16/02/2015

Carlota Ângela, de Camilo Castelo Branco

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O fulcro da Novela Camiliana

Um dos aspectos que singulariza Camilo Castelo Branco é o cabedal da sua obra. Além de ter publicado abundantemente, ele atuou em diversos gêneros de escrita. Foi ao mesmo tempo poeta, teatrólogo, romancista, crítico, editor e tradutor. A sua extensa produção supera uma centena de títulos. Desde os primeiros versos – Pundonores  Desagravados (1845) – até Nas Trevas (1890), uma das suas últimas publicações, nunca parou de escrever. À guisa de ilustração, entre os anos de 1863 e 1865 Camilo publica doze romances, oito volumes de memórias, críticas e narrativas, dois volumes de poesia e uma comédia14. Paulo Franchetti explica que Camilo foi o primeiro escritor português a viver apenas do oficio. Numa sociedade que não dispunha de um número expressivo de leitores, nem tempo em que os direitos autorais estavam começando a ser reconhecidos (a lei dos direitos de autor, proposta por Garrett, é de 1851), Camilo teve de escrever muito (2003, p. 09).

Apesar da acentuada variedade e extensão, o legado camiliano tem sido sistematizado sem que esses traços sejam efetivamente levados em conta. Antônio José Saraiva e Óscar Lopes, em sua História da Literatura Portuguesa, traçam um quadro evolutivo em que a ficção camiliana aparece dividia em três estágios. O primeiro, que vigorou até meados de 1850, seria marcado por uma obra ainda pouco distinta em relação às tendências de ficção em prosa vigentes em Portugal. Nesse momento, Camilo teria escrito, sob a influência de Alexandre Herculano, alguns folhetins de cunho histórico e moralista; dos escritores românticos franceses, obras em que predominava o tom idealista; e dos pré-românticos ingleses, o romance negro de aventuras e o melodrama.

O segundo estágio se dá a partir de meados de 1850, momento em que Camilo teria atingido a maturidade literária. Nesse período, teriam sido fixadas as novelas passional e satírica. O romance Onde Está a Felicidade? (1856), considerado por muitos críticos como um marco na prosa ficcional portuguesa, também é dessa época. O último estágio é singularizado, segundo Lopes e Saraiva (1996), por uma evolução acentuada da ficção camiliana em direção ao Realismo/Naturalismo. Essa fase seria assinalada pelas Novelas do  Minho (1875-77), por Eusébio Macário (1879)  e A Corja (1880).

Malgrado esse modelo de sistematização, o mais corrente é dividir a ficção camiliana em apenas duas categorias basilares: a novela passional e a novela satírica. António José Saraiva e Óscar Lopes, embora tenham estabelecido as três fases anteriormente aludidas, demonstram predileção pela divisão bipolar. Eles assinaram uma das mais conhecidas descrições desse último modelo. De acordo com Franchetti (2003, p. 10) Não erraremos muito se afirmarmos que a “novela camiliana” é, no vocabulário crítico atual, um termo que recobre, na interpretação canônica de António José Saraiva e Óscar Lopes, a produção do autor dividida em duas linhas cristalizadas [...], que funcionam como pólos de tensão entre os quais oscila o restante da sua obra romanesca.

Nas palavras desses críticos “[...] estas duas tendências alternativas, que o novelista raro conseguiu resolver numa síntese, ficando assim ao nível da oposição idealismo-materialismo, culminam, respectivamente, em Amor de Perdição (1862), e A Queda de um Anjo (1866)” (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 783). A novela passional17, conforme essa descrição, é caracterizada pela preeminência do idealismo amoroso, em que o sentimento homônimo é promovido à categoria do incomensurável, assumindo o estatuto de religião, de maneira tal que as tentativas de consumação do amor são acompanhadas pela lembrança do pecado, como se as mais profundas relações afetivas entre homem e mulher nunca devessem sair do plano super-real do sagrado, do inatingível, e a mulher amorosa tivesse necessariamente de ser vítima angélica ou uma aniquiladora “mulher fatal” (1996, p. 784).

