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Um poeta
afro-brasileiro
Como
todo autor também é uma criação de seu leitor, quem define o precursor é
o póstero. A nomeação de um precursor independe da vontade dele: é estabelecida
por admiradores e
seguidores que enxergam,
no modelo precursor,
traços, conteúdos, motivos e elementos vários que se conjugam em um ponto de
vista.
Luiz Gama não
elaborou um projeto que visasse a negritude. Para alguns críticos como
Lígia Ferreira isto seria anacrônico e um tanto equivocado: a negritude seria
uma construção fora do tempo de Gama.
O eu poético se via
como negro (“Se negro sou ou sou bode, o que importa?). E ser negro
no tempo de Gama significava ser escravo ou descendente de escravo, era uma
marca, um estigma, ainda muito distante da percepção futura de orgulho negro.
Entanto, se o orgulho não é tão aparente e estampado, não há no uso da palavra
pelo poeta nem um sentido de auto-depreciação. A ironia está presente na
expressão como instrumento de cizânia, semeando a dúvida e a confusão,
mais que um recurso, um sintoma da sátira. E, no mínimo, há uma percepção
diferenciada sobre o termo e sobre a própria estima, um estímulo a reavaliação,
pois: se somos todos bodes, mestiços, isso é uma constatação que refaz o
primeiro sentido do termo bode, que se associava aos descendentes de negros;
após a reavaliação do termo, “somos todos” desprestigiados ou convidados
a repensar usos e sentidos? Seguem os últimos versos do poema:
...................................................................
Nos domínios de
Plutão, Guarda um bode o Alcorão; Nos lundus e nas modinhas São cantadas as
bodinhas: Pois se todos têm rabicho, Para que tanto capricho? Haja paz,
haja alegria, Folgue e brinque a bodaria; Cesse, pois, a matinada, Porque tudo
é bodarrada! –
Após os últimos
versos do poema, depois da democratização do termo pelo poeta, resta uma
confraternização festiva ou a constatação irônica e impotente de que “somos
todos bodes”? Ou melhor, se “somos todos” mestiços, talvez o poeta
quisesse perguntar como fez Carlos Drummond de Andrade: “e agora”?
Como se sabe, Bode
era termo também associado à figura tradicional e amedrontadora do diabo. E um
diabo coxo, em 1814, assim se definiu:
Eu sou o inventor das
cavalhadas, da dança, e da comédia. Em uma palavra, eu me chamo Asmodeu, por
alcunha o Diabo Coxo.
Antonio Luiz Cagnin
evocou, em artigo, nomes de diversos obras e periódicos que homenagearam o
diabo em seus títulos. Dentre os citados por ele constam El diablo Cojuelo
(do espanhol Luis vélez de Guevara, em 1641), e Le Diable boiteaux (de
Lesage, em 1772).
Diabo Coxo também foi nome de um
periódico humorístico, criado por
Ângelo Agostini e
publicado de setembro de 1864 a dezembro de 1866, com artigos, críticas e
outros textos, no qual colaborou Luiz Gama. Os poemas
Novidades Antigas (em três partes
apresentadas separadamente) e Meus Amores foram publicados nesse
periódico no ano de 1865. Na primeira parte de
Novidades Antigas, aludiu-se ao
diabo coxo, personagem da literatura e da tradição popular. Esse
poema criticava tipos e situações relacionados à Guerra do
Paraguai, que acabara
de eclodir, e não é absolutamente certo que tenha sido escrito por Gama, mas a
autoria é a ele conferida:
Tocaste-me na tecla,
meu Diabo,
Que tudo, desta vez,
vai às do cabo.
No vai e vem da
travessia, é certo que no poema se retorna à tradição literária ocidental e a
palavra bode já vai longe, ao satírico, ao tragós, ao dionisíaco.
Mas é de pensar se, aqui e acolá, não se introduz na reversão do riso a face do
erê, sonsa criança que extrai da aparente melancolia o riso, como
acontece na segunda parte do mesmo poema:
Imagem da tristeza eu
sou valente,
Que trago o luto
impresso no semblante.
