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UM SENTIMENTO NACIONAL
Esteticamente, Andrade (1995a, p.
16) define o Belo como um prazer desinteressado e imediato despertado pela
empatia entre o sujeito e o objeto, intermediada fisiologicamente pelos
sentidos que determinam os afetos provenientes da sensação de prazer ou
desprazer produzida por meio da “atitude de contemplação pura”. Notadamente, a
concepção de Belo e de Arte que reproduz em suas aulas deriva, como o
academicismo e o modernismo institucionalizado no Brasil, da filosofia
kantiana, que o autor aparentemente identifica com o platonismo ao observar que
Platão caracteriza o Belo como um deslumbramento na medida em que o define como
um “esplendor da Verdade” diante do qual toda necessidade desaparece. Assim,
como uma ideia moral, ao lado do Bem e da Verdade, Andrade (1995a, p. 6)
reconhece o Belo como um elemento de “normalização do homem” que o satisfaz
espiritualmente em sua relação com o corpo humano.
Para o autor, as sensações
provocadas por determinados fatores elementares, como o som, o volume, a linha
e a cor, constituem sensações “puramente sensuais”, ao passo que as sensações
“mais elevadas” constituem, por sua vez, organizações de determinados elementos
segundo a forma e a sua universalidade, o que permite ao intelecto julgar o
Belo, compreendido como um “sentido superior” desprovido de necessidade e
interesse imediato (ANDRADE, 1995a, p. 15). Mas ao resumir as concepções dos
estetas provenientes da filosofia e da fenomenologia, eventualmente
compreendidas sob o influxo de suas leituras de Freud, observando que a
finalidade da arte deriva da universalidade do mundo fenomenal, a qual, apoiada
na empatia entre o sujeito e o objeto que precede a sensação do Belo, deve
regular a arte compreendida como representação do mundo, Andrade (1995a, p. 18)
exclui a arte musical, cujos fatores elementares se configuram como criações
puramente humanas, conclui.
Ao afirmar que a filosofia do
Belo consiste somente em um conhecimento abstrato que impossibilita gozar a
arte em toda a sua plenitude e finalidade, Andrade (1995a, p. 78-79) reivindica
o aspecto sensorial do sentimento do Belo, a fisiologia dos sentidos censurada
pela filosofia. Ao se ater ao aspecto sensorial da recepção musical e propor ao
sentido sensual um sentido intelectual, a nacionalização musical marioandradina
valoriza a atitude receptiva interessada e, por conseguinte, o corpo: “Nada de
teorias precisas e claramente organizadas: o artista deve ter uma ‘estesia’”
(ANDRADE, 1989, p. 30), preceituaria vinte anos depois, por meio de seu
personagem Janjão, o modernista cujo interesse pelos comportamentos humanos
coletivos provocados pelo contato musical, em função da construção de “‘uma
arte que interessasse as massas e as movesse’” (ANDRADE, 1989, p. 30), o induz
a se debruçar sobre um campo da pesquisa musical estranho para as Belas Artes,
sacralizada, segundo o autor, em um momento definido e associado aos prazeres
puros e profundos.
Afinal, a contemplação
desinteressada das Belas Artes exige, como prescreve Baumgarten (1993, p. 109),
a ascese. A ascese, que constitui uma condição para a temperança na
Antiguidade, representa um tema recorrente entre os estetas a partir do
setecentos, sobretudo para Schopenhauer (2005, p. 486), para quem assumiria a
forma da “negação da Vontade de vida”18 por meio do conhecimento que, como
quietivo de todo querer ou simplesmente como “quietivo da Vontade”, produziria
a resignação (SCHOPENHAUER, 2005, p. 502). Nesse sentido, o estado de
contemplação desinteressada do belo significa um instante de ascese em que o
sujeito se liberta da Vontade e de si mesmo. Assim, a noção kantiana de
desinteresse condiz com um estado de suspensão dos interesses do corpo na
contemplação da representação do belo (KANT, 2010, p. 55).
