entrada da obra, levam a constituição do leitor a dar-se, paradoxalmente, por meio de sua dissolução. Conforme explica Pasta Júnior, a natureza dessa estranha operação, “que ao mesmo tempo supõe o lugar do outro e o anula”, é contraditória e ruinosa: “num só e mesmo gesto de palavra, a obra produz ou institui seu leitor e, ao mesmo tempo, o suprime ou devora”. Chamado a tomar parte no rito que o livro põe em prática, o leitor de Há uma gota de sangue em cada poema deve, portanto, sujeitar-se a um regime funesto, segundo o qual ele “vem a ser no e pelo movimento mesmo em que deixa de ser”.

Nos pactos de limiar, aquele que deseja entrar, ou seja, atravessar a porta de entrada de uma casa ou de um templo, deve sacrificar, no limiar dessas edificações, um animal ou um homem aos donos da casa, aos deuses do templo – o sacrifício é o ato por excelência desses ritos de entrada. No “pacto” que Há uma gota de sangue em cada poema impõe logo em sua “porta de entrada”, ou seja, em seus preâmbulos, essa lógica de base dos pactos de limiar, como tudo em Mário de Andrade, é levada ao limite de  suas possibilidades de significação. Para penetrar a obra, deve no limiar desta o leitor consentir, religiosamente, em sacrificar-se a si mesmo. Nesse ato extremo, o leitor concelebra o ritual que a própria obra intensamente encena: sem risco de exagero, conforme se verá, pode-se dizer que Há uma gota de sangue em cada poema constitui-se como um grande rito sacrificial oficiado pelo escritor, em que o eu-lírico se oferece como vítima expiatória.


A imolação do eu-lírico, núcleo da obra, aparece sob a forma de um sinal gráfico, quase um ícone, logo na capa da primeira edição do livro. Com efeito, concebida por Mário de Andrade, a diagramação original de Há uma gota de sangue, que não foi preservada nas edições posteriores do livro, é uma dimensão significativa da obra, onde certas tendências profundas desta última encontram a sua consumação – em especial, como se verá, a propensão de Há uma gota à supressão de mediações que constituem a literatura, como as mediações entre o eu-lírico e a linguagem, entre a linguagem e os objetos que ela representa, entre a obra e o leitor etc. Na capa, associados à linguagem, os elementos gráficos revelam o sentido íntimo da obra, ou o ato fundador da composição do livro: o sacrifício do eu-lírico. No canto superior direito da página, encontra-se o nome do autor, em verdade um pseudônimo, impresso em negro, como de hábito: MÁRIO SOBRAL. Do sobrenome, escorre uma gota de sangue, em vermelho naturalmente:
Além de corresponder à timidez do escritor, confessada no poema que abre o livro, e a uma prática comum dos poetas de todos os tempos, a utilização do pseudônimo em Há uma gota de sangue participa, por si mesma, da estrutura sacrificial que organiza a obra. Segundo a lógica do sacrifício, a vítima substitui o sacrificante, ou seja, a comunidade ou o indivíduo que esperam ser resgatados por meio da imolação. Ora, o eu-lírico de Há uma gota, que se oferece em sacrifício para salvar a humanidade, substituindo-a na expiação da violência praticada na guerra mundial, é também um substituto do próprio escritor, o que se evidencia quando este se apresenta sob a forma do pseudônimo. No sacrifício, a substituição somente acontece quando a vítima é ao mesmo tempo idêntica ao sacrificante e distinta dele: “Para que a vítima possa polarizar e purgar as paixões, é necessário que seja semelhante a todos os da comunidade e ao mesmo tempo dessemelhante, simultaneamente próxima e longínqüa, a mesma e a outra, o duplo e a Diferença”. A vítima pertence, portanto, ao interior e ao exterior da sociedade, ela está dentro e fora desta; está, em suma, na margem. Como se verá, essa é a condição do eu-lírico de Há uma gota em relação aos homens que ele pretende redimir, isto é, à civilização ocidental devastada pela Primeira Guerra: ele pertence e não pertence ao Ocidente, participa e não participa dos combates – ele se encontra, em síntese, na periferia do sistema capitalista. Note-se, entretanto, por ora, que o eu-lírico, em seu nome, Mário Sobral, encontra-se em situação parecida em relação ao autor do livro: ele é o mesmo – Mário – e o outro do escritor; ele é e não é Mário de Andrade, constituindo-se, assim, como uma espécie de mediação ambígua ou precária – ou  melhor, constituindo-se e não se constituindo como instância mediadora. Noutro termos, se por um lado o pseudônimo representa uma mediação a mais entre o autor e o eu-lírico, por outro ele sugere, em Há uma gota de sangue, a supressão da mediação que o eu-lírico costuma ser em poesia. Não raro, a lírica de Mário procura instaurar uma passagem contínua – isto é, não mediada – do escritor para o eu-lírico, deste para o  poema e do poema para o leitor.

