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Luís Guimarães por Fialho de Almeida
Os poetas propagandistas,
cantando a Justiça, derruindo velhas fórmulas políticas e religiosas, fazendo a
apoteose da oficina e da blusa, ou conclamando, em rutilantes alexandrinos, as
invenções, descobertas e sínteses da ciência e da indústria, são prosadores
castrando em rimas imprevistas ou sonoras os períodos que vão escrevendo. Como
agente de propaganda, a poesia é o mais frouxo dos veículos literários; e com a
sua organização feminil, os seus delicados moldes, o artifício das rimas e o
mosaico das imagens, ela amesquinha a magnitude e o ímpeto dos altos problemas
que tem em mira vulgarizar. Ela vive do meio sonho vago, que deixa o poeta ir
idealizando o seu mundo em doces e
flutuantes quimeras. Nas manifestações do belo, toma por lei uma relação
precisa e justa entre as concepções individuais e o elemento tradicional.
Estabelece as correlações íntimas, as misteriosas afinidades da religião com o
amor, e do amor com a família e com a pátria. Todas as crenças e todas as
abnegações que a mocidade irradia sem lhes indagar da lógica dirigente, ou
querer justificar as explosões cavalheirescas, constituem os seus diletos
subsídios e fontes de inspiração profunda.
Tais aspirações são já uma poesia
instintiva, esparsa por todos os espíritos moços, mas incapaz de cristalizar
por si, num cântico dotado de formas literárias. Mas eis que o poeta chega e dá
corpo a estes sons errantes, a estes vortilhões da imaginação coletiva, a estas
tendências sonoras da alma, sublimada por aspirações de mais generosa altura;
chega e dá cor, acento, ironia e vida aos trechos anonimamente sentidos e
colaborados por uma raça, ou simplesmente por uma geração.
Tal é na poesia romântica o papel
de Byron, de Schiller, de Madame de Staël, Thomaz Moore, Chateaubriand e Jean
Paul, interpretando a inquietação atormentada, a febre delirante, e o frenético
amor da sociedade do seu tempo. O público vem então maravilhosamente disposto a
compreender essa poesia que ele propulsionou sem assinar e que reflete o seu
momento psicológico, ao tempo que lhe está fortalecendo as tendências e
lisonjeando as necessidades e as predileções. Idade de ouro para os poetas,
aquela em que o público é inteiramente o contemporâneo da poesia vigente, e
onde o sentimento individual do artista tem pouco a fazer numa obra tão
intimamente enraizado no coração da turba[1].
Este estado d’inteira adaptação
entre a obra dum espírito e o espírito duma época dá-se quando a humanidade
atravessa estados de incerteza ou de angústia, ou às horas de transição em que
uma idade está morta, quando ainda outra mal vem alvorecendo. O poeta faz-se
então o apóstolo da ansiedade geral, o profeta da aurora que nem boceja sequer
ainda entre os escombros. É Leopardi em Recanati, aos vinte anos, pondo a sua
tristeza de raquítico em versos febris e límpidos, e elevando-se por ela à
expressão mais patética da dor. É Herculano em Plymouth, chorando as saudades
da pátria crucificada ao miguelismo, ou inspirando as suas elegias nos
conflitos liberais de 32 e 34. É Byron tentando esculpir, na selvageria das
suas figuras, a revolta do gênio contra os pequenos moldes da sociedade
artificial que lhe reprovava as excentricidades. Walter Scott, o clarificador da história, segundo Hazlitt,
renovando o interesse histórico na literatura escocesa por um gênio de narrador
sem rival. E Baudelaire, Musset, Rollinat e Richepin, exprimindo a saciedade
cética e a inquietação nevrótica e doentia das nossas civilizações atuais.
