11/01/2014

Diário de uma Expedição, de Euclides da Cunha

 Euclides da Cunha - Diario de uma Expedicao - Iba Mendes
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Euclides, homem letra

Ao embrenhar-se na caatinga, Euclides da Cunha, embebido de idéias,  conhecimento e conceitos abstratos ia  ao contato da terra, adquiria alma nova e tudo descrevia com ênfase, vendo com  exagerado entusiasmo os humildes burgos do interior baiano (...) Súbito, à vista de um velha casa, uma vivenda histórica, abandona por um instante a paisagem, deixa o  espaço, voltando-se para o tempo.

E que vivência única essa ruptura entre espaço e tempo, tão própria à literatura.  Cisão que é representada tanto pela multiplicação dos eus na escrita, uma vez que o   narrador, Euclides “se desdobra em personagem – sujeito do enunciado”. Está em  dois ou mais tempos ao mesmo tempo: na escrita automática da caderneta de campo; só, no momento de reflexão e lembrança; no que é narrado efetivamente em Os sertões. Ao  narrar-se junto à descrição, insere-se num mundo de vários tempos, ou num mundo em  que “o conceito de tempo, a sensação de que o tempo passa, supõe um movimento  incessante de recomeço, de reiteração”, tal qual em algumas culturas ditas arcaicas.

É essa cisão de eus que permite, ao texto literário, “tirar partido do fato de os  dois ‘eus’ não serem necessariamente coincidentes. Pressupõe mesmo que há uma  grande distância entre eles”. O processo da escrita realizada pela experiência literária  se constitui num debate entre vários eus, local por excelência em que as mudanças de  opinião, nem que minimamente, ocorrem.
Daí, como veremos posteriormente, que essa experiência resulte em escritura,  não somente na acepção de palavra escrita, mas principalmente naquela que estabelece  elos, linhagens, tradições enfim. Referência para textos passados e futuros. Atemporal e  que se constituem quando “o centro não é o centro”, conceito “contraditoriamente  coerente. E como sempre, a coerência na contradição exprime a força de um desejo”.

E, como sabemos, o desejo faz o sujeito. A escritura literária, como sujeito, atua no  mundo; deixa brechas à interpretação, estimula a criação.

Assim, o centro torna-se movimento contínuo e “disforme”, visto a diferença de  interpretações de diferentes sujeitos. Não só do sujeito multifacetado da escrita, nos  quais a “qualidade e a fecundidade de um discurso medem-se talvez pelo rigor crítico  com que é pensada essa relação com a história da Metafísica e aos conceitos herdados Trata-se aí de uma relação crítica à linguagem das ciências humanas e de uma  responsabilidade crítica do discurso”. Já citamos partes em que Euclides adota o  discurso de velhos mestres e, noutras, que os olha com um olhar crítico, tornando-os  relativos, descentrando-os. Relatividade legada à escritura, quando o deslocamento  etnocêntrico se dá literariamente, nos sujeitos múltiplos e distintos que se encontram na  experiência literária.

Conceito fragmentário, bem ao gosto de Benjamin, a experiência literária,  proposta pelo filósofo francês Maurice Blanchot, pode ajudar-nos a localizar um  silêncio fértil, em contraposição à “pobreza da experiência”. Uma fertilidade advinda não só do fato de que o calar é uma maneira de nos expressarmos, mas, principalmente,  da proposição de que preencher o silêncio é “a condição, a intenção e a virtude da  palavra”. A literatura alçada, se não à posição de último refúgio da experiência  humana, ao menos à condição de guardiã de sua riqueza.

E se duas experiências concretas e similares, a vivência da guerra de trincheiras  – clássica no início da 1ª Guerra Mundial e um tanto quanto “adaptada” no cerco  estabelecido durante a 4ª expedição do exército brasileiro contra Canudos –, ocasiona  silêncios tão distintos, certamente a diferença entre eles não está nas condições materiais, no vivido, mas na forma como esse vivido afeta o sujeito. Há, portanto, nesse  jogo de afetos que constitui a experiência literária, uma subversão da divisão entre  dentro e fora, sujeito e mundo, a qual acaba por abalar qualquer certeza constituída, uma vez que quem escreve já não é mais um, e o que se escreve também já não é mais, já era  e virá a ser.

O Euclides da Cunha surgido na escrita d’Os sertões desencadeou uma profusão  de discursos, não só sobre o tema de Canudos, como também sobre a própria condição  do homem sertanejo. Ao cunhar nesse livro o conceito de sertão, demonstrava o imenso  hiato entre os valores e princípios que a recém criada República Brasileira prometia e o  que se fazia no projeto modernizante brasileiro; uma “modernização sem modernidade,  sem a incorporação dos valores de um destino comum a ser compartilhado na arena  pública”.

Em Canudos, a arena era outra, da natureza – “elipse majestosa de  montanhas”, “ficção geográfica” na qual a “separação social completa (...) criava a  sensação nostálgica de longo afastamento da pátria”; povoado incômodo “reduzido a  grande praça deserta, sempre”. Para se afirmar como novo sistema político, essa  república não incorporava os párias – homens expatriados, não reconhecidos como  cidadãos em sua própria pátria. Ora deixava-os abandonados numa situação em que a  esperança é provisória e sobrenatural; ora promovia a barbárie para corrigir os supostos  desvios de conduta provenientes dessa situação. Contudo, não previa que a modernidade  literária – e a conseqüente incorporação heróica dos párias – já se mostrava nos textos  de um meio Positivista, afeito ao naturalismo, como o era Euclides; nem mesmo que os  crimes perpetrados por políticos e generais não sairiam impunes, perdidos na  “caducidade das coisas humanas”.

O que Euclides não sabia era que, ao embarcar, no Rio de Janeiro, em um navio  de nome Espírito Santo, rumo à Bahia, de fato, começava a adentrar os instáveis  caminhos da escritura – “toda arte nascida de uma experiência e ligada a ela (...) é sem  fim, sem repouso, termina contestando-se”.


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Fonte:
César Gonçalves de Oliveira: “Quant’Os sertões: Escritura e experiência literária em Os sertões, de Euclides da Cunha”. (Dissertação de Mestrado, orientada  pelo Professor Doutor Marcus Vinicius  de Freitas, apresentada ao Programa de  Pós-Graduação em Estudos Literários  (Pós-Lit) da Faculdade de Letras da  UFMG.  Orientador: Professor Doutor Marcus Vinicius de Freitas). Belo Horizonte, 2011.

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