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O LUGAR DE MACUNAÍMA NA
LITERATURA BRASILEIRA
Nada
conseguia arrancar Narciso da contemplação, nem fome, nem sede, nem sono.
Várias vezes lançou os braços dentro da água para tentar inutilmente reter com
um abraço aquele ser encantador. Chegou a derramar lágrimas, que iam turvar a
imagem refletida.
Mário de Andrade
(1893-1945), autor-objeto desta pesquisa, constituiu-se historicamente como cânone da literatura
brasileira. Para compreender como
o autor ocupa tal lugar, será necessário buscar as bases que sustentam este
cânone em específico, ou seja, promover um diálogo com a historiografia, a
crítica e a teoria literária brasileiras. Optou-se então, pelo estudo de um
crítico reconhecidamente representativo no meio literário brasileiro, Antonio
Candido (1918), cujo livro Formação da Literatura Brasileira (1957)
comporta as principais ideias que passaram a servir como suporte para o estudo
da literatura brasileira desde sua publicação, e, portanto, também edificado
como cânone.
Logo no primeiro
capítulo do livro citado, depara-se com a concepção de literatura que dará os
contornos para a formulação de sua teoria:
Convém
principiar distinguindo manifestações literárias, de literatura propriamente
dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns,
que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes
denominadores são, além das características internas, [...] certos elementos de
natureza social e psíquica, [...] que se manifestam historicamente e fazem da
literatura aspecto orgânico da civilização.”
No prefácio da
segunda edição, o crítico explica melhor sua ideia: “[...] para se configurar
plenamente como sistema articulado, ela (a literatura) depende da existência do
triângulo ‘autor-obra-público’, em interação dinâmica, e de uma certa
continuidade da tradição.” Três pontos merecem ser melhor analisados: o
primeiro é a concepção de literatura como um
sistema, o segundo é a importância que dá à recepção da obra como
condição de sua existência e, por fim, a tradição colocada como condição da formação da continuidade
literária.
Tomar a
literatura como
sistema, pressupõe um centro e setores periféricos que se interagem num
movimento de dependência dos últimos com o primeiro. Nesse modelo, a
organização se dá numa linha de subordinação hierárquica, tornando autêntico o
ato de eleger uma obra em detrimento de outra para compor o centro ou enumerar
autores-modelo com autoridade para redigir as leis responsáveis por manter o
sistema. Assim coloca Candido “[...] as obras não podem aparecer em si, na
autonomia que manifestam, [...] aparecem, por força da perspectiva escolhida,
integrando em dado momento um sistema articulado e, ao influir sobre a
elaboração de outras, formando, no tempo, uma tradição.”
Além disso, sua
teoria se constrói na ideia de formação, isto é, concebe a Literatura
Brasileira como
um processo linear que se constituiu historicamente, estabelecendo-se, conforme
coloca, na própria representação da tradição:
Quando a
atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema, ocorre
outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária, - espécie de
transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento
conjunto, definindo os lineamentos de um todo. É uma tradição no sentido completo
do termo.
Se os critérios
de Antonio Candido para eleger os autores representativos da produção literária
nacional se fazem num processo de exclusão/inclusão legitimada pela própria
concepção que tem de literatura, quando entrega ao receptor a responsabilidade
pela existência das obras que compõem o centro e à tradição o papel de dar
continuidade ao processo de formação da literatura brasileira, desonera a
historiografia e a crítica do papel que desempenham tanto na construção desse
cânone como no que dá sustentabilidade a ele, conferindo assim, maior
credibilidade na própria teoria que formula, como se apenas descrevesse os
fatos imparcialmente.
Neste ponto da
discussão, abre-se um pequeno parêntese para uma reflexão sobre o peso da
palavra “tradição”, pois, colocando-a como pilar que sustenta o cânone que
apresenta, o crítico acaba por construir uma teia argumentativa quase
incontornável, onde desenha os contornos da literatura brasileira, dando um
lugar determinado para cada autor eleito a fazer parte desse sistema. Para tanto, serve-se do trecho do texto Interpretação
e
Ideologias de
Ricoeur (1990):
“Tudo o que é
consagrado pela tradição transmitida e pelo costume possui uma autoridade que
se tornou anônima, e nosso ser historicamente finito é determinado por essa
autoridade das coisas recebidas que exerce uma poderosa influência sobre nosso
modo de agir e sobre nosso comportamento, e não somente aquilo que se justifica
por razões. Toda educação repousa sobre isso (...) Costumes e tradições são
recebidos em toda liberdade, mas de forma alguma são criados em toda liberdade
de discernimento ou fundados em sua validade. É exatamente isso que chamamos de
tradição: o fundamento de sua validade”.
Essas são apenas
algumas das estratégias discursivas presentes no interior do texto de Candido,
pois, no decorrer desta discussão ver-se-á a presença também de recursos
intertextuais implícitos em seu discurso, afigurando-se, na verdade, num
emaranhado de textos que se referem uns aos outros num processo de legitimação
mútua. De acordo com Costa Lima (1981), o discurso ensaístico brasileiro,
arrolado por uma certa “cultura auditiva”, investe-se no poder sedutor do
discurso e se contenta com a precariedade do recurso argumentativo. Ressalta
também que essa estratégia discursiva possui estreita relação com o
autoritarismo, por se apresentar como
“pensamento impositivo, que não precisa demonstrar, pois lhe basta apontar,
mostrar com o dedo a ‘verdade’”.
Na
Formação da literatura brasileira, percebe-se que o crítico arquiteta e
apresenta suas ideias, valendo-se de estratégias discursivas, ao mesmo tempo
internas e externas ao texto. Na organização textual
são perceptíveis as injunções produzidas pela própria narrativa no processo de
sua elaboração: antes mesmo, de dar os lugares precisos aos autores e suas
respectivas obras no cenário da literatura brasileira, Candido constrói esses
lugares na própria concepção de literatura que desenha, eximindo a ideia que apresenta
de maiores explicações, já que a comprovação do que é apresentado é dada no
próprio arranjo textual dotado de eficácia persuasiva.