Porém, a crise passa, resolveu-se
a dificuldade política, o cadafalso ou o exílio levaram o tirano que motivara a
revolução. Na sua labutação incansável de mineiro, a humanidade depara com
novos filões vitais que lhe avigorentam a trama, sacudindo-lhe a tristeza
enervante. Uma outra era sorri. Aquele estado do ser moral coletivo evaporou-se
e foi curado. E eis que a musa desflorada emurchece da frescura radiosa que
primeiro fizera chispar cintilas nos corações opressos! Por forma que se
escreverá desta poesia o que Guy Patin já dissera de certos remédios em moda —
que era i-los tomando enquanto curavam. De fato, quem compreende hoje a musa
católica de Chateaubriand? Onde reboa um eco sequer da poesia jacobita de Diana
de Vernon? Que heróis de Byron não fariam hoje rir François Coppée e Catulle
Mendès? O que há de atualidade no amor heroico de D. Carlos, e no amor cavalheiresco de Aben-Hamet? Como sentir pulsar uma alma, mesmo, na Idade Média de Victor Hugo? Esses
grandes bocados são vozes sem eco na alma moderna, alguns já tão frios que
parecem só feitos de ênfase, tão longe vamos do pensamento que os ditou. Não
correram muitos anos desde que Napoleão III desceu à história, e já declinam os
Châtiments, como se a mediocridade
política da figura que os inspirou descorar pudesse a poesia demolidora do
nosso velho colosso romântico. A humanidade não quer dos pequenos interesses
circunscritos aos pequenos grupos: por isso depressa passa do gosto essa poesia
de episódios locais. Entanto ela tem as suas grandes paixões indomáveis, eternamente
vivas, sangrentas e fecundas, as suas grandes cóleras, as suas soberbas forças
heroicas; e a musa que as vibra é a única que nunca morre, pois ela presta a
sua voz à alma mesma da humanidade. Sem arcabouço para suportar a formidável
massa dos assuntos contemporâneos, secos, positivos, que não deixam margem a
voos de imaginação, e dos quais só a monografia, o tratado de ciência, o
panfleto, o romance de análise etc. podem dar conta e fazer correr mundo; a
poesia, como vulgarizadora, carece de fôlego, e, tentada há pouco ainda, está
agonizante, ou morreu à nascença.
Os assuntos práticos de que se
convulsiona a moderna vida, esses vastos problemas que fecundam as riquezas e
centuplicam as ideias, criando necessidades, gostos, aptidões e pontos de vista,
sobre que logo outras indústrias e interesses vão polarizar-se, anquilosar-se,
e contundir-se — determinam no mundo uma circulação tão brusca e constante,
prendem o homem em tal gargalheira de atividades, que o seu coração, tornado
egoísta pela fadiga, perde a impressionabilidade de sentir e traduzir aquelas
emoções líricas e finas, que em outras juvenis idades eram a paixão dos
espíritos nobres, e entretinham a vida sóbria, tudo explicando pelo sentimento,
exprimindo tudo pelo símbolo, e pondo na palestra e na escrita, entre imagens e
juízos simples, essa gotejante alegria solar, que nas zonas temperadas faz tão
exuberantes as culturas da terra e as manifestações da inteligência. Em nossos
dias o espírito positivo matou o sentimento poético, que o exclusivismo
individualista está acabando de matar. A análise encaneceu a juventude do nosso
coração, e já não vamos com túnicas de linho branco, coroados de flores, saudar
a primavera entre evoés pagãos, ébrios do amor panteísta que se nos entornava
da alma em golfões, como um Chipre raro, das belas ânforas de ágata,
vermiculadas de oiro. O amor, quando não seja um cálculo, transfaz-se numa
extravagância dos sentidos, que falsearam a impressão para que tinham sido
criados. Quebrou-se o elo natural entre a turba e o poeta. Cada lira restringe
a sua glória a pequenos clubs de
crentes maníacos, que passam a vida imobilizados no êxtase de aberrações postas
em rima, aberrações que, pela estranheza, dir-se-iam pescadas no álcool dos
museus de teratologia hospitalar. Desnecessário exemplificar. É ler a mor parte
