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Sá-Carneiro: um Rito que ultrapassa o Mito
Os ritos são a interpretação
cênica e dramatizada do mito. Por meio das palavras, dos gestos, da
indumentária, dos cânticos, do ritmo e do cenário, os ritos visam fornecer ao
mito uma força viva e atualizada, como se o fato gerador do primeiro, estivesse
se repetindo naquele instante, procedendo como se fossem a externalização e a
recordação daquele, em ações coordenadas e plenas de simbolismo. Portanto, é
importante eternizar o mito, trazendo-o do passado remoto para o presente
ativo, renovando-o permanentemente. Os ritos se baseiam no fato de que os eventos
arquetípicos narrados pelo mito não estão localizados no passado. Estão vivos e
se manifestando a cada momento. Dessa forma, o rito procura estabelecer uma
conexão entre determinado evento arquetípico e sua representação cênica, que
tem por objetivo captar a energia vital e vivificante emanada por aquele
evento.
Em nosso ponto de vista, o rito
parece mais presente na obra do autor do que o mito, isto porque, para nomeá-lo
mito, na conceituação de Eduardo Lourenço, buscamos em sua obra os ritos de
passagem pelos quais as personagens, protagonistas ou coadjuvantes, no
desempenho de seus papéis, vivenciavam situações que se repetiam com uma certa
frequência no desenrolar da trama, como Claude Rivière conceituou. Notamos
também que esses eventos aconteciam com suas personagens quase que
ciclicamente, uma vez que se pode notar uma tendência para rituais que
obedeciam a uma certa regularidade na repetição, levando-nos a antecipar as
ações subsequentes. Pudemos observar que, em cada novela e mesmo nos poemas do
autor de A Confissão de Lúcio e Indícios de Oiro, há a introdução de um
elemento separado do conjunto social no grupo, abrindo ao integrado a
participação na identidade coletiva, como sugerem aqueles inúmeros ritos de
iniciação e de passagem que conformam a vida social. Um dos rituais sempre
presentes na obra é a predestinação para o suicídio, como se cada personagem
cumprisse uma saga dolorosa, que só findaria em tragédia.
Em ―Loucura‖, Raul Vilar, embora
repita ações de outros protagonistas das novelas, traz outro componente novo,
convidando Marcela a um pacto de suicídio duplo, que esta nega, levando-o mais
tarde à ideia de a desfigurar. A sua intenção era provar-lhe que era a ela que
ele amava e amaria, sem a beleza que o encantou, e não a Luísa, modelo com a
qual teve um romance, após a esposa lhe ter negado o suicídio duplo.
Já em A Confissão de Lúcio, o
próprio Lúcio resolve momentos de crise por meio de uma simbologia construída
pela sua imaginação. Não conseguindo lidar com a sua existência, cria um Outro,
o amigo Ricardo de Loureiro, com quem partilha os sentimentos e desejos. O
protagonista imagina ainda um duplo daquele, Marta, acabando por resolver
precariamente a situação conflituosa que o assomava. Em nossa análise, Marta, a
esposa misteriosa do amigo, é uma personagem que em todo o texto surge como
imagem nebulosa que paira, aparece e desaparece. Para nós, nunca se chega a
compreender se ela existiu verdadeiramente, uma vez que se evola no ar, antes
mesmo condenação de Lúcio pelo assassinato do amigo. Mas também a existência de
Ricardo de Loureiro é questionável, sobretudo quando o protagonista, ao sair da
prisão, confessa surpreendentemente, dez anos passados: «Talvez não me
acreditem. Decerto que não me acreditam. (…) que não assassinei Ricardo de
Loureiro», adensando o mistério em torno da tríade amorosa.
