11/01/2014

Fragmentos e pequenos textos de Euclides da Cunha

 Euclides da Cunha - Fragmentos e pequenos textos - Iba Mendes
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A intertextualidade dos textos euclidianos

Acredito ser necessário fazer uma breve incursão aos chamados estudos literários para falar sobre intertextualidade, pois é esse campo que tradicionalmente (em um momento inclusive anterior à emergência dos estudos culturais) tem se ocupado com os modos de tecer uma leitura armada (interessada e consciente dos seus propósitos) dos textos tidos como “literários”. Meu interesse é, exatamente, deter-me, um pouco, nas discussões que se processam nesse campo no que diz respeito ao seu cruzamento com outros campos discursivos (da história, da antropologia, da sociologia, da comunicação, da educação). Isso se torna importante, pois o conceito de intertextualidade remete, também, à noção de interdiscursividade; ou seja, não apenas ao cruzamento de vários textos em um único, mas de vários discursos que, mesmo sendo provenientes de diferentes instâncias de produção cultural, permeiam e constituem diferentes textos (sejam esses literários, televisivos, sociológicos, antropológicos, fotográficos, biológicos, entre outros). Porém, não me ocupo, aqui, com a captura de todas as discussões apresentadas pelos estudos literários, no que diz respeito à sua própria reflexão interna, enquanto campo discursivo permeado por outros discursos e, ao mesmo tempo, caracterizado por certas singularidades. Não faço esse mergulho de forma sistemática por dois motivos centrais, que passo agora a apresentar, embora tenha transitado pelos estudos literários que focam suas análises na obra de Euclides da Cunha, sobretudo naqueles que versam sobre seus escritos sobre a Amazônia.

Primeiramente, gostaria de marcar, de explicitar e de dizer enfaticamente que não faço um estudo literário. Talvez, até nem fosse preciso dizer isso de forma tão incisiva, em razão dos meus interesses de pesquisa não serem sobre a estética literária. Minha formação acadêmica (um pesquisador em educação com formação em ciências biológicas) e minha atuação profissional (um docente universitário formador de educadores) me remetem a questões e problemas de pesquisa não centradas na literariedade dos textos a serem analisados, mas a questões de pesquisa de outra ordem. Desenvolvo, sim, uma análise cultural centrada em um problema específico (os processos envolvidos na nacionalização da floresta amazônica) e estou interessado em ver, nos textos que pesquiso, questões que possa relacionar à educação ambiental (mas especificamente às análises construcionistas da natureza). Dessa forma, meus interesses de pesquisa e meus olhares para os artefatos culturais que selecionei, especialmente os textos de Euclides da Cunha, têm as marcas dessa minha trajetória.

Em segundo lugar, como será visto adiante, a literariedade dos textos euclidianos analisados na pesquisa que desenvolvo é de difícil definição, pois esses são vários e de gêneros muito diferentes (são cartas, relatórios, notas, ensaios, diários, atas, ofícios). Destaco, então, que os aspectos relativos à estética literária são, inclusive, de importância menor no meu estudo e que não foi, também, o estatuto ou valor literário dos textos que me ocupou no desenvolvimento da pesquisa. Esclareço, ainda, que as escolhas dos textos para análise decorrem, especialmente, do quanto esses materiais pareceram poder colaborar para o adensamento argumentativo e analítico do meu problema de pesquisa, que, destaco novamente, é a nacionalização da floresta amazônica no início do século XX nos textos euclidianos, sobretudo nos relativos à sua viagem à floresta. Para discuti-lo, interessou-me examinar a produção escrita advinda da viagem de Euclides da Cunha à Amazônia em 1905 e, inclusive, o “Diário” de viagem tecido pela tripulação que acompanhou o escritor. Além disso, considerei pertinente ao meu estudo, deter-me, também, em outros documentos como, por exemplo, as “instruções” oficiais formuladas para orientar a viagem de Euclides da Cunha pela Amazônia (escrita pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil), os textos decorrentes de outras viagens realizadas pelo interior do Brasil e da América Latina (como as conferências proferidas pelo Marechal Rondon relatando suas viagens pelo interior do Brasil para a implantação do telégrafo e os ensaios de viagem que o naturalista alemão Alexander von Humboldt escriturou sobre o chamado Novo Mundo, no início do século XIX), e, ainda, nos relatórios oficiais elaborados pelo Ministério das Relações Exteriores sobre a Amazônia no início da Primeira República brasileira.

