19/06/2015

Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, de Luís da Gama

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Disponível também em "Minhateca", no link abaixo:


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Um poeta afro-brasileiro
  
Como todo autor também é uma criação de seu leitor, quem define o precursor é o póstero. A nomeação de um precursor independe da vontade dele: é  estabelecida  por  admiradores  e  seguidores  que  enxergam,  no  modelo precursor, traços, conteúdos, motivos e elementos vários que se conjugam em um ponto de vista.

Luiz Gama não elaborou um projeto que visasse a negritude. Para alguns críticos como Lígia Ferreira isto seria anacrônico e um tanto equivocado: a negritude seria uma construção fora do tempo de Gama.

O eu poético se via como negro (“Se negro sou ou sou bode, o que importa?). E ser negro no tempo de Gama significava ser escravo ou descendente de escravo, era uma marca, um estigma, ainda muito distante da percepção futura de orgulho negro. Entanto, se o orgulho não é tão aparente e estampado, não há no uso da palavra pelo poeta nem um sentido de auto-depreciação. A ironia está presente na expressão como instrumento de cizânia, semeando a dúvida e a confusão, mais que um recurso, um sintoma da sátira. E, no mínimo, há uma percepção diferenciada sobre o termo e sobre a própria estima, um estímulo a reavaliação, pois: se somos todos bodes, mestiços, isso é uma constatação que refaz o primeiro sentido do termo bode, que se associava aos descendentes de negros; após a reavaliação do termo, “somos todos” desprestigiados ou convidados a repensar usos e sentidos? Seguem os últimos versos do poema:

...................................................................

Nos domínios de Plutão, Guarda um bode o Alcorão; Nos lundus e nas modinhas São cantadas as bodinhas: Pois se todos têm rabicho, Para que tanto capricho? Haja paz, haja alegria, Folgue e brinque a bodaria; Cesse, pois, a matinada, Porque tudo é bodarrada! –

Após os últimos versos do poema, depois da democratização do termo pelo poeta, resta uma confraternização festiva ou a constatação irônica e impotente de que “somos todos bodes”? Ou melhor, se “somos todos” mestiços, talvez o poeta quisesse perguntar como fez Carlos Drummond de Andrade: “e agora”?

Como se sabe, Bode era termo também associado à figura tradicional e amedrontadora do diabo. E um diabo coxo, em 1814, assim se definiu:

Eu sou o inventor das cavalhadas, da dança, e da comédia. Em uma palavra, eu me chamo Asmodeu, por alcunha o Diabo Coxo.

Antonio Luiz Cagnin evocou, em artigo, nomes de diversos obras e periódicos que homenagearam o diabo em seus títulos. Dentre os citados por ele constam El diablo Cojuelo (do espanhol Luis vélez de Guevara, em 1641), e Le Diable boiteaux (de Lesage, em 1772).
  
Diabo Coxo também foi nome de um periódico humorístico, criado por

Ângelo Agostini e publicado de setembro de 1864 a dezembro de 1866, com artigos, críticas e outros textos, no qual colaborou Luiz Gama. Os poemas

Novidades Antigas (em três partes apresentadas separadamente) e Meus Amores foram publicados nesse periódico no ano de 1865. Na primeira parte de
Novidades Antigas, aludiu-se ao diabo coxo, personagem da literatura e da tradição popular. Esse poema criticava tipos e situações relacionados à Guerra do

Paraguai, que acabara de eclodir, e não é absolutamente certo que tenha sido escrito por Gama, mas a autoria é a ele conferida:

Tocaste-me na tecla, meu Diabo,
Que tudo, desta vez, vai às do cabo.

No vai e vem da travessia, é certo que no poema se retorna à tradição literária ocidental e a palavra bode já vai longe, ao satírico, ao tragós, ao dionisíaco. Mas é de pensar se, aqui e acolá, não se introduz na reversão do riso a face do erê, sonsa criança que extrai da aparente melancolia o riso, como acontece na segunda parte do mesmo poema:

Imagem da tristeza eu sou valente,
Que trago o luto impresso no semblante.