dos versos célebres dos nossos dias, as Odes
Funambulescas de Bainville, as Chansons
des Gueux e as Blasphèmes de
Richepin, as Flores do Mal de
Baudelaire, as Nevroses de Rollinat, e todos os volumes que mais ou menos
gravitam à volta destes. Jamais o metro foi tão rico, a rima tão hilariante, a
língua tão plástica, e tão embelezada a imagem, duma cinzelura vaporosa! Mas o
talento, rebuscando os efeitos de arte mais excêntricos, e querendo ferir por
uma originalidade arquidoida, estrangula a voz dos sentimentos naturais, turba
a grande veia límpida da inspiração, falseia a sinceridade da alma que se
queixa ou que exulta, mira efeitos teatrais na emoção que explora, caindo numa
sorte de monomania bizarra. Tudo neste certâmen condiz ao fim: a rima procurada
entre palavras obsoletas, as imagens colhidas entre os fenômenos mais
repelentes, mais extravagantes, mais recônditos, e o tema inicial quase sempre
talhado em podridões, misérias, infâmias ou bufonerias. Eu não nego o gênio
destes extraordinários analistas. Quantas vezes Rollinat me tem dado pesadelos!
Mas tantos desses patológicos assuntos não diriam melhor numa monografia
científica? Cuidam os poetas pagar com as maravilhas da fatura a frialdade ou o
artifício do sentimento interior — e assim ficaram as estrofes, enfileiradas,
enigmáticas, mortas, como uma avenida de esfinges que leva à necrópole deserta.
Resta a poesia puramente lírica,
a poesia que o amor glorifica, nas transfigurações do idílio e paixão platônica
das puras formas: bando de visões tecidas de sonho e nuvem, desejos duma serena
plenitude que todos os seres compartilhem, desde a alga microscópica até ao
homem de gênio — poesia perfumada dessa ternura infinita, castíssima, maternal
à força de íntima, que vibra no poeta ante os mais leves aspectos sensíveis.
Através das evoluções do espírito moderno, no vortilhão doentio dos que todos
os dias renovam os seus ideais, há pequenas sinagogas de contempladores e
eternos crentes, imutáveis como o dogma, aos quais as velhas coisas inspiram
culto apaixonado, e que se comprazem em cultivar os afetos simples do espírito,
ingenuamente expressos, ingenuamente sentidos, e camonianamente cantados. A
poesia que eles fazem, repassada do sentir da multidão anônima, parece antiga
como a estatuária grega, e como ela eterna pela graça rústica que acentua, e
pela límpida e franca linguagem que emprega. Nesta situação, o poeta lírico é
um ser à parte, uma espécie de divino sonâmbulo, cristalizando dor a dor,
soneto a soneto, na sua alma, como numa concha, à força de concentração,
contemplação, o grande ideal de amor absorvente, que se alimenta de puríssimas
reminiscências de beleza, e flutuante nas asas do êxtase, tudo vai sagrando por
onde quer que passe. É o caso de João de Deus, recolhido nas contemplações da
sua mocidade algarvia, rimando singelos amores com raparigas do campo, e
dizendo as saudades de Marina morta,
e a meiguice frágil de Margarida,
naquela forma primitiva do lirismo português, que no século XVI radiava em
fragmentos de Gil Vicente, Sá de Miranda e Camões.
Instintivamente, indaga-se a
quantos séculos de distância está a voz que se escuta rimando essa canção
paradisíaca e divina, onde entanto lateja o coração do mundo, e quer-se
perscrutar a maneira por que eles têm conservado, na complexa vida deste
século, a limpidez de espírito da antiguidade. Conhecem o lied? É um gênero de poesia vaporosa e ingênua, que se encontra por
toda a Alemanha, incorporado na vida do povo. Através da sua forma fantasiada,
das suas divagações nebulosas, o lied
conserva uma lado real, que se prende a todos os atos do viver alemão e vai
maravilhosamente a essa língua de todos os ritmos, hábil para todas as
versificações, e cujo efeito acústico Philarete Chasles compara a um ressoar de
órgão com tubos de cobre, em que as notas solenes se vão perdendo através do
espaço. Os velhos lied são anônimos.