De cuja tristeza, a
gente pode extrair a fina ironia presente, alguns versos depois, no mesmo
texto:
De jovem pudibunda
casta e bela,
Por quem paixão nutri
a mais singela,
E que hoje, de
himeneu presa nos laços,
Entrega-se aos
prazeres noutros braços,
Guardava com amor,
que me mantinha.
A fagueira e mimosa
cadelinha
No meu leitodormia;
se velava,
A testa me lambia, a
lisa calva;
Ao ver-me ressonar
tão quedo e mudo.
O
derrisório e a reverência estratégica também estão presentes nos poemas de Luiz
Gama fundando e afirmando uma identidade cultural. Ao resgatar a identidade
quase perdida através do resgate de si mesmo e da apropriação do outro, a
poética de Gama tornou-se uma poética apropriadora, uma grafofagia dos
sentidos: ao rir dos costumes, ao afirmar a identidade, ao cruzar as
referências, ao homenagear os clássicos, ao dessacralizá-los, ao citar a fala
cotidiana, ao profanar a história, ao participar do lirismo romântico e ao
expressar sentimentos através de formas tradicionais. Seguem alguns exemplos:
RISO
DESSACRALIZADOR DO CLÁSSICO: Quero a glória abater de antigos vates,
Do tempo dos heróis
armipotentes; Os Homeros, Camões – aurifulgentes,
Decantando os Barões
da minha Pátria! (Lá Vai Verso)
RISO
QUE ADOTA A IRONIA DA POESIA POPULAR: Sobre as abas sentado do Parnaso,
Pois que subir não
pude ao alto cume, Qual pobre, de um Mosteiro à Portaria, De trovas fabriquei
este volume.
(Prótase)
REFERÊNCIAS A CLICHÊS HISTÓRICOS:
Longe do mundo, das
escravas turbas, Que o ouro compra de avarentos Cresos, A minh’alma aos
delírios se entregava, À sombra de ilusões – de aéreos sonhos. (Junto à
Estátua)
GRACEJO COM A
TRADIÇÃO DE REFRÕES SATÍRICOS: Se mata, por honrar a Medicina,
Mais voraz do que uma
ave de rapina;
Pratica no mortal
cura perfeita;
Não te espantes, ò
Leitor, da novidade, Pois que tudo no Brasil é raridade!
(Sortimento de
Gorras para a Gente de Grande Tom)
USO DA AUTO-IRONIA:
Que estou a dizer?!
Bradar contra o vício!
Cortar nos costumes! Luiz, outro ofício...
(NO
ÁLBUM do Meu Amigo J. A. da Silva Sobral)
USO DE ESTEREÓTIPOS
POPULARES: Que o branco é mordaz
Tem sangue azulado:
Se boles com ele, Estás embirado.
(NO
ÁLBUM do Meu Amigo J. A. da Silva Sobral)
DESVIO DO SENTIDO DE
IMAGENS CLÁSSICAS: Passinhos de Ninfa
Mimosa, engraçada;
Parece uma fada, Nem Vênus formosa Como ele é garbosa! (O Gamenho)
CRÍTICA IRÕNICA A
SENTIMENTOS CULTURAIS: Ao Parnaso! Ao Parnaso subir quero!
Sonoroso anafil
empunho ousado, Para a fama elevar do sacrilégio Com meu fofo bestunto
estuporado. (Arreda, Que Lá Vai um Vate)
VARIAÇÕES DE IMAGENS
QUE ECOAM EM OUTROS POEMAS: Oh! Pitada milagrosa,
Pitadinha
portentosa!
Eu
quisera ser um Dante, Ter uma harpa ressonante, P’ra cantar a tua glória, Sobre
as aras da memória. (A Pitada)
A fecunda Bretanha
viu, com pasmo, Um filho dessa Roma armipotente, Que de seixos comia cinco
arráteis, Um bode semi-morto, e meio-quente. (Os Glutões)
UTILIZAÇÃO DE FORMAS
E IMAGENS ROMÂNTICAS: Meneia os leques
Por entre as flores,
Que o ar perfumam Com seus olores.