Segundo a boa teoria, contigüidades dessa ordem são características do esquema sacrificial, em que uma série de identificações sucessivas se estabelece entre o sacrificante, o sacrificador (o oficiante), a vítima e a divindade; ao mesmo tempo,  contudo, o sacrifício confirma a diferença existente entre os atores que o encenam – caso contrário, o sacerdote e o sacrificante pereceriam com a vítima. Todo sacrifício, portanto, ratifica a diferença entre o sagrado e o profano; não obstante, todo sacrifício suprime a diferença entre o sagrado e o profano. Em outras palavras, o sacrifício diferencia e identifica, ele institui, simultaneamente, a diferença e a identidade entre o mesmo e o outro: “o sacrifício é o operador da diferenciação universal, ao mesmo tempo em que, no mesmo movimento, ele suprime toda diferenciação”. No rito que se dramatiza em Há uma gota de sangue, vimos, o oficiante e a vítima, isto é, o escritor e o eu-lírico, são justamente idênticos e distintos, duplicidade que se manifesta no pseudônimo escolhido pelo autor.

Não por acaso, a gota de sangue ilustrada na capa do livro escorre do sobrenome SOBRAL, ou seja, do nome que diferencia o eu-lírico do escritor. O eu-lírico é a vítima sacrificial em Há uma gota de sangue em cada poema; autor e leitor, como se verá, compartilham seu destino funesto, mas em função dos desdobramentos e das contaminações simbólicas do sistema do sacrifício – a vítima expiatória, a rigor, é apenas o eu-lírico. Sua imolação é realizada no limiar da obra – na capa do livro –, como de regra nos rituais mágico-religiosos primitivos. Uma vez que o sacrifício é a operação suprema que permite realizar a passagem do profano no sagrado e vice-versa, pode-se afirmar que o limiar e o sacrifício têm, por assim dizer, afinidades profundas: o limiar é o lugar privilegiado da execução sacrificial; esta, por sua vez, consiste no ato principal dos ritos de limiar. Não é à toa que o Cristo, a vítima expiatória por excelência, teria afirmado, segundo João, “Eu sou a porta”. O limiar, noutros termos, é o mais antigo altar; nele, o eu-lírico de Há uma gota de sangue é sacrificado em nome da humanidade, convulsionada pela Primeira Grande Guerra.

A imolação, contudo, não costuma bastar nos rituais de entrada no espaço sagrado. Para completar o rito, deve-se verter o sangue da vítima sobre o limiar ou mesmo marcar o limiar com o sangue da vítima. A marca de sangue é o signo da união, consumada no sacrifício, entre o profano e o sagrado, entre quem entra e quem reside no interior. Atravessar o limiar marcado com sangue significa ratificar um pacto com o divino: ao virar a página de capa de Há uma gota, na qual se encontra impressa a marca do sangue do eu-lírico imolado, o leitor confirma um pacto mortal com a obra que ele “adentra”. Vimos com José Antonio Pasta Jr. que a figura do pacto distingue-se do modelo do contrato, uma vez que, por definição, ela compromete a distância entre as partes que o celebram, ou seja, uma vez que ela tem um caráter fusional. Nessa linha, o pacto que Há uma gota de sangue estende ao leitor é aquele em que a comunhão dos pactários é absoluta, o pacto de sangue. Este, escreve Trumbull, autor de um longo estudo sobre o assunto, “forma a mais íntima, sagrada e indissolúvel aliança que se pode conceber. O pacto de sangue envolve a entrega absoluta do ser separado e uma fusão irrevogável da natureza individual com o outro incluído no pacto”. “O sangue é um extrato muito especial”, diz Mefistófeles, ao comunicar a Fausto que ao sábio basta assinar o contrato entre ambos com uma gota de sangue, para que o acordo seja firmado. Nesse contexto, o sangue não é reconhecido apenas como uma substância essencial à vida ou que representa a vida, mas como a vida mesma; o sangue carrega a vida, de modo que sua efusão em um pacto significa a entrega da própria vida ao outro. Com efeito, o pacto de sangue, em sua forma extrema, “não pode consumar-se sem a morte de quem pactua”. Vida em troca de vida, eis a divisa do pacto de sangue, na qual o leitor terá reconhecido o princípio do sacrifício, sacrifício que é, entre outras coisas, a forma mais complexa do pacto de sangue.

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Fonte:
Pedro Coelho Fragelli: "A Paixão segundo Mário de Andrade". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientador: Prof. José Antônio Pasta Júnior). São Paulo, 2010.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

2 comentários:

  1. CONVITE ESPECIAL.

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  2. Isso é só a explicação? Eu quero ler o livro completo ,sem resumo 😏

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