Os modernos, que se inspiram na tradição, tarde ou cedo, perderão a rubrica, ao
entrarem no reportório da massa. O lied
foi muito tempo exclusivo do povo, que traduzia por ele as tendências e emoções
da sua alma, o amor, as harmonias da boda, o nascimento do primeiro filho, o
entusiasmo da caça, o poder da superstição, a cólera, o ciúme, o luto...
Associava no espírito emoções dispersas, insuflando vida nas lembranças
arredadas da memória. É o canto familiar da Alemanha; e trazendo refrigério às
existências votadas aos rudes misteres, nenhum outro guarda como ele essa
floração exótica de nacionalidade, que isenta por todo o sempre das frias
versões estrangeiras. Porque se não trata bem da balada escandinava, com olhos
cor de violeta, alvorecida ao luar, na brancura imaculada dos fiordes; nem há
nesta poesia a petulância da canção berangeriana, ou o sarcasmo do epigrama
latino, à André Chenier. É um canto bonacheirão como a fábula, com o ceticismo
ligeiro, a graça loira e feminina, a sensibilidade nova e virginal, pro cedendo
um pouco à maneira das comédias poéticas de Shakespeare, e deixando dormir no
fundo um vago bom humor de burgomestre apaixonado por tulipas, típico no país
de Henri Heine, como esse outro humorismo de Yedo e Nagasaki, que até nas
esculturas dos templos abre o seu riso, entre infantilmente surpreso e velhaco.
Para estas inefáveis serenadas, os maiores compositores da Alemanha têm feito
música, Dessauer, Schubert, Schumann: e é um prazer ouvi-las já modificadas ao
dizer plebeu, nos trabalhos do campo, nas vindimas do Reno, no interior das
cabanas, ao serão, à saída da escola, e pelas ruas, nos templos e nas
quermesses. Henri Blaze, pensando numa renovação de moldes para a poesia lírica
francesa, recomendava aclimar-se o lied
para cá do Reno. Quanto a nós, João de Deus atingiu admiravelmente este gênero
de composição, nas Loas à Virgem e no
Era Já Noite Cerrada, gênero que Campoamor
sabe vestir com uma graciosa simplicidade. Mas como generalizar hoje uma tal
poesia, quando o espírito não tem mais o perfume da adolescência, e a frescura
das idades primaveris?
O lirismo profundo morre pois
falto de condições sociais que o impulsionem e fecundem. Pode guardar-se donde
aonde, por um prodígio de cultura, no coração de algum destes sublimes
eremitas, estacionados à margem do tumulto moderno, assim como, num frígido
país, a planta tórrida consegue medrar, por excessivos cuidados, na calafetada
estufa que lhe há de ser cárcere por toda a vida. Compreende-se de feito que um
homem passeado pela vida artificial dos cafés, dos teatros, das redações, do
parlamento, das salas e das capitais esteja autenticamente incapaz de se
transfigurar, por exemplo, na Adoração
que abre as Folhas Soltas do nosso
adorável João. Quando muito, terá ele mais lapidada a estrofe, desesperando, à
força de correção, os que venham para atingi-lo ou imitá-lo. No fundo, porém, o
sentimento andará dinamizado ou artificialmente posto em jogo; e em vez do
eterno amor dominativo e panteísta, a obra revelar-nos-á um ceticismo elegante,
uma índole romanesca, incapaz de ser dominada pela paixão, um lírico da
decadência, melhor: um parnasiano.
Luís Guimarães é um parnasiano.