Entretanto, devo ressaltar, desde já, que foram privilegiados neste estudo os textos decorrentes da viagem de Euclides da Cunha à Amazônia (ainda neste capítulo falarei mais detidamente sobre o material empírico da pesquisa).

Retomando as considerações a respeito dos estudos literários, gostaria de salientar que, conforme argumenta Walter Moser (1998), uma diferença entre os estudos culturais e os estudos literários diz respeito ao corpus textual da pesquisa, ou seja, os primeiros se apóiam em séries “heteróclitas não provenientes de coleções de textos institucionalmente constituídos e socialmente legitimados” (p.71). Em outras palavras, não é o aspecto canônico dos textos selecionados à pesquisa que importa para um trabalho de tese situado no campo dos estudos culturais, pois o privilégio dado a uma suposta “alta” cultura (como a literatura tem sido reconhecida) sobre uma também suposta “baixa” cultura (como as telenovelas, por exemplo, têm sido marcadas) é colocado sob uma forte suspeita nestes estudos (NELSON; TREICHLER e GROSSBERG, 1995). Neste sentido, minha pesquisa conecta e destaca como importantes os relatórios, as cartas, as notas, as atas, os diários – ou seja, documentos algumas vezes considerados como apresentando pouca importância literária quando comparados, sobretudo, ao livro escrito por Euclides da Cunha sobre a saga de Canudos. Porém, devo reconhecer que o fato de todos estes textos terem sido produzidos por Euclides da Cunha confere, por si só, legitimidade e importância aos mesmos, pois se trata de um autor canonizado na literatura brasileira e até, ouso dizer, latino-americana ou, quem sabe, mundial.

Mas não foi o cânone, insisto novamente, que me interessou, ou que me orientou na seleção dos textos de análise, como se fosse importante, para mim, apenas, as grandes obras, os ensaios de renomado prestígio literário. Meu mergulho nos estudos culturais já havia me permitido relativizar tal aspecto.

A escolha dos textos decorrentes da viagem de Euclides da Cunha à Amazônia, para minha pesquisa, diz respeito, sim, embora possa parecer paradoxal, à força constitutiva dos mesmos, ou seja, ao poder que a eles se pode destinar na instituição de um modo de ver, ler e narrar a Amazônia no início do século XX. É, exatamente, a consagração literária de Euclides da Cunha que confere tal força a suas diferentes produções (mesmo as tidas como de menor fôlego literário). Dessa forma, destaco que a construção discursiva da Amazônia se dá a partir de relações assimétricas de poder, pois a floresta foi inscrita discursivamente no mundo a partir de determinados textos, que lhe imprimem significações sempre parciais e provisórias, sendo alguns tidos como mais legítimos e importantes (como merecedores de serem lidos, como influentes em uma determinada época), mesmo que se possa afirmar estarem alguns deles embebidos de hibridação (como parece ter sido o caso dos textos euclidianos).

Continuando a apresentar algumas questões relativas ao campo dos estudos literários, quero salientar que há uma vertente que insiste na “intransitividade do texto” (MOSER, 1998, p.68). Nessa direção de pesquisa, o texto é tratado como um objeto absoluto e auto-referente. Ligia Chiappini (2000) também destaca que houve nos estudos literários um “largo período formalista, em que as relações dos textos com seus contextos foram postas entre parênteses, por uma atenção restrita à forma, entendida como estática e autônoma” (p.19). A autora chama a atenção para o crescente interesse dos estudos literários pelo “entrelaçamento das obras literárias com outros discursos” (p.19). Nessa direção, salienta-se a intertextualidade e a interdiscursividade dos mesmos. Como diz Moser (1998), outras tendências nesse campo têm acentuado a “transitividade do texto”, seu estatuto como documento histórico e suas relações com as estruturas sociais.

