22/12/2015

"Os Contos de Belazarte", de Mário de Andrade


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BELAZARTE: DO CONTO POPULAR AO CONTO MODERNO

Ao lermos Os Contos de Belazarte, nos deparamos com inúmeras marcas de oralidade no discurso narrativo. Não só aparece a personalidade de Belazarte, suas opiniões sobre o que narra, mas também os momentos em que não lembra bem o que quer contar ou quando percebe estar falando sobre a história de alguém que não importa, voltando à narrativa principal. Neste capítulo, partiremos desse ponto e mostraremos de quais formas se dá o descompasso entre narrador dos contos e matéria narrada. Para isso, trabalhamos com essas marcas de oralidade, com a origem do narrador (uma paródia de Pedro Malasartes) e com os problemas do conjunto. Nosso objetivo foi analisar os diversos traços de determinados contos que mostram a diferença entre posição do narrador e marcas textuais (como a s falas das personagens, por exemplo).

Iniciamos com uma das dissonâncias de Belazarte, que, a exemplo da epígrafe deste capítulo, mantém características de um narrador oral. No caso, a tentativa de lembrar o nome de família de Nízia gera a hesitação , o esforço de rememoração que é representado graficamente pelas reticências. Por outro lado, o individualismo do narrador romanesco está presente no Belazarte urbano, membro de uma São Paulo em crescimento e modernização. O narrador se mantém o mesmo do início ao fim da narrativa... em sua ambivalência constitutiva.

Luís da Câmara Cascudo, no livro Literatura Oral no Brasil, fala sobre a tradição de contar histórias e dessa tradição oral em oposição à literatura escrita e canônica. O autor fala sobre a literatura oral “sem nome em sua antiguidade, viva e sonora, alimentada pelas fontes perpétuas da imaginação, colaboradora da criação primitiva, com seus gêneros, espécies, finalidades, vibração e movimento, contínua, rumorosa e eterna, ignorada e teimosa” (CASCUDO, 2006, p.25) e das características dessa tradição ao atravessar o tempo e o espaço. De outro lado, está a “literatura que chamamos oficial, pela sua obediência aos ritos modernos ou antigos de escolas ou de predileções individuais” (Ibid., p.25) que “express a uma ação refletida e puramente intelectual” (Ibid., p.25).

A sua irmã mais velha, a outra, bem velha e popular , age falando, cantando, representando, dançando no meio do povo , nos terreiros das fazendas, nos pátios das igrejas nas noites de “novena”, nas festas tradicionais do ciclo do gado, no baile do fim das safras de açúcar, nas salinas, festa dos “padroeiros”, potirum, ajudas, bebidas nos barracões amazônicos, espera de “Missa do Galo”; ao ar livre, solta, álacre, sacudida, ao alcance de todas as críticas de uma assistência que entende, letra e música, todas as gradações e mudanças do folguedo . (Ibid., p.25-26, grifo nosso)

Além da separação entre a literatura oral e a “ofic ial”, outro ponto nos interessa particularmente. Câmara Cascudo disserta sobre as técnicas da narrativa popular: fórmulas, informações, recursos auxiliares de diferentes nacionalidades. O autor diz, por exemplo, que no início dos textos há, comumente, “fórmulas usuais” (Ibid., p.250), como o “Era uma vez...” ou o “Diz-se que era uma vez...”. Da mesma maneira, as fórmulas existem também para os fechamentos: “Para findar, as fórmulas são várias e raro será o narrador que as esqueça” (Ibid., p.251), como o “E viveram felizes para sempre”, ou como nos exemplos trazidos pelo autor: “Acabou... Viveram sempre muito felizes e acabou”, “Quem o disse está aqui. Quem o quiser saber vá lá... [...]” ou “Vitória! Vitória! Acabou-se a história” (Ibid., p. 252-253).

O mesmo acontece em Belazarte: há um repetido refrão no início: “Belazarte me contou:” e no final “fulana foi muito in/feliz”. Essa é uma espécie de “moldura” das histórias, pois dá abertura e fechamento para elas, funcionando como um artifício mnemônico do narrador para guardar e depois contar a história. Esses bordões também fazem parte do aspecto esquemático, do esqueleto da história, daquilo que sempre se repete de forma a manter um ritmo regular na narrativa. Em carta enviada a Carlos Drummond de Andrade, Mário mostra sua visão sobre os refrões do livro.