(A
Borboleta)
REELABORAÇÃO DE
SIGNOS COMUNS AOS ROMÂNTICOS: Ergue-te, ó Laura,
Do brando leito,
Dá-me em teu peito De amor gozar; Um volver d’olhos, Um beijo apenas Entre as
verbenas Do teu pomar. (Laura)
RETOMADA DE QUESTÕES
SUBJETIVAS COMUNS À POESIA LÍRICA: Que mundo? Que mundo é este?
Do fundo seio
dest’alma Eu vejo... que fria calma Dos humanos na fereza! (Que Mundo é
Este?)
INCLUSÃO DE NOVOS VALORES AO LADO DOS VALORES
PREDOMINANTES:
Como era linda, meu
Deus! Não tinha da neve a cor, Mas no moreno semblante Brilhavam raios de amor.
(A Cativa)
PARTICIPAÇÃO NOS
TEMAS COMUNS AO LIRISMO ROMÂNTICO: Oh, que saudades que eu tenho
Dos seus mimosos
carinhos, Quando c’os tenros filhinhos Ela sorrindo brincava.
(Minha Mãe)
Na poesia de Luiz
Gama avulta uma percepção harmônica do mundo resolvendo-se em acréscimo, e não
em exclusão: a sua identidade firmou-se pela absorção do outro e não só pela
confirmação de si mesmo. No poema Que Mundo é este?, por exemplo,
retoma Faustino Xavier mais uma vez. Entanto, o que naquele era
afirmação se transforma em indagação. Já o que era riso, dessa vez torna-se
lírico:
Que mundo é este!
Coitado de quem se
obriga Este mundo a descrever;
Por muito que d’ele
diga, mais lhe fica por dizer; Debalde irei dissertando,
O vício atroz
fulminando, Nos homens, e nas mulheres, que é no deserto bradar; Mas hoje tenho
vagar:
Quem tem vagar faz
colheres.
Que Mundo é Este?
Que mundo? Que mundo
é este?
Do fundo seio
d’est’alma
Eu vejo... que fria
calma
Dos humanos na
fereza!
Vejo o livre feito
escravo
Pelas leis da
prepotência;
Vejo a riqueza em
demência
Postergando a
natureza.
A poesia dele não foi
tão negra quanto a de Castro Alves, outro mestiço, como afirmou Roger
Bastide nem foi elaborada para revelar que nunca experimentou o amor de uma mulher
branca como afirmou Raymond Sayers. Se o parâmetro para medição das relações
forem ainda a biografia e os elementos de identificação na poesia, Gama foi
tanto o poeta negro (e não apenas o mestiço que fala do negro) de Lá Vai
Verso ( “Quero que o mundo me encarando veja,/ Um retumbante Orfeu de
Carapinha”) como o poeta que demonstra em Uma Orquestra o seu
interesse por imagens de culturas diversas e cruzadas através do riso:
A filha mais velha
Do tal Corifeu,
Que em flauta d’um
tubo
Tem fama d’Orfeu,
Melíflua tocava
No seu canudinho,
A menos prelúdios,
Lundu miudinho.
No artigo já citado Luiz
Gama: uma trajetória além de seu tempo, Luiz Silva, poeta e membro do grupo
Quilombhoje, analisou o percurso revolucionário de Gama e suas repercussões na
construção de uma filiação literária negra.57 Gama foi tomado como um exemplo
inspirador na busca de auto-estima do negro. A sintomática troca da
historicidade pelo mito apareceu de maneira muito legível a
Silva, pois a ele os
fatos da vida de Gama, aqueles mesmos sobre a origem, “ficaram já comprovados
pelos biógrafos”. Essa troca, em que pese a falta com a historicidade, parece
resultar de uma escolha consciente. Silva pareceu compreender a potencialidade
do mito. Como outros, repetirá que Gama nasceu em Salvador em junho de 1830
para, numa percepção aguçada da importância mítica, concluir:
E não morreu mais.