Após levantar os
alicerces que sustentarão seu discurso, Antonio Candido dá início à tessitura
da “Formação da Literatura Brasileira”. O discurso que vigorava desde o final
do século XIX sobre o Brasil e sua produção cultural no meio intelectual é
reproduzido e perpetuado nas linhas e entrelinhas de seu
texto, dando-lhe forma e, também, sustentabilidade a sua teoria.
Esse discurso é
problematizado pela historiadora Stella Bresciani em seu livro O charme
da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre outros
intérpretes do Brasil (2005), onde discorre sobre um lugar-comum às
leituras voltadas a compreender o Brasil, tanto de historiadores, sociólogos,
como aquelas representadas na literatura. Em síntese, ela faz um apanhado de
textos que, independente do gênero textual (científico ou literário) ou
perspectiva adotada pelo autor, volta-se para a mesma interpretação do Brasil,
ou tem esta por base. Assim coloca:
[...] complexo
novelo de ideias, opiniões, teses e convicções amplamente difundidas e
partilhadas no meio letrado [...] uma interpretação da história do país
saturada de carga emocional negativa, ressentida em sua formulação pessimista,
e altamente chocante pelo impacto da representação estética, a imagem de um
país, e mais ainda, de uma nação de configuração inconclusa e identidade
ressentida e recalcada.”
O “Brasil como nação inconclusa”,
portanto, ainda em formação, linha interpretativa que se encontra intrínseca
também no discurso de Candido e que, por sua vez, sustenta a ideia construída
pelo crítico do processo formativo da literatura brasileira. De acordo com ele,
a literatura “brasileira é recente [...] é galho secundário da portuguesa, por
sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das musas [...]”; possuidora então,
de uma produção literária regida pela “dialética do localismo e do
cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos. Ora a afirmação
premeditada e por vezes violenta do nacionalismo literário, com veleidades de
criar até uma língua diversa; ora o declarado conformismo, a imitação
consciente dos padrões europeus.”
Antonio Candido
elege dois “momentos decisivos” da literatura brasileira - o Romantismo, no
século XIX (1836-1870), e o Modernismo, no século XX (1922-1945) - que, de
acordo com ele, “mudam os rumos e vitalizam toda a inteligência”. Em síntese, o
autor constrói a ideia de que “a história literária
brasileira consiste na construção política/ideológica de um projeto mais ou
menos consciente e deliberado de um conjunto de autores, leitores e
instituições, interessados em solidificar a sua própria literatura”. De acordo
com o crítico, os árcades são os primeiros a trazer o elemento local para o
texto literário; a busca pela superação da influência portuguesa intensifica-se
com os românticos, que se empenham, conscientemente, em construir uma
literatura essencialmente brasileira, constituindo o primeiro momento decisivo;
para findar com os modernistas de 22, principalmente, Mário de Andrade e Oswald
de Andrade, na concretização desse projeto com a reescrita do Brasil. Os
escritores modernistas passam, então, a serem considerados os responsáveis pela
concretização desse projeto, assim como
expressa Candido:
[...] A referida
dialética (entre o localismo e o cosmopolitismo) e, portanto, grande parte da
nossa dinâmica espiritual, se nutre deste dilaceramento (produzido pela tensão
entre o dado local e os moldes herdados da tradição europeia), que observamos
desde Gregório de Matos no século XVII, ou Cláudio Manuel da Costa no século
XVIII, até o sociologicamente expressivo ‘grito imperioso de brancura em mim’
de Mário de Andrade, - que exprime, sob forma de um desabafo individual, uma
ânsia coletiva de afirmar componentes europeus da nossa formação.
Mário de Andrade,
diante da dialética entre o localismo e o cosmopolitismo traçado por Candido,
aparece como
figura representativa por estar inserido num dos momentos considerados
decisivos da produção cultural e intelectual, o Modernismo. O início do
Modernismo brasileiro é representado pela Semana da Arte Moderna (São Paulo,
1922). Nas palavras do crítico, nomes que fizeram parte do movimento são
agrupados, recebendo adjetivos especiais:
[...] alguns
escritores intimistas como Manuel Bandeira,
Guilherme de Almeida; outros, mais conservadores, como Ronald de Carvalho, Menotti del Picchia,
Cassiano Ricardo; e alguns novos que estrearam com livre e por vezes desbragada
fantasia: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, na poesia e na ficção; Sérgio
Milliet, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais Neto, no ensaio.
O Modernismo
brasileiro não se deu de forma homogênea, várias foram as correntes literárias
que o formaram, sendo na estrutura formal o ponto de maior sintonia entre elas;
pois, todas, exceto a corrente espiritualista de Tasso da Silveira,
tinham como
proposta, a renovação radical da estética com o intuito de se fazer uma
literatura especificamente brasileira. No que tange ao conteúdo, apesar do
movimento se voltar à realidade nacional como
um todo, particularizavam-se pelo cunho ideológico que sustentava e as
agrupavam em torno de interesses comuns.
O Modernismo, em
sua fase heróica, consistiu, conforme Candido, “na libertação de uma série de
recalques históricos, sociais, étnicos, que são trazidos triunfalmente à tona
da consciência literária.” De acordo com o autor, o movimento consegue romper
com o sentimento de inferioridade em relação a Portugal, pois, os escritores
incorporam em seus escritos as deficiências do brasileiro, os obstáculos
da natureza tropical, a mestiçagem e a influência de culturas primitivas,
ameríndias e africanas, que, antes eram tidas como constrangimento e, portanto,
idealizadas; com os modernistas, puderam ser reinterpretadas como superioridades.