Parnasiano, disse eu, como Armand
Silvestre e como Theodoro de Bainville, no esforço de renascença poética do
Portugal contemporâneo. Desde que a função crítica da análise se tornou início
e fundamento de toda a educação atual, o nosso tempo destronou a inspiração
pela reflexão e substituiu os profetas pelos sábios. Os mesmos poetas começaram
de escrever em prosa os seus poemas, primeiro que os fossem instrumentando nas
cadências musicais do metro; e forraram duma utopia ou duma ideia filosófica
todos os assuntos que se propuseram vestir na púrpura dos ritmos poéticos. Ides
supor que uma arte assim crucificada sobre a reflexão não tenha podido ser
fecunda em criações de grande fôlego — senão comece de estiolar-se em
bastardias pálidas, de cujas ramificações provenham livros inexpressivos,
doentios, impertinentes, histerizados num bizantismo de requinte, e de todo o
ponto exangues porque lhes falte a paixão. No romance, o À Rebours e a Manette Salomon.
Em poesia, as Nevroses e os Soirs Moroses. Seja. Entanto, uma tal
arte fotografa a alma atual. Primeiro, é adorável como entidade: tem a sutileza
hipócrita, a afetação elegante, uma esplêndida toilette: e mente bem, e é delicioso, hão de confessar, ser-se
iludido por uma criaturinha daquela provocadora distinção. Depois, tudo nela
vem pautado e rescendendo a mise-en-scène,
o menor gesto que ela esboce, a mais ligeira palavra que ela diga, o amor, o
ódio, a nostalgia, o ciúme... Não procurem todavia forçar-lhe o limite de
sinceridade para que foi feita. Um passo além, desmanchar-lhe-ia a
caracterização de musa olímpica: e veríamos por baixo a grizette fazendo pied-de-nez
à galeria.
Se eu quisesse agora inferir do
homem físico uma constituição psicológica que viesse explicar-me a obra do
artista, tracejaria de Guimarães a longa biografia de esforços, viagens e
empreendimentos que o trouxeram coroado príncipe, volvidos anos, ao doce país
polar da mais aristocrática das artes, a poesia. A lei de Taine, tão
nitidamente científica, pela qual se estabelece a mútua dependência entre uma
dada literatura e uma dada sociedade, dissecar-me-ia esta entidade de escritor
que irrigaram as influências fatais da raça,
do meio e do momento.
É um americano, móvel de
fisionomia e de caráter, precipitado, pressentido, ardente, e incapaz de
concentrar-se num assunto por mais de algumas horas. Daí talvez a sua
predileção pelo soneto. A viveza estranha da sua máscara estereotipa e reflete
a impressionativa feminilidade do seu talento. Tem, na beleza física dum
tribuno, os olhos terríveis dum domador de feras: e como as vidraças duma
galeria de palácio, deixando transudar iluminadas, a magnificência orgíaca das
salas, músicas de orquestra, e centenares de pares remoinhando em cotillons, assim direis que as pupilas
dele, cintilando entre as íris de fibrilhas frenéticas, nos fazem assistir ao
carnaval furioso da sua imaginação de sobre-excitado.
Os adocicados de origem que na
pronúncia tem sabido guardar este homem, por um orgulho talvez de patriota, e
malgrado o afastamento da pátria, longos anos, dão-lhe à conversa essa ternura
melíflua e põem no ouvido essa bizarra sensualidade, que fizeram do brasileiro
falado um dialeto do português, e contra cuja fixação definitiva na língua a
literatura escrita todos os dias protesta, na sua teimosia de ainda insinuar a
velha preponderância portuguesa, na constituição da jovem nacionalidade[3].