Quase todas as histórias acabam com o refrão Fulano foi muito infeliz. Fulano foi muito feliz vem em duas histórias só, são felizes uma bêbada esquecida do mundo Nízia Figueira e um moço bobo. [ ...] E veja, hoje, todos os gêneros se baralham, isso até Croce já decretou está certo. Romances que são estudos científicos, poemas que são apenas lirismo, contos que são poemas, histórias que são filosofias etc. etc. Não tem a mínima importância e vamos e vamos agora saber qual é o conceito exato de romance! Eu estou achando que o defeito de certas histórias de Belazarte é que estão um pouco pesadonas de tão compridas porém contra isso não posso nada. É estilo de Belazarte e não meu . (ANDRADE, 2008, p.15-16, grifo nosso).

O autor coloca a questão do refrão ao lado da hibridização dos gêneros. A percepção de Mário de que os contos estariam muito longos, de que os gêneros se embaralham, colabora para a discussão deste capítulo, pois da mesma forma que ele considera não haver linha divisória clara entre romances, poemas, contos, assim também se comportam os contos de Belazarte: entre a tradição oral popular e o conto moderno.

É imprescindível esclarecer que a posição assumida  neste trabalho é a de distinção entre autor e narrador, destacada pelo próprio Mário de Andrade no trecho acima. Em alguns textos lidos para esta dissertação, essa divisão autor/narrador não é clara.

Sobre essa tradição oral, Câmara Cascudo ainda mostra que há outras técnicas interessantes nessas narrativas. Uma delas se refere ao narrador dizer ter acontecido na realidade aquilo que ele narra “No tempo antigo era assim” (CASCUDO, 2006, p.260). Outra é a dos finais contemplarem sempre a felicidade das personagens: “Noventa e nove e quatro quintos dos contos populares terminam bem, casamento, castigo do vilão, felicidade perfeita, alegria, banquetes, danças” (I bid., p.261). Vale destacar aqui a inversão sistemática do final: nos três primeiros contos d’Os Contos de Belazarte, os finais são os já mostrados aqui: “Rosa/Carmela/Teresinha foi muito infeliz”, de forma a alterar a versão tradicional das histórias populares para a realidade da vida/do conto.

N’Os Contos de Belazarte, Mário propõe “bordões” a serem repetidos por seu narrador de modo similar aos da tradição. Não há mera repetição, mas reinvenção. E há diversas técnicas que “copiam” essa tradição oral transposta para o papel. O narrador usa frases típicas dos que contam histórias: “olhe o que aconteceu com Rosa...” (ANDRADE, 2008, p.27); “você se lembra do João?” (Ibid., p.39); “faz quanto tempo nem sei” (Ibid., p.27), “parece incrível, não?” (Ib id., p.27), “conto o resto do que sucedeu pro João um outro dia” (Ibid., p.37).

O mesmo narrador faz julgamentos e reflexões sobre a vida: “coitado!” (Ibid., p.32); “o pobre” (Ibid., p.32) “é pena... tradição que já vai se perdendo...” (Ibid., p.43); “ah, meu caro, tempo corre!...” (Ibid., p.46); “essas coisas de gente meia pobre são tão baixas” (Ibid., p.47). E tenta localizar suas histórias no espaço: “talvez andasse pelas fazendas... Sei que fora visto uma vez em Botucatu” (Ibid., p.40).

Além desses índices de oralidade, há um esforço de aproximação do contador, Belazarte, com o leitor/ouvinte da história: “[ele] não sabia o que estava esperando. Nós é que sabemos, não?” (Ibid., p.35); “Você já sabe que sou cristão...” (Ibid., p.115).

Observamos que o narrador tenta construir uma relação íntima com seu interlocutor. Esse movimento coloca o leitor do livro de contos em solidariedade com esse narrador que busca cumplicidade.

Conforme dissemos no início do capítulo, em determinados momentos o narrador embarca por veredas de outras histórias, tece comentários digressivos que não têm relação com a história principal:

[quando está descrevendo quem foi ao circo] “Vieramos irmãos Garcias, de casaca, e o Dr. Cerquinho tão conhecido, médico bom do bairro. – Olha o doutor Cerquinho! – O doutor Cerquinho!... Homem tã o bom, consultas a três milréis... Quando não podia pagar, não fazia mal, ficava pra outra vez.” (Ibid., p.43-44)