Chiappini (2000) destaca algumas questões relativas, por exemplo, ao cruzamento da literatura com a história. A autora diferencia as duas formas de análise, argumentando, portanto, que não se deva perder a singularidade de tais estudos, marcando, inclusive, que o ponto central de um estudo de literatura é o valor estético das obras literárias. A pesquisadora tece críticas às leituras instrumentais, conteudistas, utilitaristas e ideológicas que, segundo ela, empobreceriam o texto literário. Nesta direção crítica, a autora pergunta: “numa época em que reina o utilitarismo, não seria útil defender um espaço para o aparentemente inútil? E, portanto, defender a gratuidade da arte e o seu poder de resistência à domesticação ideológica...” (p.23)? Chiappini (2000) argumenta que os estudos literários, buscando exatamente ultrapassar ao mesmo tempo a gratuidade e a autonomia absoluta, concebem a “literatura enquanto constituída pela história e produtora de história”. Assim, o encontro entre a literatura e a história seria imanente à própria produção do artefato literário, pois este não se constitui sem historicidade. Como nos lembra a pesquisadora, ao invés de querer localizar na história as obras literárias ou encontrar nelas fagulhas de “fatos” históricos, torna-se mais importante:

(...) buscar o modo de compreender a produção dessa mesma historicidade, sem esquecer a historicidade da leitura ela própria e tentando articular o passado e o presente, para evitar seja o anacronismo da projeção de um sobre o outro seja na ilusão de apanhar inteiramente o passado, visitá-lo, revivê-lo, senão enquanto metáfora (CHIAPPINI, 2000, p.26).

Posso dizer que concordo em parte com as argumentações da autora, pois em minha pesquisa não tive a intenção de demarcar, claramente, os limites e as fronteiras entre os campos da história e da literatura. Pelo contrário, estive interessado em colocá-los em articulação. Mesclá-los não apenas entre eles (ou entre suas subáreas tais como a literatura de viagem e a história ambiental), mas com outros campos como os da educação ambiental, da geografia, da sociologia. Promovi, assim, as articulações disciplinares que pensei serem produtivas para as questões que me propus discutir na tese. Além disso, borrar as fronteiras, atravessar diferentes campos de saberes, relativizar as presumidas “purezas” disciplinares (essas são, inclusive, estratégias analíticas assumidas pelos estudos culturais), foi algo que deliberadamente busquei desempenhar neste trabalho. Ademais, longe de pretender conter o surgimento de supostos anacronismos e contradições (como se tivesse que resolvê-los ou, até mesmo, escondê-los) busquei, ao contrário, assumir em todos os momentos da tese o caráter instável e híbrido da escrita euclidiana sobre a Amazônia. Nesta direção, os aparentes anacronismos, as presumidas contradições e os latentes paradoxos que lia nos escritos amazônicos do autor mostravam-me a produtividade da noção de hibridação para a pesquisa.

Aquilo que se vislumbrava, inicialmente (nas leituras que fazia dos textos euclidianos no início da tese), como paradoxal, foi-se, paulatinamente, configurando, a meu ver, como efeito da articulação promovida entre diferentes discursos. Em outras palavras, passei a argumentar e a defender a idéia de que a floresta emergida das páginas tecidas por Euclides da Cunha fora instituída em processos de hibridação (veremos melhor, e detidamente, esse aspecto no próximo capítulo).

Voltando às questões relativas às relações entre os estudos literários e os estudos históricos, posso pensar que os textos de Euclides da Cunha sobre a Amazônia não são, simplesmente, produzidos por efeito de um determinado contexto histórico da sua época, mas que eles igualmente instituem, produzem, certa historicidade. Como veremos no quarto capítulo da tese, esta historicidade construída através do texto euclidiano conecta-se fortemente, por exemplo, com toda a literatura científica de viagem do século XIX, relativamente às formas de ver, ler e narrar a floresta e os seres humanos que lá vivem; ou seja, Euclides da Cunha rompe deliberadamente com essa literatura ao inscrever a Amazônia nas linhas que foi tecendo, escriturando, em seu caderno de viagem. Articulando seus textos sobre a floresta com a literatura científica de viagem que, como veremos no próximo capítulo precisa ser apagada, desconstruída, passada a limpo, Euclides os dota de uma historicidade descontínua. Assim, esses textos talvez possam ser vistos como inaugurais, no que tange à produção de um “nova” discursividade sobre a Amazônia. Enfim, penso que é a ruptura e não a continuidade que marca a historicidade dos textos sobre a Amazônia escritos por Euclides da Cunha.