A rapsódia de
Mário de Andrade, Macunaíma, passa a ocupar lugar de destaque na seleção
feita por Antonio Candido das obras modernistas que melhor concretizou o
projeto de abrasileiramento da literatura. Segundo o autor:
Mário de Andrade,
em Macunaíma (a obra central e mais característica do movimento),
compendiou alegremente lendas de índios, ditados populares, obscenidades,
estereótipos desenvolvidos na sátira popular, atitudes em face do europeu,
mostrando como a cada valor aceito na tradição acadêmica e oficial
correspondia, na tradição popular, um valor recalcado que precisava adquirir
estado de literatura.
Antonio Candido
confere a Mário de Andrade o título de quem melhor materializou o projeto
nacionalista na literatura brasileira, ou seja, Macunaíma, conforme o
crítico, “mostra como somos diferentes da Europa”, cria uma narrativa que
melhor “exprime a forma e a essência do seu país”, pondo à mostra, até mesmo,
“sentimentos ocultos”, nunca antes explorados.
Essa tese
construída por Candido do “desrecalque localista” realizado pelos modernistas
de 22 também é alicerçada pela mesma linha interpretativa citada por Bresciani,
do ”Brasil concebido como país desencontrado de si mesmo”, ancorada, por sua
vez, a outro lugar-comum citado pela historiadora: a busca de características
identitárias do brasileiro. Lugar-comum este partilhado com Paulo Prado (Retrato
do Brasil, 1928), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936),
Gilberto Freire (Casa Grande & Senzala, 1933), Darcy Ribeiro
(O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, 1995) dentre
outros, intitulados e reconhecidos como os intérpretes do Brasil, pelas
leituras realizadas sobre o país. Todos realizam uma volta
às origens do país, sob uma concepção mesológica, carregada de preconceitos
sobre os tipos humanos que o constituem, convergindo na construção de uma
identidade negativa para o brasileiro.
Assim, se Mário
está incluído no cânone da literatura brasileira como autor-modelo, a rapsódia ocupa um lugar
especial em outro cânone, por sua vez, constituinte do primeiro. Ela faz parte
das obras literárias brasileiras tidas como fundadoras da nação, dividindo
espaço com outras, como: O Guarani (1857) e Iracema (1865) de
José de Alencar, Juca Pirama (1851) de Gonçalves Dias, toda tidas
como fundadoras de um “Brasil imaginado”; Urupês (1918) e outras obras
de Monteiro Lobato, definidas como sendo responsáveis pelo início do
processo de releitura do Brasil; Vidas Secas (1938) de Graciliano
Ramos e Morte Vida Severina (1955) de João Cabral de Melo Neto,
consideradas como obras maduras por lançarem um olhar sobre o país por
um viés social; ou, até mesmo, A carta de Caminha (1817), primeiro texto
canonizado como fundador da nação.
De Macunaíma,
é extraída a figura identitária brasileira que, não só encontrou lugar no
discurso dominante sobre o Brasil, como
se estabeleceu no imaginário nacional, de forma naturalizada. Características
intrínsecas ao personagem que carrega o nome da rapsódia como
a preguiça, a cobiça e a propensão à sensualidade são identificadas pela
crítica literária como
marcas do brasileiro, configurando-se na sua própria identidade. A historiadora
Seixas (2003), em um estudo realizado sobre as figuras identitárias Macunaíma e
Jeca Tatu (criada em 1914, por Monteiro Lobato), enfatiza que, por meio dessas
figuras sedutoras e carregadas de afetividade, construiu-se historicamente no
imaginário coletivo a ética e a estética da submissão (involuntária). Assim
coloca:
[...] apoiando-se
em sentimentos morais específicos que, no caso, sublinham em sua maior parte
(mas não exclusivamente) a negatividade: a figura do brasileiro jecamacunaímico
articula (im)precisamente os sentimentos da desconfiança e irresponsabilidade;
da apatia, da preguiça e indiferença; da procrastinação enraizada na imagem do
Brasil-país-do-amanhã e do povo-eternamente-criança; da humildade e humilhação
e, também, os sentimentos da ingenuidade e espontaneidade, da docilidade e
sensualidade eivadas de violência; da esperteza e mentira crônicas (cultivadas
ora como meios de controle, ora como formas de resistência).
Isso se deu,
segundo a autora, porque ao criar uma imagem negativa para representar o rosto
identitário de um povo, a ponto de torná-la parte da cultura desse povo,
configurando-se na própria memória que o constitui como nação, contribui-se, ao
mesmo tempo, para o esquecimento do que realmente o constitui como uma
comunidade de sujeitos sociais e políticos, e, portanto, com participação ativa
na construção permanente dessa nação; perfazendo-se,
portanto, em:
[...] imagens não
apenas literárias e “ficcionais”, mas imagens carregadas de historicidade, que
deitaram raízes profundas na mentalidade do “brasileiro”, configurando uma
identidade nacional. Ou seja: duas representações ao mesmo tempo estéticas e
históricas, sensíveis e passionais, hoje extremamente banalizadas e
interiorizadas, cotidianamente amplificadas e recriadas pela mídia [...]
figuras que provocam adesão e muito pouca reflexão, ainda que a crítica tenha
participado de forma contundente de sua gestação e parto.
A imagem negativa
do país compartilhada pelo pensamento dominante já discutida neste texto dá
suporte para a associação que se fez de Macunaíma à imagem do brasileiro; no
entanto, a publicação de Retrato do Brasil (1928) de Paulo Prado no
mesmo ano da publicação da rapsódia contribuiu bastante para a associação entre
o protagonista da narrativa com o brasileiro.