De cuja tristeza, a gente pode extrair a fina ironia presente, alguns versos depois, no mesmo texto:

De jovem pudibunda casta e bela,
Por quem paixão nutri a mais singela,
E que hoje, de himeneu presa nos laços,
Entrega-se aos prazeres noutros braços,
Guardava com amor, que me mantinha.

A fagueira e mimosa cadelinha
No meu leitodormia; se velava,
A testa me lambia, a lisa calva;
Lambia-me o nariz, a boca... tudo,      
Ao ver-me ressonar tão quedo e mudo.

O derrisório e a reverência estratégica também estão presentes nos poemas de Luiz Gama fundando e afirmando uma identidade cultural. Ao resgatar a identidade quase perdida através do resgate de si mesmo e da apropriação do outro, a poética de Gama tornou-se uma poética apropriadora, uma grafofagia dos sentidos: ao rir dos costumes, ao afirmar a identidade, ao cruzar as referências, ao homenagear os clássicos, ao dessacralizá-los, ao citar a fala cotidiana, ao profanar a história, ao participar do lirismo romântico e ao expressar sentimentos através de formas tradicionais. Seguem alguns exemplos:

RISO DESSACRALIZADOR DO CLÁSSICO: Quero a glória abater de antigos vates,
Do tempo dos heróis armipotentes; Os Homeros, Camões – aurifulgentes,

Decantando os Barões da minha Pátria! (Lá Vai Verso)

RISO QUE ADOTA A IRONIA DA POESIA POPULAR: Sobre as abas sentado do Parnaso,

Pois que subir não pude ao alto cume, Qual pobre, de um Mosteiro à Portaria, De trovas fabriquei este volume.

(Prótase)
  
REFERÊNCIAS A CLICHÊS HISTÓRICOS:

Longe do mundo, das escravas turbas, Que o ouro compra de avarentos Cresos, A minh’alma aos delírios se entregava, À sombra de ilusões – de aéreos sonhos. (Junto à Estátua)

GRACEJO COM A TRADIÇÃO DE REFRÕES SATÍRICOS: Se mata, por honrar a Medicina,
Mais voraz do que uma ave de rapina;
  
Pratica no mortal cura perfeita;
Não te espantes, ò Leitor, da novidade, Pois que tudo no Brasil é raridade!

(Sortimento de Gorras para a Gente de Grande Tom)
  
USO DA AUTO-IRONIA: Que estou a dizer?!
Bradar contra o vício! Cortar nos costumes! Luiz, outro ofício...

(NO ÁLBUM do Meu Amigo J. A. da Silva Sobral)
  
USO DE ESTEREÓTIPOS POPULARES: Que o branco é mordaz

Tem sangue azulado: Se boles com ele, Estás embirado.

(NO ÁLBUM do Meu Amigo J. A. da Silva Sobral)
  
DESVIO DO SENTIDO DE IMAGENS CLÁSSICAS: Passinhos de Ninfa
Mimosa, engraçada; Parece uma fada, Nem Vênus formosa Como ele é garbosa! (O Gamenho)

CRÍTICA IRÕNICA A SENTIMENTOS CULTURAIS: Ao Parnaso! Ao Parnaso subir quero!
Sonoroso anafil empunho ousado, Para a fama elevar do sacrilégio Com meu fofo bestunto estuporado. (Arreda, Que Lá Vai um Vate)

VARIAÇÕES DE IMAGENS QUE ECOAM EM OUTROS POEMAS: Oh! Pitada milagrosa,
Pitadinha portentosa!