Até aqui, procurei argumentar que os textos euclidianos sobre a Amazônia são vários e diferentes; que tais artefatos apresentam não simplesmente uma relação contextual com a história, mas que produzem, eles mesmos, uma forma de ver a história, uma certa descontinuidade histórica que não se pode descolar facilmente do texto, estando, portanto, ligada de forma imanente a ele. Busquei argumentar, também, que buscar um valor estético definidor da qualidade literária dos textos não é uma intenção dessa pesquisa, mas, que, paradoxalmente, talvez, é exatamente a legitimidade conferida a Euclides da Cunha que me interessa, pois seus textos acabam adquirindo uma maior força constitutiva de significações sobre a Amazônia do que aqueles escritos por sujeitos não tidos como “literatos” à época.

Além disso, ouso dizer que os escritos sobre a Amazônia de Euclides da Cunha permitem construir uma cadeia nova de analogias a respeito da floresta. Tais considerações também me levam novamente a marcar que além de vários, diferentes e importantes produtores de uma historicidade descontínua, os textos euclidianos sobre a Amazônia são atravessados por muitos outros textos, ou seja, como já indiquei anteriormente, eles possuem um caráter intertextual.

Marise Amaral (2003) chama a atenção para a “fascinante intertextualidade” que a viagem enquanto texto nos apresenta (p.142). A autora argumenta que lhe interessou discutir em seu estudo “os relatos dos viajantes como complexas produções culturais”, ou seja, como artefatos culturais “que se cruzam, que se interpenetram, múltiplos textos, várias narrativas, muitas histórias” (p.141). Sem dúvida, parece ser o texto de viagem que traduz de forma mais latente e explícita seu aspecto intertextual. Porém, quem sabe, possa-se dizer que qualquer texto contempla já em suas linhas muitos outros. E o caráter intertextual dos artefatos literários que lemos diz respeito não apenas àquilo que está escrito, ao seu conteúdo, mas, também, e de forma complexa, às leituras que são tecidas sobre os mesmos, leituras armadas (tecidas sob o crivo consciente de uma ou mais teorias) ou desarmadas (desinteressadas ou ingênuas). Em outras palavras, nas leituras que se fazem dos textos também se interpenetram múltiplos outros. Como nos diz Enzensberger (1995):

Se dez pessoas lêem um texto literário, o resultado será dez leituras diferentes. Todos sabem disso. Inúmeros fatores, completamente incontroláveis, influenciam a leitura: a história social e psicológica do leitor, suas expectativas e interesses, seu estado de espírito no momento, a situação na qual está lendo - fatores que não apenas são absolutamente válidos e que por isso deveriam ser levados a sério, mas que simplesmente representam as condições que permitem que algo como a leitura ocorra. Conseqüentemente, o resultado não é determinado pelo texto e não é determinável. Nesse sentido, o leitor sempre tem razão e ninguém pode lhe tomar a liberdade de usar o texto do modo que lhe for mais convincente (...). A leitura é um ato de anarquia. A interpretação, principalmente a única correta, existe para frustrar esse ato (p.16-17).

Nesta direção de entendimento sobre a leitura, posso dizer que a intertextualidade atravessa os textos em mão dupla, ou seja, na sua própria produção (sempre uma bricolagem singular e, talvez, nova, de muitos outros textos) e, ainda, nas leituras que lhe são feitas. Jonathan Culler (1999) também salienta que teóricos recentes têm argumentado que as obras literárias se tornam possíveis pelas anteriores, as quais elas “retomam, repetem, contestam, transformam” (p.40). Este autor lembra, ainda, algo que considero muito importante: a intertextualidade pode também ser observada em outros lugares e não, apenas, na literatura. Nessa direção, lembrar que os textos literários analisados nessa pesquisa apresentam uma intertextualidade é fundamental para não lê-los como inaugurando ou encerrando em si mesmos as significações, por exemplo, sobre a floresta amazônica.


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Fonte:
Leandro Belinaso Guimarães: “Um olhar nacional sobre a Amazônia: apreendendo a floresta em textos de Euclides da Cunha”. (Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profa . Dra. Maria Lúcia Castagna Wortmann). Porto Alegre, 2006

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