Nem pode.
Essa visão
confronta-se com o ideal harmonizador disseminado na cultura brasileira:
enxergar Luiz Gama como um herói negro é bem diferente de enxergá-lo como um
herói que lutou pela liberdade. A primeira opção pode ameaçar a ideologia da
harmonia racial.
São palavras de Joel
Rufino dos Santos:
Nosso senso comum tende a ver a história do negro
brasileiro como sucessão de três grandes capítulos: aceitação da escravidão,
marginalização e integração. Já o negro organizado na luta contra o racismo
(movimentos negros) a vê como sucessão de rebeldia, marginalização e luta
organizada contra o racismo. Como toda visão do passado, são ambas parciais e
ideológicas - não se trata do passado verdadeiro (até onde se pode falar
disso), mas da percepção do passado desde um certo ângulo do presente. Por
outras palavras: a forma de inserção na sociedade atual condiciona a visão
histórica. Tratemos, pois, para começar, dessas duas inserções: a do negro
militante de movimento negro; e a do negro (ou preto) comum, advertindo desde
já que a "verdade histórica" aparece tanto numa visão quanto na
outra.
E, de novo, é
percuciente a observação de Silva:
A visão dominante da questão racial brasileira costuma
remeter a imagem do negro, tanto verbal quanto visivelmente, às senzalas, ao
tronco, ao eito. Aqueles vultos nacionais que se quiseram negros, de forma conflitiva ou não, ou até mesmo
camufladamente, o discurso isola, aprisionando o seu papel a uma análise
passadista. O passado aprisiona-os. Quando é feita a relação com o presente,
toma-se a devida precaução de obsbranquecer
“aquele traço” naquilo que deixaram.(...) A desmelanização que se pretendeu e
ainda se pretende, com a promoção ideológica da miscigenação, atinge a cultura
e a história da descendência africana no Brasil. O afirmar-se negro de Luiz
Gama não teve, portanto relevância para os homens que o estudaram, no sentido
de um contraponto necessário contra a ideologia racista.
Embora seja
pertinente o seu modo de entender a questão, Silva tensiona muito além do tempo
de Gama a simbologia do pai e da mãe. Considerando a obsessão visível pela
imagem materna, não há como sustentar que o pai representasse para Gama apenas
a “ignomínia” da “repressão e do poder”.
Os poemas de Luiz
Gama também representam essa relação Portugal/Brasil, colonizador/colonizado,
mas revertem o aspecto de submissão sem apagar a presença do outro. Dos poemas
brotam referências, mas os sentidos dos “Homeros” e de “Camões” estão
revertidos a leituras particulares.
Os poemas de Luiz
Gama indicaram diversos modos de reversão cultural: o seu riso é aplicado à
história ocidental, e, claro, literária. Procedimento quase sempre discreto sob
os temas principais. Como nos seguintes versos do poema Os glutões em que
há referência à tradição clássica:
O coro das bacantes
estrondosas
Em delírio bradando o
– evoé,
Num canto a negra
morte esborneada,
E em O balão,
no qual há referências a uma estirpe de escritores também
“clássicos”:
Requeiro oh Musa,
Do grande Urbino,
Pincel divino,
D’alto rojão;
De Tasso o gênio,
De Homero a fama,
Que o mundo aclama,
D’áurea feição.
Através dos mitos e
referências, abriu-se a possibilidade de enxergar risos e gracejos reversores:
não só se confirma a faceta satírica mas também apropriações plácidas e
admiradoras de formas e imagens, pois olhando para dentro e para fora, na
invenção e na apropriação, Luiz Gama reinventou-se e desenhou as primeiras
linhas de uma nova poética, de uma poética negra, produzida na ponte entre o “Orfeu”
e a “carapinha”.
Gama não expressou
uma interpretação particularizada e exclusiva do homem negro, outras facetas
foram expressadas. Na verdade, sequer escreveu em princípio para o homem negro.