Em contraposição, a estesia
reivindicada por Andrade denomina a etapa da recepção sensorial que compreende
o contato com uma obra de arte e os efeitos provocados pelo referido contato
sobre o corpo. A estesia equivale, portanto, a sensações produzidas fisiologicamente,
como a comoção que precederia o julgamento cognitivo (ANDRADE, 1989, p. 79-80),
caracterizada por uma imediaticidade e uma tactilidade geral que
psicologicamente deve visar, conforme preceitua Janjão, a uma caracterização
racial. Mais, portanto, que simplesmente “um gozo sensual”, como reitera
Siomara Ponga (ANDRADE, 1989, p. 134). Assim, a criação musical brasileira deve
ser fisio e psicologicamente nacional, ou seja, fisiologicamente imediata e
interessada, e psicologicamente caracterizada pela determinação da sensação sonora
da qual decorre a dinamogenia, o movimento corporal resultante de um ato
reflexo.
Ainda em meados dos anos 1920, ao
se insurgir contra a afirmativa de que a arte musical representa “a mais
atrasada das artes”, derivada de uma compreensão das artes como imitação da
natureza que, apesar de seu “prazer todo sensual”, desvalorizaria “a mais vaga
e a menos intelectual de todas as artes”, Andrade sustenta a sua superioridade
justamente na estesia. Ao constatar, a respeito da obra de Bach, que “a menos
importante das suas fugas demonstra a estesia de que ele se serviu”, Andrade
(2009, p. 292-295) conclui que a arte musical, “libertada da palavra”, antecipa,
com a “criação subconsciente” de Bach e Mozart, o ideal de arte pura, por sua
capacidade de produzir comoções de que a natureza se revela incapaz. E revela
como destino do modernismo brasileiro a edificação de “uma nova estesia,
completa, serena, mais humanamente universal” (ANDRADE, 2009, p. 329). Se,
vinte anos mais tarde, Andrade revisa o conceito de estesia com outro apelo,
vale considerar em que medida a autonomia da arte pura sorbevive em seu
nacionalismo musical.
Conforme o autor, visando a um
sentido nacional, o aspecto sensorial do sentimento do Belo se associa
psicologicamente ao conhecimento, de modo que a sensação se torna objeto de
compreensão. A compreensão musical, contudo, requer afinidades eletivas que despertem
associações com conhecimentos de tempo, de temperamento e de sensibilidade,
conjetura Andrade (1995a, p. 42), que encontra o conceito de “afinidades
eletivas”19 em Hanslick (2002, p. 75), para quem a natureza dotou de afinidade
eletiva o material elementar da arte musical, cuja “moção emocional”, segundo
Hanslick (2002, p. 18), depende de fatores como nacionalidade, temperamento,
idade e conjuntura. Por fim, Andrade (1995a, p. 47) sugere que, em vez de
intelectual, a compreensão musical seja subconsciente. Assim, define a
compreensão musical como a assimilação absoluta e imediata que caracteriza a
atividade subconsciente, independente, como a contemplação desinteressada do
Belo, de necessidade e interesse imediato. A compreensão musical permanece, no
entanto, associada de certo modo ao estado da fisiologia criado pela comoção e
ao desejo, de que a arte constitui a sublimação. Como “realização de amor”
movida pela “necessidade de comunicação”, a obra de arte deriva de um desejo de
desejo, uma vez que o artista “quer ser correspondido no seu amor” (ANDRADE,
1995a, p. 56).
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Fonte:
Fonte:
Tiago Hermano Breunig: “Estesia
em tese: a nacionalização musical de Mário de Andrade”. (Tese de doutorado
submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de
Santa Catarina para a obtenção do Grau de Doutor em Literatura, área de
concentração Literaturas, linha de pesquisa Poesia e Aesthesis, sob orientação
da Profa. Dra. Susana Célia Leandro Scramim, orientação no exterior do Prof.
Kenneth David Jackson, Ph.D., e coorientação do Prof. Dr. Sérgio Paulo Ribeiro
de Freitas). Florianópolis 2015
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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