Eu quisera ser um Dante, Ter uma harpa ressonante, P’ra cantar a tua glória, Sobre as aras da memória. (A Pitada)

A fecunda Bretanha viu, com pasmo, Um filho dessa Roma armipotente, Que de seixos comia cinco arráteis, Um bode semi-morto, e meio-quente. (Os Glutões)

UTILIZAÇÃO DE FORMAS E IMAGENS ROMÂNTICAS: Meneia os leques

Por entre as flores, Que o ar perfumam Com seus olores.

(A Borboleta)
  
REELABORAÇÃO DE SIGNOS COMUNS AOS ROMÂNTICOS: Ergue-te, ó Laura,
Do brando leito, Dá-me em teu peito De amor gozar; Um volver d’olhos, Um beijo apenas Entre as verbenas Do teu pomar. (Laura)

RETOMADA DE QUESTÕES SUBJETIVAS COMUNS À POESIA LÍRICA: Que mundo? Que mundo é este?

Do fundo seio dest’alma Eu vejo... que fria calma Dos humanos na fereza! (Que Mundo é Este?)

INCLUSÃO DE NOVOS VALORES AO LADO DOS VALORES PREDOMINANTES:
Como era linda, meu Deus! Não tinha da neve a cor, Mas no moreno semblante Brilhavam raios de amor. (A Cativa)

PARTICIPAÇÃO NOS TEMAS COMUNS AO LIRISMO ROMÂNTICO: Oh, que saudades que eu tenho
Dos seus mimosos carinhos, Quando c’os tenros filhinhos Ela sorrindo brincava.

(Minha Mãe)

Na poesia de Luiz Gama avulta uma percepção harmônica do mundo resolvendo-se em acréscimo, e não em exclusão: a sua identidade firmou-se pela absorção do outro e não só pela confirmação de si mesmo. No poema Que Mundo é este?, por exemplo, retoma Faustino Xavier mais uma vez. Entanto, o que naquele era afirmação se transforma em indagação. Já o que era riso, dessa vez torna-se lírico:

Que mundo é este!

Coitado de quem se obriga Este mundo a descrever;

Por muito que d’ele diga, mais lhe fica por dizer; Debalde irei dissertando,
O vício atroz fulminando, Nos homens, e nas mulheres, que é no deserto bradar; Mas hoje tenho vagar:

Quem tem vagar faz colheres.

Que Mundo é Este?

Que mundo? Que mundo é este?
Do fundo seio d’est’alma
Eu vejo... que fria calma
Dos humanos na fereza!
Vejo o livre feito escravo
Pelas leis da prepotência;
Vejo a riqueza em demência
Postergando a natureza.

A poesia dele não foi tão negra quanto a de Castro Alves, outro mestiço, como afirmou Roger Bastide nem foi elaborada para revelar que nunca experimentou o amor de uma mulher branca como afirmou Raymond Sayers. Se o parâmetro para medição das relações forem ainda a biografia e os elementos de identificação na poesia, Gama foi tanto o poeta negro (e não apenas o mestiço que fala do negro) de Lá Vai Verso ( “Quero que o mundo me encarando veja,/ Um retumbante Orfeu de Carapinha”) como o poeta que demonstra em Uma Orquestra o seu interesse por imagens de culturas diversas e cruzadas através do riso:

A filha mais velha
Do tal Corifeu,
Que em flauta d’um tubo
Tem fama d’Orfeu,

Melíflua tocava
No seu canudinho,
A menos prelúdios,
Lundu miudinho.

No artigo já citado Luiz Gama: uma trajetória além de seu tempo, Luiz Silva, poeta e membro do grupo Quilombhoje, analisou o percurso revolucionário de Gama e suas repercussões na construção de uma filiação literária negra.57 Gama foi tomado como um exemplo inspirador na busca de auto-estima do negro. A sintomática troca da historicidade pelo mito apareceu de maneira muito legível a

Silva, pois a ele os fatos da vida de Gama, aqueles mesmos sobre a origem, “ficaram já comprovados pelos biógrafos”. Essa troca, em que pese a falta com a historicidade, parece resultar de uma escolha consciente. Silva pareceu compreender a potencialidade do mito. Como outros, repetirá que Gama nasceu em Salvador em junho de 1830 para, numa percepção aguçada da importância mítica, concluir:

E não morreu mais. Nem pode.