Paulo Prado
(1869-1943), herdeiro de uma das famílias mais ilustres de São
Paulo , completou sua formação intelectual em Paris , quando ainda jovem. Rico e culto, foi
mecenas de jovens artistas que se despontavam na arte moderna. Era uma figura
influente no meio cultural e intelectual, mantendo relações estreitas com os
principais modernistas, como
Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral,
Brecheret, Villa-Lobos, dentre outros. Teve participação fundamental na Semana
de Arte Moderna de 1922, porém não foi apenas no meio cultural que marcou
presença ativa; sob a orientação do historiador Capistrano de Abreu, teve
acesso a documentos raros do período colonial, além de realizar reconhecidos
estudos sobre a história do Brasil.
Em novembro de
1928, Paulo Prado publica o ensaio “sobre a tristeza brasileira”, ensaio este
com grande repercussão no meio letrado. Apesar de receber algumas críticas, foi
bem recebido, confirmando a imagem negativa do país compartilhada pelo
pensamento dominante e naturalizada no imaginário nacional. Em carta a René
Thiollier, datada de 8 de dezembro de 1928, o historiador escreve surpreendido
pelo sucesso do livro:
Meu caro René,
O Retrato
vai de vento em popa. É incrível como aqui no Rio o livro fez sensação. Em todos os meios, mesmo os
menos literários. Disse o Garnier que num bonde, outro dia, havia três pessoas folheando o livro. Você, como
editor, tem faro. Eu é que não acreditava que pudesse interessar senão a um
limitadíssimo grupo de intelectuais [...] Saudoso abraço do seu Paulo.
O ensaio defende
a tese da “permanência da tristeza como
traço do caráter brasileiro”. Em suma, o historiador pinta um “retrato” do
brasileiro, colocando-o como o produto da união do “negro preguiçoso, do índio
lascivo e do português cobiçoso” em meio a uma natureza selvagem de clima
tropical e, portanto, exótica; fatos estes que convergiram, segundo o autor, na
formação de um “povo desregrado, preguiçoso, lascivo”, e, portanto,
melancólico; pois, de acordo com ele, foi “na luta entre esses apetites
(luxúria e cobiça) - sem outro ideal, nem religioso, nem estético, sem nenhuma
preocupação política, intelectual ou artística - que se criava pelo decurso dos
séculos uma raça triste.”
Utilizando de
fontes documentais, Paulo Prado dá ao seu discurso caráter científico, ao mesmo
tempo, que utiliza de recursos literários na composição de sua narrativa,
conferindo ao ensaio uma linguagem sedutora com forte apelo aos sentidos, “com
intenções aproximadas de provocar adesão a ideias por meio da emoção,
construída textualmente mediante regras estritamente racionais.”
O ensaio é tecido
por imagens contrastantes entre a paisagem selvagem e o homem que a ocupa, como no trecho em que
descreve a grandiosidade da natureza tropical brasileira em contradição com a
pequenez de seu povo:
[...] É a hiléia
amazônica, cobrindo de arvoredo a maior extensão de terras do universo, mais de
três milhões de quilômetros quadrados. Nela, os sentidos imperfeitos do homem
mal podem apanhar e fixar a desordem de galhos, folhagens, frutos e flores , que o envolve e submerge. [...] emaranhado hostil
de lianas, trepadeiras e orquídeas, mas na submata as urticáceas, espinhos,
samambaias, tolhem ainda mais o andar do homem, que só vence a vegetação a
golpes de facão.
Já na primeira frase do texto o historiador mostra
o desencontro que inaugura a formação do povo brasileiro:
“Numa terra radiosa vive um povo triste.” Para, ao longo de sua narrativa, na
criação de argumentos racionais, isentos de fundamentação, mas de grande apelo
emocional, pintar o “retrato do Brasil”, tendo como fundo uma paisagem exuberante em
contraste com a melancolia de um povo fadado a carregar os traços negativos das
três raças que o constituíram.
Mário de Andrade
dedica Macunaíma a Paulo Prado. A rapsódia é publicada quatro meses
antes de Retrato do Brasil, a primeira em julho e o segundo em novembro,
ambos em 1928; no entanto, Mário infere, conforme o que escreve no prefácio
escrito para uma possível 2ª edição do livro, o conhecimento, antecipado a sua
publicação, do ensaio do historiador. Assim escreve: “Paulo Prado, espírito
sutil pra quem dedico este livro, vai salientar isso numa obra de que
aproveito-me antecipadamente.”
Também se
encontra em uma resenha escrita por Oswald de Andrade sobre o Retrato do
Brasil em 6 de janeiro de 1929, duas passagens em que o poeta associa a narrativa
andradina com o ensaio de Paulo Prado:
O Retrato do
Brasil é um livro que acordou muita gente. Percebeu-se através dele que o
Brasil existe. Eu diria mesmo que o Retrato do Brasil é o
glossário histórico de Macunaíma. [...] os quadros da vida de
luxo de senhores, escravos, negros e índios, os séqüitos, as procissões, os
corpos nus sob a cambraia caseira, tudo isso bem documentado, bem pintado, bem
vivido, é um hino que fura qualquer invólucro de falso pessimismo e a gente
sente em cada página assim colorida o arrimo histórico de Macunaíma.
Não será estranho
encontrar em estudos reconhecidos sobre a narrativa andradina a aproximação do
anti-herói criado pelo modernista com as ideias proferidas por Paulo Prado
sobre o caráter identitário do brasileiro. Como ilustração de tal fato, segue abaixo um
trecho que se encontra no livro Roteiro de Macunaíma escrito por
Cavalcanti Proença em 1956:
O próprio Mário
já acentuara que não concordava com a imoralidade, porém Macunaíma teria
de concordar com o brasileiro. Aliás, é corrente na literatura dos cronistas
esse traço de luxúria nacional e que teve sistematização das mais brilhantes no
Retrato do Brasil, de Paulo Prado. São muito
comparáveis os dois livros e aquilo que é análise e dissertação no
historiador, se transforma em ação no herói da nossa gente.