Esse trecho sobre o Dr. Cerquinho não é retomado em nenhum outro momento relevante nos contos, não há nenhuma relação dele com as personagens do conto “Jaburu Malandro”, onde ele está localizado. Em outro conto, o próprio narrador parece dar-se conta dessas veredas por onde se encaminha o seu “contar”. Quando entra na história de “Piá não sofre? Sofre.”, o narrador inicia descrevendo Alfredo na penitenciária. Como isso não colaboraria para a história principal, sentencia: “Estou perdendo tempo com ele” (Ibid., p.99) e passa a falar de Teresinha e de Paulino. Ao que tudo indica, esse movimento de se afastar da narrativa principal traduz o gesto dispersivo e despreocupado do narrador oral, que se deixa levar pela associação de ideias, abre uma nova vereda, se dá conta de que está se perdendo... e volta ao fio da meada. É o ritmo da conversa levada à escrita.

E qual a origem da oralidade de Belazarte? Ela tem início nas “Crônicas de Malazarte”, publicadas na revista América Brasileira entre 1923 e 1924. A pesquisadora Ivone Rabello explica que, nessas crônicas, Mário, amante das polêmicas, criou dois personagens. De um lado estava Malazarte, que “caricaturizava a consciência eufórica, tendente à alegria permanente que vê na ‘aldeia a grande cidade industrial’.” (RABELLO, 1999, p.27). De outro, Belazarte, com uma “rabugice tristonha de quem ‘na casa tijolada da aldeia vê taperas’.” (Ibid., p.27). Para a autora, esses dois personagens aparecem nas crônicas através de “posiç ões tipificadas”, entrando o próprio Mário no debate imaginário, “no papel de cronista-pedagogo” (Ibid., p.27). No título desse conjunto de dez crônicas também está a referência ao narrador Pedro Malasarte das histórias populares. Ele é um malandro à moda antiga, uma espécie de justiceiro dos pobres, que ajuda aqueles que precisam de proteção, normalmente contra os patrões, os mais ricos etc.

Câmara Cascudo fala sobre essa personagem tão tradicional, trazida pelos portugueses que emigravam “com o seu mundo na memória” (CASCUDO, 2006, p.182). Segundo ele, outras personagens muito conhecidas têm a mesma origem lusa, como, por exemplo, o lobisomem, as bruxas, as fadas, os gigantes, os príncipes e personagens como Maria Sabida e como Pedro Malasarte. Além disso, o pesquisador explica que a história de Malasarte “é um centro de interesse reunindo estórias de muitas origens, castelhanas, francesas, italianas” (Ibid., p.186). Ou seja, dentro das histórias de Malasarte há inúmeras outras histórias sendo contadas, histórias que foram misturadas a elementos locais e a características dos nativos.

Talvez a história mais famosa dessa personagem popular seja a da sopa de pedra. Vamos retomá-la brevemente. Um dia, andarilhando na estrada e cheio de fome, Pedro Malasarte se depara com um sítio grande, com muitos animais, frutas e verduras. Ele pede ajuda, implorando por comida. A velha dona do sítio diz que não pode ajudar, que não pode dar nada para ele saciar a fome. Percebendo que a mulher era uma avarenta, Pedro resolve usar toda a sua esperteza. Pede que ela lhe empreste apenas uma panela, água e pedras, que ele resolveria o resto, fazendo sua famosa sopa de pedras. Intrigada com a possibilidade de fazer uma sopa com pedras, a velha traz o material. Logo, Pedro pede também um pouco de sal, para que a sopa fique mais gostosa. A velha traz. Ele pede também um pouco de cenoura e batata. A velha vai trazendo as verduras interessada na mágica sopa. Por último, o malandro pede um pedaço de carne, para que a sopa fique perfeita. Ao terminar, Pedro toma a sopa, restando apenas a pedra no fundo. Questionado se não a comeria, ele responde que ela vai servir pra enganar outra pessoa no futuro.

O contraste entre Pedro Malasarte e as personagens d’Os contos de Belazarte é notável: impossível que elas vençam a condição de p obres, muito por causa de sua ingenuidade, o que, conforme nos diz a pesquisadora Irenísia Oliveira, “seria uma virada na moral das apreciadas histórias de Pedro Malasartes, mostrando agora que os resultados não comprovam a vitória da esperteza do fraco” (OLIVEIRA, 2008, p.6).