Essa visão confronta-se com o ideal harmonizador disseminado na cultura brasileira: enxergar Luiz Gama como um herói negro é bem diferente de enxergá-lo como um herói que lutou pela liberdade. A primeira opção pode ameaçar a ideologia da harmonia racial.
São palavras de Joel Rufino dos Santos:

Nosso senso comum tende a ver a história do negro brasileiro como sucessão de três grandes capítulos: aceitação da escravidão, marginalização e integração. Já o negro organizado na luta contra o racismo (movimentos negros) a vê como sucessão de rebeldia, marginalização e luta organizada contra o racismo. Como toda visão do passado, são ambas parciais e ideológicas - não se trata do passado verdadeiro (até onde se pode falar disso), mas da percepção do passado desde um certo ângulo do presente. Por outras palavras: a forma de inserção na sociedade atual condiciona a visão histórica. Tratemos, pois, para começar, dessas duas inserções: a do negro militante de movimento negro; e a do negro (ou preto) comum, advertindo desde já que a "verdade histórica" aparece tanto numa visão quanto na outra.

E, de novo, é percuciente a observação de Silva:

A visão dominante da questão racial brasileira costuma remeter a imagem do negro, tanto verbal quanto visivelmente, às senzalas, ao tronco, ao eito. Aqueles vultos nacionais que se quiseram negros, de forma conflitiva ou não, ou até mesmo camufladamente, o discurso isola, aprisionando o seu papel a uma análise passadista. O passado aprisiona-os. Quando é feita a relação com o presente, toma-se a devida precaução de obsbranquecer “aquele traço” naquilo que deixaram.(...) A desmelanização que se pretendeu e ainda se pretende, com a promoção ideológica da miscigenação, atinge a cultura e a história da descendência africana no Brasil. O afirmar-se negro de Luiz Gama não teve, portanto relevância para os homens que o estudaram, no sentido de um contraponto necessário contra a ideologia racista.

Embora seja pertinente o seu modo de entender a questão, Silva tensiona muito além do tempo de Gama a simbologia do pai e da mãe. Considerando a obsessão visível pela imagem materna, não há como sustentar que o pai representasse para Gama apenas a “ignomínia” da “repressão e do poder”.

Os poemas de Luiz Gama também representam essa relação Portugal/Brasil, colonizador/colonizado, mas revertem o aspecto de submissão sem apagar a presença do outro. Dos poemas brotam referências, mas os sentidos dos “Homeros” e de “Camões” estão revertidos a leituras particulares.

Os poemas de Luiz Gama indicaram diversos modos de reversão cultural: o seu riso é aplicado à história ocidental, e, claro, literária. Procedimento quase sempre discreto sob os temas principais. Como nos seguintes versos do poema Os glutões em que há referência à tradição clássica:

O coro das bacantes estrondosas
Em delírio bradando o – evoé,
Num canto a negra morte esborneada,
Tomando uma pitada de rapé.

E em O balão, no qual há referências a uma estirpe de escritores também

“clássicos”:
  
Requeiro oh Musa,
Do grande Urbino,
Pincel divino,
D’alto rojão;
De Tasso o gênio,
De Homero a fama,
Que o mundo aclama,
D’áurea feição.

Através dos mitos e referências, abriu-se a possibilidade de enxergar risos e gracejos reversores: não só se confirma a faceta satírica mas também apropriações plácidas e admiradoras de formas e imagens, pois olhando para dentro e para fora, na invenção e na apropriação, Luiz Gama reinventou-se e desenhou as primeiras linhas de uma nova poética, de uma poética negra, produzida na ponte entre o “Orfeu” e a “carapinha”.

