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Euclides, homem letra
Ao embrenhar-se na caatinga,
Euclides da Cunha, embebido de idéias, conhecimento
e conceitos abstratos ia ao contato da
terra, adquiria alma nova e tudo descrevia com ênfase, vendo com exagerado entusiasmo os humildes burgos do
interior baiano (...) Súbito, à vista de um velha casa, uma vivenda histórica,
abandona por um instante a paisagem, deixa o espaço, voltando-se para o tempo.
E que vivência única essa ruptura
entre espaço e tempo, tão própria à literatura. Cisão que é representada tanto pela
multiplicação dos eus na escrita, uma vez que o narrador,
Euclides “se desdobra em personagem – sujeito do enunciado”. Está em dois ou mais tempos ao mesmo tempo: na escrita
automática da caderneta de campo; só, no momento de reflexão e lembrança; no
que é narrado efetivamente em Os sertões. Ao narrar-se junto à descrição, insere-se num
mundo de vários tempos, ou num mundo em que
“o conceito de tempo, a sensação de que o tempo passa, supõe um movimento incessante de recomeço, de reiteração”, tal
qual em algumas culturas ditas arcaicas.
É essa cisão de eus que permite,
ao texto literário, “tirar partido do fato de os dois ‘eus’ não serem necessariamente
coincidentes. Pressupõe mesmo que há uma grande distância entre eles”. O processo da
escrita realizada pela experiência literária se constitui num debate entre vários eus,
local por excelência em que as mudanças de opinião, nem que minimamente, ocorrem.
Daí, como veremos posteriormente,
que essa experiência resulte em escritura, não somente na acepção de palavra escrita, mas
principalmente naquela que estabelece elos,
linhagens, tradições enfim. Referência para textos passados e futuros.
Atemporal e que se constituem quando “o
centro não é o centro”, conceito “contraditoriamente coerente. E como sempre, a coerência na
contradição exprime a força de um desejo”.
E, como sabemos, o desejo faz o
sujeito. A escritura literária, como sujeito, atua no mundo; deixa brechas à interpretação, estimula
a criação.
Assim, o centro torna-se
movimento contínuo e “disforme”, visto a diferença de interpretações de diferentes sujeitos. Não só
do sujeito multifacetado da escrita, nos quais a “qualidade e a fecundidade de um
discurso medem-se talvez pelo rigor crítico com que é pensada essa relação com a história
da Metafísica e aos conceitos herdados Trata-se aí de uma relação crítica à
linguagem das ciências humanas e de uma responsabilidade
crítica do discurso”. Já citamos partes em que Euclides adota o discurso de velhos mestres e, noutras, que os
olha com um olhar crítico, tornando-os relativos,
descentrando-os. Relatividade legada à escritura, quando o deslocamento etnocêntrico se dá literariamente, nos
sujeitos múltiplos e distintos que se encontram na experiência literária.
Conceito fragmentário, bem ao
gosto de Benjamin, a experiência literária, proposta pelo filósofo francês Maurice
Blanchot, pode ajudar-nos a localizar um silêncio fértil, em contraposição à “pobreza
da experiência”. Uma fertilidade advinda não só do fato de que o calar é uma
maneira de nos expressarmos, mas, principalmente, da proposição de que preencher o silêncio é “a
condição, a intenção e a virtude da palavra”. A literatura alçada, se
não à posição de último refúgio da experiência humana, ao menos à condição de guardiã de sua
riqueza.
E se duas experiências concretas
e similares, a vivência da guerra de trincheiras – clássica no início da 1ª Guerra Mundial e um
tanto quanto “adaptada” no cerco estabelecido
durante a 4ª expedição do exército brasileiro contra Canudos –, ocasiona silêncios tão distintos, certamente a
diferença entre eles não está nas condições materiais, no vivido, mas na forma
como esse vivido afeta o sujeito. Há, portanto, nesse jogo de afetos que constitui a experiência
literária, uma subversão da divisão entre dentro e fora, sujeito e mundo, a qual acaba
por abalar qualquer certeza constituída, uma vez que quem escreve já não é
mais um, e o que se escreve também já não é mais, já era e virá a ser.
O Euclides da Cunha surgido na
escrita d’Os sertões desencadeou uma profusão de discursos, não só sobre o tema de Canudos,
como também sobre a própria condição do
homem sertanejo. Ao cunhar nesse livro o conceito de sertão, demonstrava o
imenso hiato entre os valores e
princípios que a recém criada República Brasileira prometia e o que se fazia no projeto modernizante
brasileiro; uma “modernização sem modernidade, sem a incorporação dos valores de um destino
comum a ser compartilhado na arena pública”.
Em Canudos, a arena era outra, da
natureza – “elipse majestosa de montanhas”,
“ficção geográfica” na qual a “separação social completa (...) criava a sensação nostálgica de longo afastamento da
pátria”; povoado incômodo “reduzido a grande praça deserta, sempre”. Para se
afirmar como novo sistema político, essa república não incorporava os párias – homens
expatriados, não reconhecidos como cidadãos
em sua própria pátria. Ora deixava-os abandonados numa situação em que a esperança é provisória e sobrenatural; ora
promovia a barbárie para corrigir os supostos desvios de conduta provenientes dessa
situação. Contudo, não previa que a modernidade literária – e a conseqüente incorporação
heróica dos párias – já se mostrava nos textos de um meio Positivista, afeito ao naturalismo,
como o era Euclides; nem mesmo que os crimes
perpetrados por políticos e generais não sairiam impunes, perdidos na “caducidade das coisas humanas”.
O que Euclides não sabia era que,
ao embarcar, no Rio de Janeiro, em um navio de nome Espírito Santo, rumo à Bahia, de fato,
começava a adentrar os instáveis caminhos
da escritura – “toda arte nascida de uma experiência e ligada a ela (...) é sem
fim, sem repouso, termina
contestando-se”.
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Fonte:
Fonte:
César Gonçalves de Oliveira: “Quant’Os
sertões: Escritura e experiência literária em Os sertões, de Euclides da Cunha”.
(Dissertação de Mestrado, orientada pelo
Professor Doutor Marcus Vinicius de
Freitas, apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Estudos Literários (Pós-Lit) da
Faculdade de Letras da UFMG. Orientador: Professor Doutor Marcus Vinicius
de Freitas). Belo Horizonte, 2011.
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