Guimarães sabe a pitoresca
impressão que produz falando assim. Aquela soutache
poética que a boca emite articulando os beiços em buraco de flauta, e nos plurais
sifla os ss como uma chuva de orvalho
caída de néctares de fúcsias, sobre as divinas mãos de uma mulher: aquelas
construções gramaticais, onde o pronome precede o verbo, como em Me disse, Me adora... e em que os finais
das palavras se retraem pela omissão dos sufixos característicos, como em sinhá, cantá (cantar)... — alvo da troça, aquela soutache, na pronúncia dum grosseiro colono repatriado — na língua
dum fino artista e na palestra duma rapariga de salão, ela quer dizer uma
condensação de graça fonética — introduz modulações, veludosidades, carícias,
que exornam de um requinte novo, duma incrustação, duma rocaille, a nossa velha língua mãe, e por muito tempo deixam na
orelha a difusão da mais voluptuosa sinfonia.
Uma tal linguagem parece feita
para ser falada em cortes de amor: há nela preguiças, começos de ais, frou-frous de roupas, titilações... Cada
mestiçagem lhe insinua uma sutil volúpia, uma angústia nova e divina: e
sentem-se balbuciar na sua trama as virgindades duma raça que desperta ainda,
sem passado, como as crianças, monossilabando reminiscências de sonhos heroicos
e translúcidos. Agora junte-se a esta feição da língua a excelsa glória da
paisagem, que a luz alaga, e a caprichosa natureza sabe vestir em formas
fantasiosas, árvores, montes, baías, catadupas... Lá, onde a calma aperta, e
cantam as aves mais extraordinárias da terra, e se ouvem as núpcias da seiva,
caule a caule, na misteriosa alcova das florestas, o espírito, naturalmente
exaltado à contemplação, deriva por seu turno na cheia sensual desses titânicos
e cósmicos amores. Filho de colono, o brasileiro guarda na alma a indefinida
nostalgia que vira bruxulear nos olhos dos pais. A mesma criação opulenta que o
cerca, o humilha e acabrunha: entanto, as paixões dela propagam-se-lhe ao
sangue em efervescências insofridas, e um gulf-stream
de magnéticos amplexos o arrasta no vortilhão das monstruosas e sagradas
gestações da natureza. Assim, o poeta é lá um produto do clima e do solo, como
os frutos, como as flores. Nem quase cultivá-lo é necessário.
Em Luís Guimarães, está de ver,
todas estas determinantes convergiam a impulsionar-lhe o talento. Em 1869, ao
formar-se em Direito, na escola de Pernambuco, contava já na bagagem literária
dois volumes de versos: Corimbos,
composições soltas, e o poemeto Mont’Alverne.
Estou a pensar que Mont’Alverne não
arrojará o poeta para excessivas culminâncias artísticas. Entanto os Corimbos elucidam-nos à farta sobre as
nativas qualidades da sua inspiração.
Ali pululam blandícias e ardores
duma natureza essencialmente amorosa, a que a melancolia presta o seu colorido
romântico. Ali bate pulso uma insofrida febre de ideais, e ânsias de paixão
donde se vê golfando uma seiva inesgotável. Neste livro de lírico, em cujos
ditirambos rebrilham, numa espécie de petulância, as indecisas graças da
mocidade, edita-se a alma virgem de contatos, duma selvageria sincera e duma
insaciável virulência amantética — alma sonora de americano, cheia de ímpetos,
onde ao mesmo tempo tivessem deixado ressonância o gemer da araponga e o rugir
do leão, o cântico e o grito: e entre ambos, toda a vastíssima gama das emoções
intercalares.
Vejamos agora os seus livros de
prosa, dessa época. Eles confirmam as características que nos Corimbos apontei.