Gama não expressou uma interpretação particularizada e exclusiva do homem negro, outras facetas foram expressadas. Na verdade, sequer escreveu em princípio para o homem negro. Mas, levando-se em conta que muito tempo depois foi lido e vem sendo relido por um grande número de intelectuais negros, há de ser curioso relembrar que a imagem do Orfeu foi reexplorada por Jean-Paul

Sartre tal e qual tentou defender Zilá Bérnd apenas cem anos depois.60

Em verdade, Gama entornou a visão como sujeito, e antecipou mesmo atitudes que se mostram em poetas ativistas brasileiros. Mas o inegável é que existem perspectivas sobrepostas: o negro também é objeto em Luiz Gama porque Luiz Gama foi um poeta negro e foi também um poeta romântico, satírico, do heroísmo-cômico.

Gama soube usar do material de prestígio para reinventar atitudes, defender idéias, inovar, ludibriar as normas. Adotou a simplicidade, via as formas populares de influência ibérica e africana. Como na poesia popular, nos versos de Gama percebe-se intensa variação de expressões e palavras. Assim, “cachola”, “Musa”, “tarelo”, por exemplo, são termos recorrentes em seus versos. Também expressões tais como “leve pluma empunhei, incontinenti” e “quero que...”, que definem um objetivo, reaparecem com pequenas variações: “Que cantar quero” ou “empunhando leve pluma...” são exemplos.

Nos poemas de Gama, há a presença sincrética de um corpo robustecido na declinação mitológica de mitos ocidentais e afros. O poeta escamoteia, sob aparente procedimento de perversão, outro caráter menos mordaz e, ao apropriar-se de textos, mitos e temas de tradição européia mesclados aos de sua herança cultural afro-brasileira, sugere alguns procedimentos instauradores de uma visão alternativa.

Luiz Gama buscou menos a ridicularização das normas literárias eurocêntricas e mais a valorização da identidade cultural escravizada através de apropriações, inevitáveis pela sua própria condição de negro brasileiro e leitor no contexto social do século XIX. A sua atitude comprovou a dificuldade de evitar a assimilação de valores em si mesmos diversos, mas também a possibilidade de revertê-los em favor de uma identidade crítica e consciente da possibilidade de superação dos traçados colonizadores.

Luiz Gama apresentou uma visão prismática do mundo. A sua linguagem permitiu variados olhares: Gama é o poeta satírico e é, por sua opção diferencial de assumir tanto a fascinação pela musa negra quanto pela branca, o poeta que renovou a lírica romântica, pois abriu a perspectiva para além de uma restrita visão. E houve o Gama poeta negro porque houve uma ótica negra que, se não foi a única em seus poemas, foi bastante rica e motivadora.

A idéia de que o abolicionista abandonou o poeta resultou de leitura enviesada dos poemas. Gama não escreveu uma outra “carta”, anterior à verdadeira, em seus poemas, mas parece que os versos foram lidos dessa forma. 

Será que versos como os de NO ÁLBUM do meu amigo J. A. Da Silva Sobral não sugeriram essa percepção?

E quando lá no horizonte
Despontar a Liberdade;
Rompendo as férreas algemas
E proclamando a igualdade;

Do chocho bestunto

Cabeça farei;
Mimosas cantigas
Então te darei.-

Os imaginários historiográficos, literários e da negritude conduzidos pela morfologia da narrativa auto-biográfica de Luiz Gama e pela insuficiente leitura de seus poemas grifaram o mito abolicionista e abafaram o poeta. O poeta Luiz Gama carregou a sina de ser invisível. De certo modo, foi aceito pelas camadas elitistas, mas, mesmo quando foi visto, sofreu o processo de “ver para fazer desaparecer”.

Esse mesmo processo permitiu que o poeta, estando invisível, não fosse inexistente, não fosse inteiramente esquecido. A faceta abolicionista sempre solicitou a menção ao homem das letras para legitimar-se.

A poesia de Gama, sem afrontar a opção pelo índio, pode ter se configurado numa espécie de refluxo.