Mas, levando-se em conta que muito tempo depois foi lido e vem sendo relido por
um grande número de intelectuais negros, há de ser curioso relembrar que a
imagem do Orfeu foi reexplorada por Jean-Paul
Sartre tal e qual
tentou defender Zilá Bérnd apenas cem anos depois.60
Em verdade, Gama
entornou a visão como sujeito, e antecipou mesmo atitudes que se mostram em
poetas ativistas brasileiros. Mas o inegável é que existem perspectivas
sobrepostas: o negro também é objeto em Luiz Gama porque Luiz Gama foi um poeta
negro e foi também um poeta romântico, satírico, do heroísmo-cômico.
Gama soube usar do material
de prestígio para reinventar atitudes, defender idéias, inovar, ludibriar as
normas. Adotou a simplicidade, via as formas populares de influência ibérica e
africana. Como na poesia popular, nos versos de Gama percebe-se intensa
variação de expressões e palavras. Assim, “cachola”, “Musa”, “tarelo”, por
exemplo, são termos recorrentes em seus versos. Também expressões tais como
“leve pluma empunhei, incontinenti” e “quero que...”, que definem um objetivo,
reaparecem com pequenas variações: “Que cantar quero” ou “empunhando leve
pluma...” são exemplos.
Nos poemas de Gama,
há a presença sincrética de um corpo robustecido na declinação mitológica de
mitos ocidentais e afros. O poeta escamoteia, sob aparente procedimento de
perversão, outro caráter menos mordaz e, ao apropriar-se de textos, mitos e
temas de tradição européia mesclados aos de sua herança cultural
afro-brasileira, sugere alguns procedimentos instauradores de uma visão
alternativa.
Luiz Gama buscou
menos a ridicularização das normas literárias eurocêntricas e mais a
valorização da identidade cultural escravizada através de apropriações,
inevitáveis pela sua própria condição de negro brasileiro e leitor no contexto
social do século XIX. A sua atitude comprovou a dificuldade de evitar a assimilação
de valores em si mesmos diversos, mas também a possibilidade de revertê-los em
favor de uma identidade crítica e consciente da possibilidade de superação dos
traçados colonizadores.
Luiz Gama apresentou
uma visão prismática do mundo. A sua linguagem permitiu variados olhares: Gama
é o poeta satírico e é, por sua opção diferencial de assumir tanto a fascinação
pela musa negra quanto pela branca, o poeta que renovou a lírica romântica,
pois abriu a perspectiva para além de uma restrita visão. E houve o Gama poeta
negro porque houve uma ótica negra que, se não foi a única em seus poemas, foi
bastante rica e motivadora.
A idéia de que o
abolicionista abandonou o poeta resultou de leitura enviesada dos poemas. Gama
não escreveu uma outra “carta”, anterior à verdadeira, em seus poemas, mas
parece que os versos foram lidos dessa forma.
Será que versos como
os de NO ÁLBUM do meu amigo J. A. Da Silva Sobral não sugeriram essa
percepção?
E quando lá no
horizonte
Despontar a
Liberdade;
Rompendo as férreas
algemas
E proclamando a
igualdade;
Do chocho bestunto
Cabeça farei;
Mimosas cantigas
Então te darei.-
Os imaginários
historiográficos, literários e da negritude conduzidos pela morfologia da
narrativa auto-biográfica de Luiz Gama e pela insuficiente leitura de seus
poemas grifaram o mito abolicionista e abafaram o poeta. O poeta Luiz Gama carregou a sina
de ser invisível. De certo modo, foi aceito pelas camadas elitistas, mas, mesmo
quando foi visto, sofreu o processo de “ver para fazer desaparecer”.
Esse mesmo processo
permitiu que o poeta, estando invisível, não fosse inexistente, não
fosse inteiramente esquecido. A faceta abolicionista sempre solicitou a menção
ao homem das letras para legitimar-se.
A poesia de Gama, sem
afrontar a opção pelo índio, pode ter se configurado numa espécie de refluxo.
Luiz Gama reverteu o
mito social que exigia do negro o sentimento de proscrição como escravo ou o
apagamento cultural de suas origens em troca da sua aceitação nas camadas
consideradas superiores.