Manuel Cavalcanti
Proença (1905-1966) foi o primeiro a realizar um estudo significativo sobre a
rapsódia de Mário de Andrade. Antes, só é possível encontrar alguns artigos
escritos pelo próprio autor ou por seus pares, ou seja, escritores também
modernistas que participavam do debate sobre o próprio movimento em revistas
criadas e publicadas mensalmente para a divulgação das inovações estéticas e ideias
de cada corrente literária, sem o aprofundamento de análise, reflexão ou
pesquisa sobre a obra.
Roteiro
de Macunaíma é um livro indispensável ao leitor
da rapsódia, pois, por meio de uma minuciosa pesquisa, coloca à mostra
as fontes de Macunaíma: as lendas, as superstições, as frases feitas, os
provérbios, os modismos de linguagem; enfim, o material que Mário resgatou do
folclore e utilizou na composição da rapsódia. Porém, não foi só essa a
contribuição do autor para as futuras pesquisas realizadas sobre a obra. Foi
Proença, quem primeiro valorizou os escritos deixados por Mário de Andrade
sobre a narrativa.
O livro de
Proença é dividido em três partes e um glossário com os termos e expressões
idiomáticas, o vocabulário referente à flora e à fauna, ao lendário, à
localização geográfica e informações sobre personagens citados em Macunaíma.
A primeira parte trata das escolhas estéticas de Mário para a composição da
obra, busca traçar a gênese da rapsódia; na segunda parte faz uma análise
aprofundada sobre a linguagem utilizada pelo autor, a fim de dar forma a uma
expressão essencialmente brasileira; e, por fim, na terceira parte do livro,
Proença apresenta um resumo de cada capítulo da narrativa e a respectiva
explicação dos inúmeros empréstimos tomados por Mário.
Cavalcanti
Proença busca suas fontes nos escritos deixados por Mário – os dois prefácios
escritos para a primeira edição de Macunaíma, publicados por Alceu de
Amoroso Lima ,
portanto, já interpretado por este; uma carta de Mário a Manuel Bandeira; além
de artigos publicados em que o autor se refere à rapsódia, ou outros textos
referentes à obra completa do autor. Paralelo a este trabalho, ele resgata as
fontes utilizadas pelo próprio Mário para compor o livro. Utiliza-se então, de
documentos deixados pelo autor e, por meio destes, chega a outras fontes,
seleciona-as, organizando-as de forma a dar respaldo à sua interpretação.
A linguagem e o
material utilizados por Mário de Andrade e a forma como se dá o tempo e o espaço em Macunaíma,
são pontos discutidos por Proença no enlace de seu discurso. De acordo com o
autor, o material colhido no folclore reflete uma fusão de culturas que, por
sua vez, representa o próprio Brasil originário de três etnias (indígena,
africana e europeia); o vocabulário que se mistura tem o mesmo fim, a
representação de um país multicultural e multilinguístico; entretanto, segundo
o autor, o que torna a rapsódia feliz na concretização do projeto de Mário de
narrar o Brasil é o caráter atemporal e mítico que carrega, junto com a desgeografização
do espaço, recursos estes indispensáveis para se narrar um país inarrável, ou
seja, Proença vê na falta de lógica da narrativa uma escolha estética de Mário
para expressar a própria falta de lógica do nacional:
[...] (O herói)
da capital de São Paulo foge para a Ponta do Calabouço no Rio e logo já está em
Guajará Mirim nas fronteiras de Mato Grosso e Amazonas para, em seguida, chupar
manga-jasmim em Itamaracá de Pernambuco. [...] Macunaíma chega a São Paulo
quando o Brasil é uma república, mas durante as suas correrias encontra João
Ramalho dos primórdios da fundação de Santo André da Borda do Campo, conversa
com Maria Pereira que está viva ainda hoje e amofumbada num grotão da beira do
São Francisco, desde o tempo da invasão holandesa. [...] O caráter de súmula de
caracteres é também encontrado no vocabulário que se mistura sem ordem de
procedência: palavras do Rio Grande
do Sul ao lado de regionalismos nordestinos, do Brasil Central ou da Amazônia.
Outra ideia que
tece, ao longo de seu texto, é de que Mário criou uma personagem que é a
própria representação do brasileiro. Proença sustenta seu discurso valendo-se
dos escritos deixados por Mário: o prefácio já citado e artigos em que o
modernista expressa sua opinião sobre o país, sua cultura e seus problemas, ou
seja, utiliza a fala de Mário para ilustrar sua própria interpretação sobre as
características do herói. Outras vezes, entrelaça a voz do escritor com a voz
dos intérpretes do Brasil, já mencionada neste trabalho, como no trecho presente
no capítulo “Incaracterísticas”:
[Macunaíma] vive aproveitando as ocasiões,
falta-lhe aquele espírito de trabalho que exige persistência. Sua mentalidade é
a aventura, o lucro fabuloso e fácil, a descoberta de dinheiro enterrado. [...]
E esse espírito de aventura nacional contrapondo-se ao trabalho não é
opinião de Mário de Andrade mas de sociólogos eruditos falando sério, mestres como Sérgio Buarque de
Holanda. [...] Quanto à religião Macunaíma guarda as conveniências. Mário de
Andrade já criticara a pouca disposição nacional para o catolicismo, em
comentário a trabalho de Tristão de Ataíde. [...] Assim é Macunaíma que não
respeitava cunhãs nem mulher de companheiros, mas freqüentava com aplicação
todas essas danças religiosas da tribo. [...] Era uma espécie de
católico-espírita-macumbeiro, como
haverá muitos patrícios por aí.
Se na parte I do
livro, Proença tece de forma incisiva a ideia de Macunaíma como
narrativa identitária do Brasil, não deixa de fazer implicitamente no restante
do livro, pois ao fazer uma análise minuciosa sobre a linguagem e o material
utilizado por Mário, confirma a tentativa bem sucedida deste de encontrar um
meio de expressão nacional, ilustrando, na verdade, o já dito até então.