Ou seja, de forma contrária à tradição oral, os pobres e desvalidos encontram a derrota em Belazarte. E essa característica da tradição oral aparece na teoria de Benjamin, quando o crítico explica o lugar dos contos de fadas como conselheiros da humanidade. Primeiro, o autor mostra os diversos tipos de personagens que foram usados na oralidade para libertar o homem do mito. Segundo ele, esses contos de fadas, onde estariam os primeiros narradores verdadeiros, eram o lugar de procura das pessoas por conselhos, quando estes ainda tinham força. O “ tolo”, o “rapaz que saiu de casa”, o “inteligente” são exemplares de como se pode vencer , de como o homem pode sair vitorioso quando se depara com situações modelo: “o conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância.” (BENJAMIN, 1995, p.215). Benjamin não fala em vitória pela força, ma s, na tradição oral, em uma espécie de vitória alcançada através da vivência e do ouviras histórias dos outros – mais velhos, mais vividos, mais viajados. Assim como nas histórias de Pedro Malasarte, o pobre pode sim sagrar-se vencedor nas dificuldades da vida, desde que imbuído de coragem, astúcia e arrogância – o que os afasta d’ Os Contos de Belazarte.

Há ainda outras grandes diferenças entre o narrador estudado neste trabalho, calcado na oralidade, e a teoria de Câmara Cascudo. O estudioso fala que “A técnica da exposição é simples, nua e perfeita de sequência lógica. Não há pormenor dispensável nem a paisagem demora a narrativa” (CASCUDO, 2006, p.262). Para ele, os narradores tradicionais orais usam poucas frases, fazem raros comentários que fogem da ação principal.

No discorrer do enredo, raramente se abandona o principal pelo acessório embora de inapreciável efeito temático. Segue a estória em linha reta, ação por ação, uma verdadeira gesta. Só se volta para acompanhar outro fio da narrativa quando o essencial-característico pode esperar, imóvel, que os outros personagens entrem em cena na hora exata da “deixa”. (Ibid., p.262)

Esse comportamento linear e desprovido de “floreios ” seria impossível para o narrador vaidoso que estamos discutindo. Belazarte coloca-se em primeiro plano, lugar diferente das pessoas que narra, como veremos adiante, e não poderia deixar-se apagar em vista da “gente meia pobre” (ANDRADE, 2008, p.47 ), da “gente do povo” (Ibid., p.55), dos “desinfelizes” (Ibid., p.92). Nesse sentido, esse narrador estaria mais perto do que nos diz Benjamin. Para ele, a narrativa não se ria “pura em si”, como a informação ou um relatório. Carregada de elementos de seus narradores, “ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Asim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso ” (BENJAMIN, 1995, p.205). Os narradores estariam “presentes de muitas maneiras n as coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata” (Ibid., p.205).

Cabe aqui um parênteses. A preferência pelas marcas do narrador em detrimento da narrativa “pura em si” acontece de forma semelhante em Simões Lopes Neto. Nos Contos Gauchescos, o autor parte de um enredo simples: da tradição oral, enraizada na cultura popular, (ou seja, dos narradores anônimos, iguais em todas as histórias) para a narração única, peculiar, de um autor (vale ressaltar a importância do gesto de narração: colocar Blau Nunes para narrar as histórias, introduzir esse narrador no início dos contos e tomar a palavra. Esse é um dos maiores valores dos contos). Silvio Romero (1897), em seu livro Contos Populares do Brasil, traz a escrita do conto popular “Melancia e coco mole”, de onde Simões possivelmente retirou a matéria básica do conto “Melancia – Coco Verde”. No primeiro, um conto popular, segundo Silvio Romero, trazido do Recife, há economia de personagens – que não têm nomes (“um homem”, “a moça”, “o rapaz”) – e uma história simplificada e rápida, que carece de verossimilhança (no final da história, no dia da festa do casamento da moça com o marido que o pai dela escolheu, ela consegue, através da astúcia do pajem do homem por quem é apaixonada, se livrar da obrigação do casamento arranjado e se casar no mesmo dia com o homem que amava) e onde o único dado comportamental é um “ele estava triste”.

Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. (Ibid., p.204)

Benjamin nos mostra, no trecho acima, que para a longa permanência da narrativa, é necessário valer-se de meios que facilitem a memorização da história – que precisa ser concisa e natural. O que vemos na transformação desse conto popular para a obra criada por Simões é a personalidade do narrador, o adensamento psicológico das personagens, a escolha por determinados trechos e exclusão de outros episódios. Ou seja, o trabalho detalhado e único, em oposição ao coletivo e generalizador da tradição popular.