Luiz Gama reverteu o mito social que exigia do negro o sentimento de proscrição como escravo ou o apagamento cultural de suas origens em troca da sua aceitação nas camadas consideradas superiores.

Defrontou é termo condizente, pois Gama não afrontou a poesia romântica: soube assimilar e soube ser assimilado pela cultura dominante (em que pese a opinião já citada de Raúl Pompéia de que Gama “soube excluir-se”), pois construiu-se à margem estando dentro. Ou melhor: participando do jogo legitimado, inseriu uma percepção da margem.

E, embora consciência negra seja uma expressão melhor aplicada no Brasil a movimentos organizados dos idos de 1970 para cá, alguns poetas do início do século XX, elaboraram, e com a leitura dos poemas de Gama, uma compreensão embrionária da importância de se retomar uma ótica negra de expressão, como fez A. Marques no poema Avante em 1924:

Avante! Homens de cor, à nossa idéia!
Formemos nosso “centro”, carinhoso,
Dar luz e instrução, é ter o gozo
De brilhante epopéia!...
  
Que importa a nossa cor, se a nossa raça,
Outrora maltratada, hoje ufanante,
Nas páginas da história que ela traça
Levanta-se possante!...

Lembremos Patrocínio, o morto ilustre,
E Gama, o grande herói, em outros tempos.
Por isso, nós devemos com igual lustre
Seguir os seus exemplos!...

Não há apenas uma postura de soerguimento “histórico” nem de um conclame à união. No poema de Marques se releva uma ótica (ainda que sem a plena consciência do “orgulho”: Que importa a nossa cor...) e uma voz (“nós”). Nesse último exemplo dado, um tipo que “recusou menos” como Patrocínio ainda podia figurar ao lado de Gama como um exemplo de “herói” negro.

E o fato é que, mesmo não tendo sido um projeto de Luiz Gama, ele foi e continua sendo reinterpretado por poetas negros contemporâneos como modelo afro de literatura porque a sua produção isto permite. Se Luiz Gama não foi apenas o poeta negro, se a sua imagem é plural, a ênfase pode recair no ele foi um poeta negro também.

Esta clareza sobre o lugar de Gama é fundamental: ele é ou não é um poeta negro? Se há dúvidas em relação ao seu atributo literário do ponto de vista de uma tradição de prestígio (para essa, Gama não é poeta, no máximo um poeta satírico de duas ou três composições), o poeta pode ter fundado uma outra via de tradição literária.

Gama não foi o primeiro negro a fazer poesia escrita no Brasil, mas foi o primeiro a expressar um outro olhar possível. É preciso também considerar que, como sujeito ou como objeto o descendente de africano, a África, o escravo e o mulato pernósticos (o homem de origem negra, resgatado enquanto imagem valorizada, em referências ou autoreferências, ou cobrado em sua origem “esquecida”) estão presentes na maior parte dos poemas constantes nas

Primeiras Trovas Burlescas do Getulino, mesmo quando não correspondem aos temas principais. Alguns exemplos:

-Um retumbante Orfeu de carapinha (Lá vai Verso) -Mimosa imprime nos meus lábios negros (Junto à Estátua)
-Em Guiné têm parentes enterrados (Sortimento de Gorras para a Gente de Grande Tom)
-Lá corre a criada,/ Mulata faceira (O Velho Namorado) 
-Pretinho da Costa não é gente aqui (NO ÁLBUM do Meu amigo J. A. da Silva Sobral)
-Certo parvo de casta amorenada (MOTE: e não pôde negar ser meu parente!) -Seja preto ou cor de giz (A pitada) 
-A menos prelúdios, Lundu miudinho (Uma Orquestra) 
-Cá do antro negregado em que eu habito (O Grande Curador do Mal das Vinhas)

Além disso, a presença de Luiz Gama foi emblemática para realçar as atitudes de outros intelectuais negros. Mesmo mais invisível que outros poetas, a mitologia em torno de Gama certamente foi decisiva para as leituras críticas acerca de Machado de Assis e Cruz e Souza, por exemplo, ambos mais ou menos contemporâneos e pouco recuperados em perspectivas críticas de afro-descendentes, o segundo mais que o primeiro.