Seguindo um
caminho diverso de Proença, Gilda de Mello e Souza (1919-2005) no ensaio O
tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma, publicado em 1979, busca
compreender Macunaíma, situando-a num universo maior: como parte da obra completa de Mário de
Andrade, incluindo seus trabalhos voltados para a música e o folclore. Dessa
forma, a autora não se volta simplesmente para
encontrar na elaboração estética da rapsódia a confirmação de um projeto político-ideológico
que a precederia.
A autora demonstra
que a obra, criada na base de inúmeros textos preexistentes, que foram, pelo
escritor, reorganizados e alterados profundamente, foi construída sob o
princípio rapsódico da suíte, mais especificamente no bailado nordestino do bumba-meu-boi, e sob o princípio da variação, presente nas
composições do cantador nordestino. Assim, explica melhor a autora:
Explodira em
Mário de Andrade de forma análoga às improvisações dos cantadores do Nordeste, como reprodução decorada
de um aprendizado longo e laborioso. Era de certo modo um ato falho,
a traição da memória do seu período nacionalista. Da mesma forma que os
cantadores populares incorporavam inconscientemente, no momento agônico de tirar
o canto, todo o aprendizado que, anos a fio, haviam acumulado, Mário de
Andrade via se projetar, como que mau grado seu, no livro que expressava a
essência de sua meditação sobre o Brasil, os índices do esforço feito para
entender o seu povo e o seu país. Macunaíma representava esse percurso
atormentado, feito de muitas dúvidas e poucas certezas.
Enquanto Proença,
por meio da organização estética de Macunaíma, constrói sua leitura, de
forma a não abalar os pilares que a sustenta no interior da literatura
brasileira; Souza, por sua vez, inicia a apresentação do seu trabalho,
remexendo nessa estrutura, aparentemente intocável. Assim, ao ressaltar a visão
desconcertada e incerta de Mário na busca de compreensão do seu país e seu
povo, a autora acaba por desestabilizar a própria ideia de processo formativo
da literatura brasileira construída por Antonio Candido, no qual o modernista
recebe destaque por ter realizado a reescrita crítica do Brasil.
O outro ponto
discutido pela autora é de que Macunaíma, o personagem, não é a representação
do brasileiro, mas da figura contraditória do homem moderno universal. Conforme
a autora:
Ao elaborar Macunaíma,
Mário de Andrade tranpôs para a literatura, de maneira intencional e crítica, o
conflito que observara com tanta acuidade na música entre a tradição europeia
herdada de Portugal e as manifestações locais, populares, indígenas ou
africanas. [...] A hipótese que levanto é que Macunaíma pode filiar-se [...]
(ao) romance arturiano, que por sua vez desenvolve um dos arquétipos mais
difundidos da literatura popular universal: a busca do objeto miraculoso.
Nesta
perspectiva, a rapsódia, explica a autora, é o resultado de “um curioso jogo
satírico que oscila de maneira ininterrupta entre a adoção do modelo europeu e
a valorização da diferença nacional.” Compondo-se por dois sistemas que se
sobrepõem: “o primeiro, ostensivo e contestador, aponta para a realidade
nacional, baseando-se no repertório variado das lendas e da cultura popular; o
segundo, subterrâneo, evoca a herança europeia e uma linhagem centenária.”
Em suma, a
autora, por um lado, utiliza o modo de composição da música popular brasileira
estudada pelo próprio escritor para explicar a composição da rapsódia e, por
outro lado, ao dialogar com o pensamento de Mário sobre o processo de formação
da música popular brasileira, põe à mostra a proximidade deste com a
interpretação, já discutida neste texto, da nação inconclusa; no entanto, não o
faz como se compartilhasse de uma ou de outra ideia, problematiza-as,
ressaltando que a rapsódia espelha mais a visão que Mário tinha do país, que o
seu retrato fiel.
Outro estudo da
narrativa andradina tido como
referência no meio literário é a Edição crítica de Macunaíma (1978)
organizado por Telê Ancona Lopez. A pesquisadora é responsável pelo
Acervo de Mário de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), além de
ser a coordenadora de várias publicações sobre o autor. Especializou-se na
literatura modernista brasileira, voltando-se, sobretudo, para as obras de
Mário de Andrade; dedicou-se à crítica textual e à crítica genética, bem como
ao estudo dos chamados gêneros de fronteira, onde estão a epistolografia, a
crônica jornalística, os diários e as memórias.
Telê Lopez, na Edição
crítica de Macunaíma, busca explicar a obra de Mário de Andrade à luz das
notas marginais (cartas, manuscritos, artigos, documentos) deixadas pelo
escritor. A autora reúne e organiza vários escritos de Mário sobre a rapsódia
encontrados em: cartas trocadas com outros escritores, editores e amigos,
geralmente, do meio intelectual e cultural do qual fazia parte; exemplares de
seus trabalhos, outras obras de sua autoria, fichas bibliográficas, obras lidas
pelo autor e, principalmente, em anotações de um esquema de Macunaíma
escrito nas páginas do segundo volume de Vom Roroima zum Orinoco de
Koch-Grünberg.
Na primeira edição, a pesquisadora a dedica à
memória de Manuel Cavalcanti Proença, reconhecendo a indispensável contribuição
de sua pesquisa. Se ele foi pioneiro a valorizar os escritos que se encontravam
à margem da rapsódia, Telê dá maior rigor metodológico a sua
pesquisa. Assim, enquanto Proença tece sua própria interpretação diante do
material que tinha em mãos, a pesquisadora reúne, seleciona, organiza e
apresenta os resultados de sua pesquisa, entregando ao leitor de sua obra a
responsabilidade parcial de leitura e, portanto, a ação interpretativa. Parcial
porque não se pode descartar a subjetividade que há na elaboração de todo e
qualquer texto e, tratando-se de uma pesquisa, das escolhas e seleções feitas
pelo pesquisador para compô-la.