De quase todos eu conheço páginas. A forma é fluida, abundante, irisada de
ornatos, pouco refletida, evocativa porém, e fazendo lembrar pela contextura
fácil Júlio Machado e Manoel Roussado, seus contemporâneos e amigos. As suas
crônicas e fantasias literárias afiguram-se-me pequeninas obras de acaso,
feitas numa aberta de mais sérios trabalhos, e brilhando apenas pela ironia
benigna, e saltitante esmalte da adjetivação. Nos contos, a intriga decorre
para assim dizer do humor ocasional do contista, no momento da concepção; tipos
simples, situações de pura idealidade poética, diálogos onde o recorte
literário predomina: e toda a paisagem de roda, não conseguindo fazer atmosfera
intelectual à tensão dramática do assunto, que não existe, fica para assim
dizer um motivo repetido em surdina,
na orquestra do descritivo, e avulta no quadro como um pormenor decorativo
simplesmente, poetizado, alindado, lembrando os tons lilases dum sanguíneo
visto por trás dumas lunetas cor de azul. Entanto a nota amorosa, dominadora do
caráter do artista, atinge aqui por vezes o arroubamento lírico, emprestando
então à narrativa um tom de sinceridade que provoca o interesse. A minha
conclusão é pois esta:
O isolamento na pátria, entre as
ubérrimas maravilhas do solo e as visões interiores do seu espírito, tão finamente
idealista, cedo ou tarde teriam arvorado Luís Guimarães num dos mais profundos
poetas líricos do nosso tempo. Tudo leva a profetizar que assim fosse — aquela
sua compleição idílica, o seu poder de evocação a distância, uma sensibilidade
dolorosa e feminil, e a fantasia cálida extravasando de invenções. O homem do
mundo veio atenuar porém estas primitivas tendências do doce arrulhador de
doloras maviosas. Flutuações de viagens despolarizaram-lhe o espírito da
singeleza nativa: convívios de cortes e museus, mil acasos enfim do dandismo
diplomático lhe foram desviando a sinceridade para uma espécie de risonho
ceticismo.
Em 1880 vamos encontrar Luís
Guimarães na Embaixada de Roma. Roma era a última estação duma série de
residências que o poeta realizara, junto de todos os centros de inteligência
europeia, através de cujas maravilhas, pudera exercitar as suas faculdades de
artista vibrante e progressivo.
Entre os Corimbos e os Sonetos e Rimas,
de que a primeira edição viu luz em Roma (1880), aquelas viagens põem um
interregno no furor de publicidade de que Luís Guimarães parecia acometido. Mas
ao fim delas o americano está transfigurado num prodigioso cinzelador de
melodias, destro, flexuoso, elegantíssimo; sabendo casar as mais raras graças
nas mais fidalgas fantasias, e graduando a impressão com um tato de ator e
gentil-homem a quem não convém desmanchar a linha impecável de artista.
Especialmente Roma, com a sua grande área de monumentos, onde caem no chão,
truncadas sob uma luz de atelier, as memórias de muitas civilizações
triunfadoras: Roma antolhar-se-ia ao poeta como a última e recapituladora lição
duma série de preleções sobre o belo ideal nas suas profusas revelações através
da arte. Ela lhe deu ao verso, talvez, uma academia de melhor gosto, nada
rígida, nada comum, e salvando-se pela nobreza desse chic de ocasião, que, passado de moda, invalida e torna efêmera
obra dum grande número de escritores.
Vênus sem braços! Divinal
grandeza!
Abençoada seja a mão calosa,
Que te arrancou à entranha criminosa
Da terra...
Ou como na “Borralheira”:
Meigos pés pequeninos, delicados
Como um duplo lilás, — se os
beija-flores
Vos descobrissem entre as outras
flores,
Que seria de vós, pés adorados!