Aliás, a invisibilidade do poeta foi estabelecida sob contradição inevitável: o grande homem tem que ser (ou parecer) único (como Cruz e Souza, o "cisne negro", Luiz Gama parece ser o único "Spartacus" negro). A invisibilidade do poeta foi marcada pela inflação do abolicionista. Mais uma vez: “fazer ver para fazer desaparecer”. Não só o poeta, mas todas as marcas marginais.

De uma forma geral, quando não de jeito concreto, o negro foi enviado de volta à África simbolicamente ou posto em "seu lugar", qualquer recanto inferiorizado ou neutralizado. Mas qual o lugar do negro excepcional? O negro brasileiro, no século XIX, foi excluído da nacionalidade brasileira e obviamente estava excluído das origens africanas. Onde instalá-lo então quando em destaque?

A imagem de Luiz Gama não foi esquecida, mas reapropriada em diversos momentos e com diversas intenções. Assim como as de outras figuras notáveis de ascendência africana, invisibilizaram-se algumas de suas qualidades e o poeta esteve durante vasto tempo legitimado somente sob um tipo de percepção dominante.

Luiz Gama é um extrato imaginário presente na sociologia, na historiografia da literatura e no pensamento da negritude. Ele está presente nesses imaginários da seguinte forma: um líder abolicionista, um poeta e herói negro. A sua obra literária alimentou essas imagens e essas imagens foram absorvidas e recriadas em outros escritos.

Mesmo compondo-se na pluralidade, a face mais dessacralizadora do poeta Luiz Gama, sofreu um processo de abafamento, de invisibilização, suplementar à mitológica figura do avatar abolicionista. Enquanto o mito do “grande cidadão” crescia, o poeta ficava cada vez menor.

Na poesia de Luiz Gama é imprescindível observar o deslocamento de olhar. Não é um olhar eurocêntrico versando sobre mestiçagem. Também não é um olhar africano. Não é o olhar branco comiserado pelas agruras negras. Não é o olhar negro apenas lacrimejando em território branco. Trata-se de um olhar plural a partir de uma perspectiva de um homem negro intelectualizado.

A poesia de Gama não se oferece como modelo único, homogêneo e apassivador das tensões. É uma visão de identidade sem pretensão de solução prototípica. E, ao mesmo tempo, é algo maior: firma a identidade pela apropriação como também reimagina e recria a própria origem (na poesia e na carta).

Na invenção e na apropriação, desenharam-se as linhas de uma poesia com inovações. Em verdade, a poesia de Gama entorna a visão como sujeito, mas é inegável que existam olhares sobrepostos. E, assim, o negro também é objeto em
Luiz Gama.

Luiz Gama escreveu de um lugar negro e escreveu de um lugar branco, escreveu de um lugar ceifado pelo dilema do mestiço. Mas Gama diferenciou-se sobremaneira de outros sujeitos pertencentes a esses lugares. O ingênuo seria pensar que houvesse apenas um sujeito negro possível. Assim, é possível avistar o poeta versando de diversos lugares possíveis a um negro à época. Muito mais, o poeta versava em um lugar aparentemente impossível: do lugar de um poeta negro.

O poeta foi escravo, sapateiro, engomador, soldado, tipógrafo e outras profissões de povo. Certamente Luiz Gama escreveu por todos esses lugares, mas não de todos esses lugares. Luiz Gama tornou-se um negro intelectual sorvido por intelectuais (negros e brancos), classificado e mitologizado.