Telê Lopez busca,
ao incorporar procedimentos da crítica genética, conhecer e expor Macunaíma
em suas raízes, em seu percurso, na sua pluralidade. É um livro voltado para a
crítica, oferece leituras contemporâneas da rapsódia, sem descartar as
tradicionais. Com 589 páginas, a obra organizada por Telê traz a narrativa de
Mário, o percurso e os percalços da rapsódia, interpretações da obra realizadas
por outros críticos, o dossiê da obra com os registros que recolheu do escritor
e o glossário, resultando em um material indispensável para consulta, estudo ou
análise para quem deseja uma melhor compreensão de Macunaíma.
A importância do
trabalho que a autora reuniu no livro em questão pode ser constatada pela sua
recorrência nas pesquisas acadêmicas voltadas para o estudo da rapsódia e sua
presença constante nos programas de cursos de literatura de nível superior como referência
bibliográfica. Diante dessa importância que a obra de Telê Lopez passou a
representar para o desenvolvimento de pesquisas voltadas para a narrativa
andradina, as seleções realizadas pela autora, principalmente dos estudos já
desenvolvidos por outros críticos da rapsódia também se tornaram referências
para as pesquisas, pois a autora os apresenta dando ênfase na importância de
cada um, contribuindo para a formação de outro cânone, o da fortuna crítica de Macunaíma.
Diléa Zanotto Manfio,
responsável por comentar a bibliografia voltada à Macunaíma citada na
Edição crítica, justifica que as escolhas foram feitas pelos textos considerados
mais significativos. Assim, a autora apresenta as obras: “O preparo da
bibliografia impôs uma seleção. Assim, por meio do critério seletivo, foram
escolhidas as obras e os textos mais significativos e que trouxeram alguma
contribuição para a leitura, análise e interpretação de Macunaíma o herói
sem nenhum caráter.”
Depois de Roteiro de Macunaíma (1956), as
publicações apresentadas pela autora são
datadas a partir dos anos 70, como: Intertexto: escrita rapsódica (1970) de
Mário Chamie, Morfologia de Macunaíma (1973) de Haroldo de Campos, Macunaíma:
a margem e o texto (1974) de Telê Lopez, Macunaíma: ruptura e
tradição (1977) de Suzana Camargo, Macunaíma: da literatura ao
cinema (1978) de Heloísa Buarque de Holanda, O tupi e o alaúde (1979)
de Gilda de Mello e Souza. Além de outros estudos realizados nas décadas
de 80 e 90.
Não foi somente o
aumento das publicações de pesquisas voltadas para a rapsódia que ocorreu na
década de 70, as publicações da narrativa também cresceram consideravelmente
nesta década. Se Macunaíma teve oito edições publicadas em mais de
quatro décadas, só nessa década são nove edições publicadas. Além disso, a
rapsódia será uma das poucas obras brasileiras que são transpostas tanto para o
cinema (1969) como
para o teatro (1978), alcançando repercussão internacional. A obra andradina,
passa então, definitivamente, a ser considerada a melhor prosa de ficção
modernista. Assim escreve Telê Lopez na apresentação da segunda Edição
crítica de Macunaíma, em 1997:
A rapsódia de
Mário de Andrade, hoje traduzida em cinco línguas, multiplicada na tinta, no
traço, na tela, na música, vai impondo um texto não só na literatura, como na vida brasileira.
[...] O projeto da coleção Archivos da Association Archives de la littérature
latino-américaine et des Caraibes du XX siècle, ONG da UNESCO, irmana Macunaíma
às grandes obras da América Latina.
O mesmo não
acontece, em 1928, quando Mário de Andrade publica a rapsódia, não havendo
grande repercussão. Pode-se constatar tal fato pela reduzida tiragem da
primeira edição, 800 exemplares patrocinados pelo próprio autor, e pela demora
de quase uma década para publicação da segunda edição, em 1937, numa tiragem
ainda insignificante de 1000 exemplares pela editora José Olympio64.
Além disso, a acolhida do livro pela imprensa foi mínima, demonstrando a falta
de preparo da crítica da época para compreendê-la, ficando para o próprio autor
a tarefa de divulgá-la e explicá-la, por meio das cartas
trocadas com outros escritores e intelectuais que faziam parte do seu círculo
social ou, de artigos que publicava nas revistas e jornais da época; pois a
taxa de analfabetismo no país era altíssima, contribuindo para o ínfimo público
ledor existente.
Para entender a
má recepção da rapsódia pela crítica literária brasileira na época de sua
publicação, é necessário também situá-la dentro do Modernismo como obra especificamente modernista.
Movimento literário este que só veio a começar a ser estudado, ou mesmo,
pensado a partir da década de 50, como diz Silviano Santiago: “(A) pobreza
intelectual do meio jornalístico da época, (foi) incapaz de assimilar a
revolução modernista de dentro”. Sendo possível encontrar estudos mais
consistentes sobre o movimento, apenas décadas depois de seu início, como é o
caso do estudo já citado de Antonio Candido em 1959.
Além do fato da
crítica literária voltar-se para as obras literária modernistas, buscando
construir uma leitura sobre o movimento como um
todo, surge na década de 50, os primeiros trabalhos dos poetas concretistas,
também conhecidos como neovanguardistas, como Haroldo de Campos,
Décio Pignatari e Augusto de Campos. Os três formaram o Grupo do Noigandres,
nome dado também à revista fundada pelo Grupo (1952-1962), onde divulgavam
tanto a poesia produzida, como suas ideias e inovações estéticas. O Grupo foi
formado em 1952, em São Paulo ,
dando início ao movimento da Poesia Concreta no Brasil.