A relação entre rito e encenação
de um evento está também clara no poema ―Partida‖, o primeiro poema de
Dispersão. Curiosamente, o título desta composição indicia desde logo uma certa
dispersão semântica, podendo-se associar a vários sentidos. Assim, a partida
pode ser o Princípio (dar a partida em uma corrida); pode ser apenas um jogo,
uma brincadeira («lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá- Carneiro – de
inventar um poeta bucólico»889 , como dizia Pessoa em carta a Adolfo Casais
Monteiro, a propósito da gênese dos heterônimos); pode ser partida como parte,
quebrada, fragmentada (ligando-se ao título da obra); pode ser partida enquanto
despedida (talvez um anúncio de morte); e pode ser a partida do Eu, incapaz de
ser dois, como mostra o fim do poema:
(…)
Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro – é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois...
O meu destino é outro – é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois...
Sá-Carneiro inicia aqui o rito da
fragmentação e da incapacidade de se elevar e ser reconhecido, promovendo a
ação de um mito, ao manifestar os rituais necessários à ascensão desejada pelo
artista:
(…)
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.
É subir, é subir além dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.
É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e de irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.
É suscitar cores endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção de alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vi
(…)
Esta aspiração de
reconhecimento e elevação está patente em outros poemas,
como ―Quási‖, de que faremos a
análise mais à frente. Destarte, como mostra o poema ―Queda‖, e por
consequência os destinos trágicos de suas personagens narrativas, o rito encenado
(ainda que instrumento de auto-recordação ativa, tendo um poder de mobilização
de energias superior ao simples estudo intelectual ou à expressão verbalizada),
não chega para que ele encontre o reconhecimento almejado, expressando por
vezes um «auto-sarcasmo de filho-família que se sente inútil, desajeitado,
incapaz de afectos comezinhos»892. Vejamos nesse ponto os seguintes versos de
―16:
As rãs hão-de coaxar-me em
roucos tons humanos
Vomitando a minha carne que
comeram entre estrumes...
De um modo geral, todo o mito
pede a investidura do rito, ou seja, o rito é o mito em ação: o seu corpo, a
sua vivência. Mas ele é também exorcismo do mito: naquilo precisamente que este
encerra de recalcado e de interdito. Em toda a obra sá-carneiriana, percebemos
um rito que nos pareceu recuperar o movimento e o ritual de um mito. Dessa
maneira, foram atribuídas tantas comparações daquele escritor com o Mito de
Ícaro, com o Mito do Pelicano e, como desenvolveremos no item seguinte, com o
Mito indígena brasileiro do Beija-Flor. Mário de Sá-Carneiro potencializou tal
mito no ritual dramático que encenou em toda a sua escrita, ou seja, o teatro
como um rito ou ainda as ações demandadas pelos mitos ou a vivência de um mito.
Com efeito, as suas novelas apontam para um teatro-vivência, uma experiência
estética que visa envolver o espectador, comprometendo-o na
própria ação a encenar: em que o Imaginário lança âncoras sobre o público, ao
ponto de o poder fazer participar e agir por sua conta e risco. Um risco a
correr, e em que tão afoitamente se empenhou a Companhia que o pôs em cena pela
primeira vez, sem esquecer o notável esforço exigido sobretudo ao autor/ator
que o protagonizou.
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Fonte:
Vera Lúcia Viana de Macedo: "Metáforas psicanalíticas na obra de Mário de Sá-Carneiro Uma hermenêutica da morte em vida". (Dissertação de Doutoramento em Literatura Portuguesa (Investigação e Ensino) - Universidade de Coimbra Faculdade de Letras. Orientador: Professor Doutor José Carlos Seabra Pereira). Coimbra, 2011.
Fonte:
Vera Lúcia Viana de Macedo: "Metáforas psicanalíticas na obra de Mário de Sá-Carneiro Uma hermenêutica da morte em vida". (Dissertação de Doutoramento em Literatura Portuguesa (Investigação e Ensino) - Universidade de Coimbra Faculdade de Letras. Orientador: Professor Doutor José Carlos Seabra Pereira). Coimbra, 2011.
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