Demarcando esse gênero em termos menos idealísticos, Massaud Moisés (1987, p. 89) assim o define:

[...] [envolve] sempre personagens de um mundo de espectros, por assim dizer, tal clima carregado de obsessões, idéias fixas, a conduzir para desenlaces trágicos ou dramáticos através de atos extremistas baseados na paixão desenvolvida ao grau mais elevado. Criaturas impulsionadas por uma espécie de fatalismo do sentimento, entregam-se ao amor, que é paixão e não desejo de elevar-se pela contemplação do outro, - guiadas por instintos, por imperiosas necessidades físicas. A exacerbação dos sentimentos arrasta-as a negar qualquer força coercitiva, social ou moral, de que sobrevêm; orientarem-se por códigos individualistas ou de base exclusivamente sentimental. Está-se em pleno clima romântico, onde o ato mais absurdo se explica pelas razões do coração.

Avessa ao idealismo passional, a novela satírica desenharia um quadro social no qual a vida estaria dirigida pela ganância pecuniária, pelos prazeres mais imediatos e vulgares, e pela ânsia de prestígio e/ou ascensão social, em que “[...] o autor ergue de quando em quando um véu de considerações moralistas” (1996, p. 785). Esse tipo de novela identificar-se-ia com uma aproximação de Camilo com o Realismo/Naturalismo.

Como exposto no item 1.2, determinados setores da crítica costumam lançar mão da biografia para compreender a produção literária camiliana. É oportuno acrescentar que, além de ser adotada como índice exegético, a vida de Camilo também serve de base para se justificar a divisão da sua obra em duas categorias básicas. Alexandre Cabral (1961) sugere que a novela passional originou-se a partir da apropriação do clima emocional da época, que teria sido marcado por uma atmosfera saturada de paixões e lágrimas, de grandezas e misérias. Conseqüentemente, as personagens mover-se-iam na ficção, tal como o seu criador. A novela satírica, por sua vez, seria uma conseqüência do ressentimento de Camilo com a sociedade. O autor do Dicionário de Camilo Castelo Branco justifica a suposta inconformidade camiliana da seguinte forma:

Pondo de lado os sofismas, a verdade é apenas esta: as almas eleitas consideravam-se espoliadas na repartição dos benefícios e honrarias da sociedade. Realmente, os gênios, os talentos, os indivíduos inteligentes vegetavam, viam-se na subalterna e vexatória situação de arrebanhar as migalhas que caíssem das mesas opulentas. Por isso, eles se vingam dos nababos, ridicularizando-os na gazeta e no livro [...] (1961, p.10-11).

Confrontando os argumentos de Cabral com a trajetória de Camilo, é possível identificar uma contradição na explicação biografista que o crítico oferece para a polarização passional/satírica. Como é possível sustentar a tese do idealista ressentido, se Camilo não se singularizou em relação ao caráter dos oportunistas e devassos que criou na sua ficção? Como se sabe, o escritor de São Miguel de Ceide manteve relacionamentos extraconjugais; envolveu-se em negociatas e raptos; mendigou títulos nobiliárquicos comprados com dinheiro ou com influência de poderosos; mudou seguidamente de posição e partido político, desdizendo o que prometera ou jurara. Sendo assim, essa elucidação da polarização e os argumentos que lhes servem de base são questionáveis. Essa forma de ler a ficção camiliana parece ser demasiadamente simplificadora, pois impede uma investigação mais ampla que considere, sobretudo, questões elementares dessa obra, tais como a análise do estilo notadamente polifônico e dialógico do narrador camiliano, o qual se compraz em evidenciar que a ficção é uma esfera situada nos termos da linguagem, no discurso. Enquanto chave de leitura, esse pressuposto mostra-se inoperante para promover o contato do público moderno e contemporâneo com a obra de Camilo.