Luís Guimarães ficará pois na poesia
portuguesa como o Massenet do soneto, exasperado de perfeição plástica, e
acusando no mordido da forma a paciência dum buril seguro do que pretende. O
mistério de sedução da sua poesia está antes de tudo no modernismo que dela
ressumbra, e na sua atualidade perante o público que a compulsa e lhe dá voga:
público cético e blasé, que, tendo
visto, baquear todas as sortes de cultos e ideais, lentamente foi perdendo a
aptidão de isolar-se em transcendências de sentimento. Nem sempre, nos versos
dele, a emoção resultará do sentimento afetivo acordado na alma pela ideia
dramática do assunto, senão por uma convergência de melodias exóticas que a
linguagem lhe empresta, já pela rima, já pela imagem, já pela estridorosa
eufonia do adjetivo e do metro. É uma emoção que vai ao cérebro antes pelo
ouvido do que pelo coração, e que eu de melhor grado agradeceria à música do
que à literatura. Poucos livros deixam, como os Sonetos e Rimas, recompor com mais escrupulosa fidelidade a
fisiologia artística do escritor, estudar sob que aspectos as coisas o ferem,
depois ver como ele faceta e lapida a mais leve das suas impressões de
aquarelista — águia ou albatroz por cima da vaga ululante, um fim de valsa
fugindo pela janela entreaberta, silhouettes
de cúpulas, escorços de paisagens, perfis de mulher, qualquer efeito ou
qualquer tom — para as cristalizar depois no engaste dum soneto ou de meia
dúzia de estrofes. Deliciosa maneira artística, onde eu descubro o que de mais
puro tem a língua e a poesia de mais plástico; e onde, como num ciclorama vertiginoso,
cintilam transparências de água entre maciços de folhagem, rumores de abelhas e
trilos de aves, ziguezagues de caprichos, acaroados de ocaso, nudezes ebúrneas
estátuas... todas as músicas enfim do universo que respira e canta, na
plenitude do seu disforme ser. A perfeição calma do verso trai o homem que
percorreu os receptáculos da grande arte mãe, beijou os nus sublimes de Sanzio
e Vinci, e conhece de perto o diletantismo canalha das modernas capitais. E o
verso, assimilando inconscientemente as pomas das deusas, as musculaturas dos
efebos e dos heróis, transparências de marinhas cortadas de steamers, sorrisos de mulheres e
reminiscências de efêmeros amores; o verso sai-lhe numa correção esvazada, numa
largueza de estilo, lavrando em cada uma dessas pequeninas obras-primas um
baixo relevo de Acrópole, fulgurante e divino. Na escultura de muitos dos
sonetos do livro também sentirá o leitor a cada instante, inquieta,
proeminente, a influência do bibelô na arte de escrever, que já surpreendera
Paris nos primeiros romances dos Goncourts.
Depuradora do gosto, e dando ao
espírito uma percepção mais luminosa, mais dolorosamente incisiva, da vida das
coisas, aquela frequentação pelo bric-à-brac,
das formas de arte, rebuscadas ou exóticas, desperta alfim na personalidade do
escritor uma rara elegância sugestiva, e uma singular finura de concordância
estética. Estas qualidades são inimigas da violência e proíbem no poeta a
explosão dos sentimentos extremos: — aquelas grandes cóleras dramáticas de que
o romantismo tirava efeitos para escravizar as plateias ávidas de calafrio.
Mesmo, uma preocupação de serenidade aristocrática transluz em todos os
pormenores da Lírica de Luís
Guimarães. Na sua ironia, por exemplo, que ele atenuou até uma espécie de humor
benévolo, serpenteando duma existência sem contratempos nem torturas. Na sua
voluptuosidade, que é uma espécie de arrulho amoroso, mesmo apesar do seu
temperamento escandecido. E aqui e além, notas críticas, intenções de malícia
casta, finuras de desenho encantadoras — como nas manchas das porcelanas
japonesas, família rose ou vert-celadon, que, sem nervuras
salientes, abstraindo a linha quase, dão a ideia por massas, num efeito sutil
de abstração acessível somente às retinas educadas. Este lírico, gasto pela
poesia do coração, educou os olhos para a compensação de descrever, no dia em
que já não pudesse amar. E neste ponto o parnasiano fica, com extraordinárias
qualidades de paleta e cinzel — um refinado. Que talvez pudesse dizer, como o Charles Demailly dos Goncourt — je suis un homme pour qui le monde visible
existe.
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Fonte:Luís Guimarães Júnior: Sonetos e Rimas. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
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Fonte:Luís Guimarães Júnior: Sonetos e Rimas. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
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