Fechado o parênteses, voltamos à Câmara Cascudo, que descreve também o posicionamento corporal do contador através dos movimentos expressivos e as modulações da voz. O pesquisador explica que as histórias tradicionais contadas usavam gestos e entonações para caracterizar tanto uma personagem a partir de suas falas – a voz diferente da bruxa, a rouquidão do ancião, a delicadeza da criança – como indicar lugares no corpo de quem conta a história, de forma a fazê-la mais real e impactante:

Os pronomes demonstrativos e possessivos não satisfazem plenamente a necessidade da expressão pictórica. Creem ser uma ideia pálida dizer que o golpe de espada, a chifrada do touro ou a caída da árvore alcançou o herói na sua perna ou nessa perna, direita ou esquerda. Acompanham sempre de uma indicação mais precisa, localizando a ferida ou o golpe no “aqui na perna lá dele”, como se diz nas províncias do norte português, “cortou a orelha dele, bem rente...”. Ocorre o poder evocador e mágico do nome, atraindo para o ponto indicado a ferida citada. (CASCUDO, 2006, p.256).

Ele mostra, com razão, que o conto popular é uma mistura da voz com o gesto do narrador em interação com seus ouvintes. Não consegue, todavia, mostrar isso na reprodução, feita ao longo do livro Literatura Oral no Brasil, dos contos populares que resgatou. Neles, o autor usou a linguagem convencional, a linguagem culta.

No mesmo sentido, Paul Zumthor (2007) explica a ideia de performance como um conceito antropológico, um momento privilegiado da recepção, “em que um enunciado é realmente recebido.” (ZUMTHOR, 2007, p.50). Esta colocação explica-se através dos vários momentos de um texto poético, formação, transmissão, recepção, conservação e reiteração. Numa situação de oralidade pura:

a “formação” se opera pela voz, que carrega a palavra; a primeira “transmissão” é obra de um personagem utilizando em palavra sua voz viva, que é, necessariamente, ligada a um gesto. A ‘recepção’ vai se fazer pela audição acompanhada da vista, uma e outra tendo por objeto o discurso performatizado: é, com efeito, próprio da situação oral, que transmissão e recepção aí constituam um ato único de participação, co-presença, esta gerando o prazer. (Ibid., p.65, grifo nosso)

É este ato único, em que se encontram transmissão e recepção, que Zumthor diz ser a performance. Envolvendo, assim, todo o contexto do discurso: tempo, lugar, ação do locutor e resposta do público. Cabe mais uma vez lembrar Walter Benjamin, quando o crítico alemão relaciona narração à prática surgida da interação entre alma, olho e mão. Ele explica que a interação entre as três partes define uma prática que nos deixou de ser familiar. À mão pertencia um trabalho que hoje é mais modesto e o espaço ocupado por ela na narração é atualmente um espaço vazio, “pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito” (BENJAMIN, 1995, p.220-221).

Segundo Zumthor, por seu caráter heterogêneo, seria impossível definir performance de forma simplificada. Mas em qualquer que seja a definição, sempre encontraremos um elemento irredutível: “a ideia da presença de um corpo” (Ibid., p.38). Isto por causa da percepção sensorial do ouvinte. Por isso, num discurso oral se faz importante notar os conceitos de voz e de teatralidade. O autor considera a voz “não somente nela mesma, mas (ainda mais) em sua qualidade de emanação do corpo e que, sonoramente, o representa de forma plena.” (Ibid., p.27). E a teatralidade refere-se ao reconhecimento de um espaço de ficção.

A condição necessária à emergência de uma teatralidade performancial é a identificação, pelo espectador-ouvinte, de um outro espaço; a percepção de uma alteridade espacial marcando o texto. Isso implica alguma ruptura com o ‘real’ ambiente, uma fissura pela qual, justamente, se introduz essa alteridade. (Ibid., p.41).

Segundo ele, a performance não é apenas um meio de comunicação – ela afeta o texto poético: “A performance e o conhecimento daquilo que se transmite estão ligados naquilo que a natureza da performance afeta o que é conhecido. A performance, de qualquer jeito, modifica o conhecimento.” (Ibid., p.32, grifo nosso). Portanto, fica clara a importância da performance, principalmente quando o autor, ao falar sobre suas pesquisas de campo em busca da “oralidade” da voz poética, constata que “a performance é o único modo vivo de comunicação poética.” (Ibid., p.34).