Defrontou é termo condizente,
pois Gama não afrontou a poesia romântica: soube assimilar e
soube ser assimilado pela cultura dominante (em que pese a opinião já citada de
Raúl Pompéia de que Gama “soube excluir-se”), pois construiu-se à margem
estando dentro. Ou melhor: participando do jogo legitimado, inseriu uma
percepção da margem.
E, embora consciência
negra seja uma expressão melhor aplicada no Brasil a movimentos organizados
dos idos de 1970 para cá, alguns poetas do início do século XX, elaboraram, e
com a leitura dos poemas de Gama, uma compreensão embrionária da importância de
se retomar uma ótica negra de expressão, como fez A. Marques no poema Avante
em 1924:
Avante! Homens de
cor, à nossa idéia!
Formemos nosso
“centro”, carinhoso,
Dar luz e instrução,
é ter o gozo
De brilhante
epopéia!...
Que importa a nossa
cor, se a nossa raça,
Outrora maltratada,
hoje ufanante,
Nas páginas da
história que ela traça
Levanta-se
possante!...
Lembremos Patrocínio,
o morto ilustre,
E Gama, o grande
herói, em outros tempos.
Por isso, nós devemos
com igual lustre
Seguir os seus
exemplos!...
Não há apenas uma
postura de soerguimento “histórico” nem de um conclame à união. No poema de
Marques se releva uma ótica (ainda que sem a plena consciência do “orgulho”: Que
importa a nossa cor...) e uma voz (“nós”). Nesse último exemplo dado, um
tipo que “recusou menos” como Patrocínio ainda podia figurar ao lado de Gama
como um exemplo de “herói” negro.
E o fato é que, mesmo
não tendo sido um projeto de Luiz Gama, ele foi e continua sendo reinterpretado
por poetas negros contemporâneos como modelo afro de literatura porque a sua
produção isto permite. Se Luiz Gama não foi apenas o poeta negro, se a sua
imagem é plural, a ênfase pode recair no ele foi um poeta negro
também.
Esta clareza sobre o
lugar de Gama é fundamental: ele é ou não é um poeta negro? Se há dúvidas em
relação ao seu atributo literário do ponto de vista de uma tradição de
prestígio (para essa, Gama não é poeta, no máximo um poeta satírico de duas ou
três composições), o poeta pode ter fundado uma outra via de tradição
literária.
Gama não foi o
primeiro negro a fazer poesia escrita no Brasil, mas foi o primeiro a
expressar um outro olhar possível. É preciso também considerar que, como sujeito
ou como objeto o descendente de africano, a África, o escravo e o mulato
pernósticos (o homem de origem negra, resgatado enquanto imagem valorizada, em
referências ou autoreferências, ou cobrado em sua origem “esquecida”) estão
presentes na maior parte dos poemas constantes nas
Primeiras Trovas
Burlescas do Getulino,
mesmo quando não correspondem aos temas principais. Alguns exemplos:
-Um retumbante Orfeu
de carapinha (Lá vai Verso) -Mimosa imprime nos meus lábios negros (Junto
à Estátua)
-Em Guiné têm
parentes enterrados (Sortimento de Gorras para a Gente de Grande Tom)
-Lá corre a criada,/
Mulata faceira (O Velho Namorado)
-Pretinho da Costa
não é gente aqui (NO ÁLBUM do Meu amigo J. A. da Silva Sobral)
-Certo parvo de casta
amorenada (MOTE: e não pôde negar ser meu parente!) -Seja preto
ou cor de giz (A pitada)
-A menos prelúdios,
Lundu miudinho (Uma Orquestra)
-Cá do antro
negregado em que eu habito (O Grande Curador do Mal das Vinhas)
Além disso, a
presença de Luiz Gama foi emblemática para realçar as atitudes de outros
intelectuais negros. Mesmo mais invisível que outros poetas, a mitologia
em torno de Gama certamente foi decisiva para as leituras críticas acerca de
Machado de Assis e Cruz e Souza, por exemplo, ambos mais ou menos contemporâneos
e pouco recuperados em perspectivas críticas de afro-descendentes, o segundo
mais que o primeiro.