Embora divida o legado do romancista em duas tendências, a crítica considera a novela passional o ponto alto da produção literária camiliana, o seu produto mais genuíno e bem acabado. Massaud Moisés (1967) classifica-a como o fulcro dessa obra. Saraiva e Lopes (1996, p. 784) defendem que “[...] a novela camiliana típica é [...] a novela dos grandes penitentes do amor”. Jacinto do Prado Coelho (1946, p. 499), por sua vez, afirma: “[...] dois amantes em lutas com uma sociedade injusta – eis, em síntese, a novela camiliana. Os preconceitos, os ódios, as ambições tendem a separá-los; mas o seu amor resiste a tudo isso”. Em razão disso, a novela satírica acaba sendo vista como secundária e de menor importância estética.

Tem sido praxe imputar a Camilo, senão a paternidade, pelo menos a responsabilidade pela difusão e a fixação da novela passional. A respeito dessa questão, Fidelino de Figueiredo emite entusiasticamente este juízo:

[Camilo] depurou o gênero sentimental, porque eliminou tudo que lhe era estranho, divagações, peripécias, elementos cômicos. Na história dos gêneros literários, o autor que cria é na maior parte dos casos um depurador e um condensador; depura o gênero que lhe é estranho e condensa nele tudo que legitimamente lhe pertence. O romance camiliano é a quinta essência do lirismo passional. (1918, p. 283).

Concorre para essa inculcação, o inabalável prestígio do romancista em questão como o escritor mais nomeado do Romantismo português. Levando em consideração o emprego de determinados expedientes românticos pela novela passional, em particular, a exarcebação amorosa-sentimental, tanto o referido prestígio quanto essa imputação se enrobustecem num reforço mútuo.

Eduardo Lourenço aponta a vocação sentimental do povo lustitano como uma das possíveis causas do florescimento passional no texto camiliano. Il est assez étrange de penser que notre imaginaire de peuple à vocation sentimentale, passionnée et passionnelle, depuis des siècles voué aux élans et dérives de l’amour le plus « derramado », le plus flamboyant, ait eu besoin, en plein XIXe siècle, d’être réinventé. Et toutefois c’est exactement cela que Camilo signifie. […] Au tournant du siècle, au moment où la seconde révolution industrielle arrive aux plages lusitaniennes, Camilo propose à ses concitoyens un ailleurs convaincant, des histoires d’amour et de mort, de sacrifices et de repentirs, de vengeance et de remords, des histoires bien à nous […].(1985, p. 29, grifo do autor).

Embora acrescente um dado novo – a pretensa vocação sentimental do povo português, passível de questionamento (sublinhe-se), posto que se baseia numa visão estereotipada e desconsidera a vigorosa tradição satítica lusitana, na qual o próprio Camilo se inclui – a explicação de Eduardo Lourenço embasa-se no clima espiritual romântico para justificar os traços e determinantes da obra em questão.

João Camilo dos Santos (1991) hesita em aceitar o modo como a novela passional está cirscunscrita no âmbito da ficção camiliana, bem como a sua descrição mais habitual. Ele alerta que o mote da relação amorosa irrompe em Camilo sob a coerção dos poderes econômico e social.

[...] o amor não podia [aparecer-lhe] como inseparável das outras relações sociais nem das formas de estruturação do poder familiar e social, cujas bases econômicas eram flagrantemente evidentes e poderososas. Ao « estudar » o amor, Camilo denuncia os mecanismos de funcionamento das relações pessoais em sociedade; e explica a lógica a que obedecem, a ordem a que têm de submeter-se às relações particularmente intensas que são as relações amorosas. O matrimônio e o patrimônio confundem-se, interferem constantemente um com o outro (1991, p. 63)19.

Face às observações de Santos, duas questões se impõem: terá Camilo assimiliado e culminado na tradição literária portuguesa a sacralização do amor? Será Camilo essencialmente um escritor ultra-romântico, autor, sobretudo, de novelas passionais?



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Fonte:
Moizeis Sobreira de Sousa
: “Ficção camiliana: a escrita em cena”. ( Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento  de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando da Motta de Oliveira). São Paulo, 2009. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br

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