Para Costa Andrade, a poesia revolucionária angolana, forçou-se a adotar postura semelhante: O escritor angolano, usando o português, não se alienou. Serviu-se de um instrumento do oponente contra ele. E, se servindo do que supostamente a ele se opunha, Luiz Gama, como um sátiro e como um erê, participou e se diferenciou do espetáculo abolicionista, suplementou a olvidada vertente satírica do romantismo e contrafluiu ao mesmo em vários graus.

Ao valorizar o negro enquanto sujeito, reaproveitou elementos e formas marginalizadas pela historiografia literária, inclusive as da vertente oral, e apresentou estima também por vias desprestigiadas. Em sua poesia, soube reconhecer e otimizar, nunca passivamente, as contribuições ocidentais para o desvelamento do mundo e participou, tanto quanto outros poetas negros do século XIX, das complexas engrenagens externas e até mesmo estéticas da literatura oficial.

Luiz Gama veio a instaurar determinada tendência crítica visceral, preocupada com a auto-estima, que se avistou depois na produção de outros poetas negros pósteros, e aceita por extensa linhagem no século XX; assim, estimulou a reinterpretação literária do mundo e o fortalecimento da identidade negra em produções (que podem ser estimadas sob díspares critérios).

Os seus poemas cruzaram com prosa e poemas de muitos outros, o que, em seu tempo, atentava abertamente ao estigma da originalidade, que teve como resultado o desvalor moderno conferido a obras em cruzamento, sustentada por séries de citações. Este modo de entender a arte estigmatizou determinadas obras que expunham demasiadamente as suas influências e não limavam os traços populares.

Alguns temas tradicionalmente satíricos apresentam-se nos poemas de Luiz Gama: as vestimentas femininas, o nariz, a máscara social e outros temas que podem ser encontrados nos satíricos latinos, em Gregório de Matos ou em Bernardo Guimarães. Os poemas de Luiz Gama também obedecem ao ritmo das formas poéticas populares, que geralmente sofrem leituras equivocadas a respeito de sua simplicidade.

A estratégia da reversão do imaginário colonizador pela poesia de Luiz Gama confirma ser possível reverter valores dominantes pelo gracejo, não só pelo riso derrisório e serve a verificar os comportamentos dessacralizadores em seus poemas, que remeteram, se não à formulação do conceito, à própria atitude da apropriação suplementadora.

Os graus de humor variáveis na poesia de Luiz Gama reafirmam a importância da utilização de riso e gracejo e indicam diversos modos de reversão cultural: o seu riso é aplicado à história ocidental e literária. Através dos mitos e referências, enxergam-ser risos e gracejos: não só a faceta satírica é confirmada mas também apropriações plácidas e admiradoras de formas e imagens.

Em seus poemas, há sátira. Há mesmo a paródia, o riso inamistoso, que rompe, que corta relações, que escarnece. Porém, há também o riso amistoso, aqui associado aos erês, que aproveita elementos de uma obra anterior para estabelecer uma outra obra, que algumas vezes intenta reverenciar aquela, se assemelhar a ela; mas também, intenta ser diferente buscando no outro a recomposição de sua identidade. No caso, uma composição também negra.

Sua poesia ofereceu uma visão de identidade sem a pretensão da solução prototípica absoluta e dissolvidora das tensões. A poesia de Gama é plural, multifacetada, resolve-se em acréscimo, e não em exclusão: a sua identidade poética firmou-se também pela absorção do outro e não apenas pela confirmação de si mesmo. Motivou, enquanto grafologia dos sentidos, leituras plurais. Sem ornamentos. Nela há o deslocamento do olhar dominante e também o deslocamento da visão imposta ao culturalmente subjugado.

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Fonte:
Sílvio Roberto dos Santos Oliveira: “Gamacopéia: ficções sobre o poeta Luiz Gama” (Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como Requisito Parcial para obtenção do Título de Doutor em Teoria e História Literária. Orientador: Prof. Dr. Paulo Elias Allane Franchetti -  Universidade Estadual de Campinas - Instituto de Estudos da Linguagem). Campinas, 2004.

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