Aliás, a
invisibilidade do poeta foi estabelecida sob contradição inevitável: o grande
homem tem que ser (ou parecer) único (como Cruz e Souza, o "cisne
negro", Luiz Gama parece ser o único "Spartacus" negro). A
invisibilidade do poeta foi marcada pela inflação do abolicionista. Mais uma
vez: “fazer ver para fazer desaparecer”. Não só o poeta, mas todas as marcas
marginais.
De uma forma geral,
quando não de jeito concreto, o negro foi enviado de volta à África
simbolicamente ou posto em "seu lugar", qualquer recanto
inferiorizado ou neutralizado. Mas qual o lugar do negro excepcional? O negro
brasileiro, no século XIX, foi excluído da nacionalidade brasileira e obviamente
estava excluído das origens africanas. Onde instalá-lo então quando em
destaque?
A imagem de Luiz Gama
não foi esquecida, mas reapropriada em diversos momentos e com diversas
intenções. Assim como as de outras figuras notáveis de ascendência africana,
invisibilizaram-se algumas de suas qualidades e o poeta esteve durante vasto
tempo legitimado somente sob um tipo de percepção dominante.
Luiz Gama é um
extrato imaginário presente na sociologia, na historiografia da literatura e no
pensamento da negritude. Ele está presente nesses imaginários da seguinte
forma: um líder abolicionista, um poeta e herói negro. A sua obra literária
alimentou essas imagens e essas imagens foram absorvidas e recriadas em outros
escritos.
Mesmo compondo-se na
pluralidade, a face mais dessacralizadora do poeta Luiz Gama, sofreu um
processo de abafamento, de invisibilização, suplementar à mitológica figura do
avatar abolicionista. Enquanto o mito do “grande cidadão” crescia, o poeta
ficava cada vez menor.
Na poesia de Luiz
Gama é imprescindível observar o deslocamento de olhar. Não é um olhar
eurocêntrico versando sobre mestiçagem. Também não é um olhar africano. Não é o
olhar branco comiserado pelas agruras negras. Não é o olhar negro apenas
lacrimejando em território branco. Trata-se de um olhar plural a partir de uma
perspectiva de um homem negro intelectualizado.
A poesia de Gama não
se oferece como modelo único, homogêneo e apassivador das tensões. É uma visão
de identidade sem pretensão de solução prototípica. E, ao mesmo tempo, é algo
maior: firma a identidade pela apropriação como também reimagina e recria a
própria origem (na poesia e na carta).
Na invenção e na
apropriação, desenharam-se as linhas de uma poesia com inovações. Em verdade, a
poesia de Gama entorna a visão como sujeito, mas é inegável que existam olhares
sobrepostos. E, assim, o negro também é objeto em
Luiz Gama.
Luiz Gama escreveu de
um lugar negro e escreveu de um lugar branco, escreveu de um lugar ceifado pelo
dilema do mestiço. Mas Gama diferenciou-se sobremaneira de outros sujeitos
pertencentes a esses lugares. O ingênuo seria pensar que houvesse apenas um
sujeito negro possível. Assim, é possível avistar o poeta versando de diversos
lugares possíveis a um negro à época. Muito mais, o poeta versava em um lugar
aparentemente impossível: do lugar de um poeta negro.
O poeta foi escravo,
sapateiro, engomador, soldado, tipógrafo e outras profissões de povo.
Certamente Luiz Gama escreveu por todos esses lugares, mas não de todos esses
lugares. Luiz Gama tornou-se um negro intelectual sorvido por intelectuais
(negros e brancos), classificado e mitologizado.
Para Costa Andrade, a
poesia revolucionária angolana, forçou-se a adotar postura semelhante: O
escritor angolano, usando o português, não se alienou. Serviu-se de um
instrumento do oponente contra ele. E, se servindo do que supostamente a ele se
opunha, Luiz Gama, como um sátiro e como um erê, participou e se diferenciou do
espetáculo abolicionista, suplementou a olvidada vertente satírica do
romantismo e contrafluiu ao mesmo em vários graus.