A partir disso, queremos mostrar que a tradição oral se confronta com a escrita, obviamente necessária para o gênero conto moderno. A preferência do escritor por colocar elementos da fala no texto escrito não representa de fato a oralidade. Vale atentar para algumas escolhas discursivas:

“João percebe que si beber outra vez, se prejudicará demais” (ANDRADE, 2008, p.37, grifo nosso);
“João sentiu-se mais feliz que o rei Dom Carlos. Safado rei dão Carlos...” (Ibid., p.46, grifo nosso).

Evidencia-se aí a preocupação de representar na escrita o gesto oral. Mas, se acreditarmos realmente na oralidade de Belazarte, como explicar o uso de um “si”, um “sinão”, um “quasi”, um “xicra” ao lado de um “buscá-los” ou um “besouro” (e não “bizoro”)? Essa tensão entre oralidade e escrita na superfície do discurso traduz um dilema mais profundo. A performance altera a própria natureza da fala do narrador em co-presença com seu ouvinte. Então, como traduzir o conto popular para a escrita de um conto moderno?

Além desse ponto, há uma tensão entre: 1º - o interlocutor de Belazarte, que se coloca como ouvinte. Atentemos para as marcas de Belazarte fazendo referência a esse interlocutor: “Não brinque com essa história de sempre isolar sem pre que falo em mãe, o caso é triste” (Ibid., p.64), “Você é músico, e do conservatório grande lá da avenida São João, por isso há-de se divertir com o caso...” (Ibid., p.65), “Mesmo no Brás tinha um moço muito bonzinho, coitado! que estudava violi no com o professor Bastiani, colega de você.” (Ibid., p.65). E 2º - o interlocutor do conto de Mário de Andrade, o leitor do livro. Essas duas instâncias traduzem duas formas de composição que se colocam em conflito dentro da composição do conto. Como incorporar a fala do outro (sem diminuí-la, sem deformá-la)? Como traduzir na escrita a língua, o contar tão performático da tradição popular?

Para Zumthor, as duas situações (de oralidade VS. de escrita) se opõem “como um conjunto de processos naturais a uma série de procedimentos artificiais” (ZUMTHOR, 2007, p.66). O autor diz que a leitura, por não envolver todos os elementos da percepção utilizados na oralidade, estaria sendo cada vez mais rejeitada por jovens. E que, além disso, muitos leitores de poesia articulam, interiormente pelo menos, os sons. “A leitura literária não cessa de trapacear a leitura. Ao ato de ler integra-se um desejo de restabelecer a unidade da performance, essa unidade perdida para nós, de restituir a plenitude – por um exercício pessoal, a postura, o ritmo respiratório, pela imaginação.” (Ibid., p.67).

A tentativa de transpor o conto popular – tale – para o conto moderno – short story – sempre será uma utopia, um plano irrealizável pelo simples fato de eles não pertencerem ao mesmo gênero. Benjamin reflete sobre isso quando explica que a falta de tempo do cotidiano está intimamente ligada ao surgimento do conto moderno, que nasce da tradição oral, mas não permite a “superposição de camadas finas e translúcidas” (BENJAMIN, 1995, p.206). Não há superposição de histórias sendo recontadas. Essa seria a grande diferença entre o conto popular e o conto moderno: o conto moderno não permite a alteração do próximo contador, é esteticamente único, tem cuidado formal.

já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado. Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas. (Ibid., p.206)

Além disso, é comum que o narrador oral fale de experiências próprias, para que os conselhos e as reflexões tenham mais verdade e autenticidade. Em oposição a isso, o narrador estudado escolhe como matéria prima de sua histórias a periferia italiana de São Paulo, da qual ele está socialmente distante. Conforme nos diz Benjamin, “o grande narrador tem sempre suas raízes no povo” (Ibid., p. 214), o que contrasta com a posição de Belazarte. Sua falta de estabilidade gera um problema estrutural, de um narrador que ora elogia o popular, as pequenas sutilezas e belezas do pobre, ora trata seus amores ou as mulheres como aberrações. Isso nos aproxima do que diz Theodor Adorno: o narrador não é objetivo porque já parte da subjetividade de impor a ilusão de sua história e da linguagem escolhida para a representação: “A nova reflexão é uma tomada de partido contra a mentira da representação, e na verdade contra o próprio narrador, que busca, como um atento comentador dos acontecimentos, corrigir sua inevitável perspectiva” (ADORNO, 2003, p.60).


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Fonte:
Gabriela Mattos Cardoso: “Os contos de Belazarte: um narrador e um projeto estético”. (Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira, apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientador: Prof. Dr. Antônio Marcos Vieira Sanseve rino). Porto Alegre, 2013.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.

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