Os poetas
concretistas também foram responsáveis por importantes pesquisas voltadas para
as obras literárias da vanguarda modernista, trazendo “de volta um grande
interesse crítico pela prosa de vanguarda dos anos 20. Oswald e Mário de
Andrade são (re)descobertos pelos vanguardistas, merecendo interpretações ricas
e sistemáticas por parte de entre outros Affonso Ávila (1963), Haroldo de
Campos (1973) e Mário Chamie (1972)”
Haroldo de Campos
(1929-2003), um dos fundadores do movimento da poesia concreta, na procura de
novas formas de organizar as palavras, explorando seus aspectos
gráfico-visuais, volta-se para o experimentalismo poético dos escritores
modernistas, tornando-se grande pesquisador da prosa modernista brasileira. Sob
a orientação de Antonio Candido desenvolve a tese de doutorado “Para uma teoria da prosa modernista brasileira”
que resultará na obra Morfologia de Macunaíma (1973). O autor faz uma
análise estrutural da rapsódia, utilizando-se dos pressupostos teóricos
elaborados por Vladimir Propp sobre a estrutura da fábula e, também, da
pesquisa, já comentada aqui, do Roteiro de Macunaíma de Cavalcanti
Proença.
A rapsódia, hoje,
é uma das obras literárias brasileiras mais analisadas e, consequentemente,
detentora de uma multiplicidade de enfoques sobre sua criação, desde seu
potencial artístico, sua forma de composição, sua recepção e seu valor
histórico-cultural. Porém, percebe-se, ao analisar a fortuna crítica referente
à obra, um diálogo entre as várias vozes que a compõem, contribuindo, na
verdade, para a permanência do livro no cânone de textos literários brasileiros
tidos como narrativas identitárias do país, como já discutido anteriormente.
Com o objetivo de
confrontar alguns desses discursos (ressalta-se os de relevância no meio
literário), trazendo à tona esse lugar-comum que compartilham, optou-se pela
obra de Telê Lopez, Edição Crítica de Macunaíma, principalmente por
concentrar nesta uma quantidade variada de leituras da rapsódia realizadas por
diferentes críticos; além de ser uma obra que se constituiu como o próprio
cânone da fortuna crítica de Macunaíma.
A autora reúne
vinte e seis estudos voltados para a narrativa, sendo quatorze reproduzidos
integralmente e doze apenas com um pequeno resumo comentado. Nestes, percebe-se
que, independente da metodologia e foco escolhido pelo crítico na realização de
seu estudo, a ideia sistematizada, pioneiramente, por Proença, de que Macunaíma
representa a consolidação de um projeto estético-ideológico ousado de Mário de
Andrade em narrar artisticamente o Brasil, ou constitui-se como o centro da
pesquisa, ou funciona como ponto de partida para o desenrolar da análise.
É possível
presenciar, portanto, discursos intimamente ligados a essa ideia,
confirmando-a; assim como, outros que na busca por desmistificá-la acabam por
reproduzi-la em outras palavras; ou, até mesmo, aqueles que, apesar de partir
do mesmo ponto, conseguem transcendê-la, como é o caso da leitura realizada por
Gilda de Mello e Souza em “O tupi e o alaúde”, em que a autora a relativiza,
dando margens a outras possíveis interpretações. Por isso, buscar-se-á, no
próximo capítulo, lançar um olhar mais atento a esse discurso pré-estabelecido
historicamente no intuito de ressaltar a existência de uma força implícita no
diálogo entre um emaranhado de textos responsável pela manutenção de leituras canônicas, assim como, um movimento contrário agindo
de forma lenta e silenciosa nas bases que dão sustentabilidade a este cânone em
específico, confirmando o caráter móvel do mesmo.
Pois, assim como
no mito de Narciso e Eco o olhar, num século movido pela informação em tempo
real, pelo excesso de conhecimento e pela simultaneidade dos acontecimentos, é
determinante para que se possa encontrar o que foi soterrado pelas leituras
clássicas, vistas, muitas vezes, como verdade primeira. Narciso na busca pela
imagem refletida no lago, assim como
os olhos de quem aprecia uma obra de arte, a princípio, prende-se na percepção
ilusória dos sentidos, moldada pelo balanço das águas e pelo jogo de luzes e
sombras produzido pela natureza. Debatendo-se contra si mesmo no desejo
incontrolável de deter-se naquela imagem, mergulha ao até então desconhecido.
No entanto, no encontrar o que procura, transforma-se em uma bela flor
enraizada, marcada, contraditoriamente, pela brevidade de vida. Eco, personagem
que se apaixona por Narciso e é rejeitada por este, como aquele que fala da obra de arte, procura
seu eu refletido nos olhos alheios. Enquanto o primeiro busca em si
mesmo se encontrar, Eco busca no outro a sua plenitude. Ao entregar-se
inteiramente aos olhos alheios, transforma-se em uma rocha, fadada a reproduzir
a palavra do outro em sua incompletude.
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Fonte:
Cláudia Beatriz Carneiro Araújo: “Macunaíma: Ficção – História – Cânone [A crítica da crítica]. (Dissertação de mestrado apresentada no Programa de Pós-graduação em Letras – Curso de Mestrado em Teoria Literária, no Instituto de Letras e Lingüística, Universidade Federal de Uberlândia, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria da Literatura. Orientador(a): Profª. Drª. Jacy Alves de Seixas). Uberlândia, 2012.
Fonte:
Cláudia Beatriz Carneiro Araújo: “Macunaíma: Ficção – História – Cânone [A crítica da crítica]. (Dissertação de mestrado apresentada no Programa de Pós-graduação em Letras – Curso de Mestrado em Teoria Literária, no Instituto de Letras e Lingüística, Universidade Federal de Uberlândia, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria da Literatura. Orientador(a): Profª. Drª. Jacy Alves de Seixas). Uberlândia, 2012.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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