Ao valorizar o negro
enquanto sujeito, reaproveitou elementos e formas marginalizadas pela
historiografia literária, inclusive as da vertente oral, e apresentou estima
também por vias desprestigiadas. Em sua poesia, soube reconhecer e otimizar,
nunca passivamente, as contribuições ocidentais para o desvelamento do mundo e
participou, tanto quanto outros poetas negros do século XIX, das complexas
engrenagens externas e até mesmo estéticas da literatura oficial.
Luiz Gama veio a instaurar
determinada tendência crítica visceral, preocupada com a auto-estima, que se
avistou depois na produção de outros poetas negros pósteros, e aceita por
extensa linhagem no século XX; assim, estimulou a reinterpretação literária do
mundo e o fortalecimento da identidade negra em produções (que podem ser
estimadas sob díspares critérios).
Os seus poemas
cruzaram com prosa e poemas de muitos outros, o que, em seu tempo, atentava
abertamente ao estigma da originalidade, que teve como resultado o desvalor moderno
conferido a obras em cruzamento, sustentada por séries de citações. Este modo
de entender a arte estigmatizou determinadas obras que expunham demasiadamente
as suas influências e não limavam os traços populares.
Alguns temas
tradicionalmente satíricos apresentam-se nos poemas de Luiz Gama: as
vestimentas femininas, o nariz, a máscara social e outros temas que podem ser
encontrados nos satíricos latinos, em Gregório de Matos ou em Bernardo
Guimarães. Os poemas de Luiz Gama também obedecem ao ritmo das formas poéticas
populares, que geralmente sofrem leituras equivocadas a respeito de sua
simplicidade.
A estratégia da
reversão do imaginário colonizador pela poesia de Luiz Gama confirma ser
possível reverter valores dominantes pelo gracejo, não só pelo riso
derrisório e serve a verificar os comportamentos dessacralizadores em seus
poemas, que remeteram, se não à formulação do conceito, à própria atitude da apropriação
suplementadora.
Os graus de humor
variáveis na poesia de Luiz Gama reafirmam a importância da utilização de riso
e gracejo e indicam diversos modos de reversão cultural: o seu riso é aplicado
à história ocidental e literária. Através dos mitos e referências, enxergam-ser
risos e gracejos: não só a faceta satírica é confirmada mas também apropriações
plácidas e admiradoras de formas e imagens.
Em seus poemas, há
sátira. Há mesmo a paródia, o riso inamistoso, que rompe, que corta relações,
que escarnece. Porém, há também o riso amistoso, aqui associado aos erês, que
aproveita elementos de uma obra anterior para estabelecer uma outra obra, que
algumas vezes intenta reverenciar aquela, se assemelhar a ela; mas também,
intenta ser diferente buscando no outro a recomposição de sua identidade. No
caso, uma composição também negra.
Sua poesia ofereceu
uma visão de identidade sem a pretensão da solução prototípica absoluta e
dissolvidora das tensões. A poesia de Gama é plural, multifacetada, resolve-se
em acréscimo, e não em exclusão: a sua identidade poética firmou-se também pela
absorção do outro e não apenas pela confirmação de si mesmo. Motivou, enquanto
grafologia dos sentidos, leituras plurais. Sem ornamentos. Nela há o
deslocamento do olhar dominante e também o deslocamento da visão imposta ao culturalmente
subjugado.
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Fonte:
Fonte:
Sílvio Roberto dos Santos
Oliveira: “Gamacopéia: ficções sobre o poeta Luiz Gama” (Tese de Doutorado
apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Estudos da Linguagem
da Universidade Estadual de Campinas como Requisito Parcial para obtenção do
Título de Doutor em Teoria e História Literária. Orientador: Prof. Dr. Paulo
Elias Allane Franchetti - Universidade
Estadual de Campinas - Instituto de Estudos da Linguagem). Campinas, 2004.
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