16/02/2015

Vinho do Porto: Processo de uma bestialidade inglesa, de Camilo Castelo Branco

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Vinho do Porto: Processo de uma bestialidade inglesa, de Camilo Castelo Branco


Há trinta e cinco anos que um bretão anônimo lavrou na Westminster Review a condenação do vinho do Porto como deletério e empeçonhado por acetato de chumbo e outros tóxicos anglicidas. O homem, pelas rábidas violências do estilo, parece ter redigido a calúnia depois de jantar, numa exaltação capitosa do tanino do alvarilhão que ele confundiu com as aflições dos venenos metálicos. Relembra lamentosamente, com a lágrima das bebedeiras ternas, o século dezoito, em que o genuíno licor do Porto era um repuxo de vida que irrigara a preciosa existência de grandes personagens da Grã-Bretanha. Recorda Pitt e Dundas, Sheridan e Fox, famigerados absorventes do nosso vinho. Diz que Lord Eldon e Lord Stowel, graças infinitas ao Porto, reverdejaram e floriram em velhos; e Sir Wiliam Grant, já decrépito, bebia duas garrafas de Porto a cada repasto, para conservar cristalinamente a limpidez das suas faculdades mentais e a rija musculatura de todos os seus membros já locomotores, já apreensores, e o resto. Lamenta que Pit, débil de compleição, com o uso imoderado deste Tonico, e em resultado de pletoras frequentes combatidas com amoníaco e sulfato de magnésia, vivesse dez anos menos do que viveria, se possuísse o incombustível estômago curtido do venerável Lord Dundas.

Sucedeu, porém, ao colaborador da Westminster Review achar-se dispéptico, com azias, relaxes intestinais, eructações cloacinas, e o crânio sempre flamejante como suja poncheira, com o encéfalo em combustão de cognac e casquinha de limão — isto depois de saturações copiosas dos vinhos adulterados do Porto — uma mixórdia negra, diz ele aflito; mas não sabe decidir de pronto se a degeneração está na raça saxônia, se no vinho português. Pelo menos e provisoriamente considera-se envenenado, o bruto.

Pois o veneno que lograr infiltrar-se nas mucosas inglesas deve ter a potência esfacelante da Água Tufana dos Borgias. Em Inglaterra os porcos engordam na ceva do arsênico. Que fibras de raça aquela! É que a carne de um bretão diverge muito da carnadura da restante Europa. O antropólogo Topinard observou que a mortandade nos hospitais ingleses, em seguimento às operações cirúrgicas, era muito menor que a dos hospitais franceses. O sábio Velpeau, consultado pela Academia de Medicina, respondeu que la chair anglaise et la chair française n'etaient la même. E não dá a razão da diferença, por que a não sabia o grande biólogo. Eu, na observância do ditame do Espírito Santo, pela boca do Eclesiástico — “não escondas a tua sabedoria” elucidarei o sr. Velpeau. A razão, a científica é esta: emborcações de bebidas acidas, e mormente de cerveja, combatem, como coadjuvantes do ácido fênico, a gangrena; ora, o inglês, abeberado de cerveja, é refratário à podridão dos hospitais. Como se vê, desta causal tão obvia um antropólogo é capaz de espremer assunto para volumes recheados de coisas abstrusas sobre etnografia, climatologia, morfologia, mesologia, o diabo.

Além da cerveja, a fibrina do porco, saturado de arsênico, entretecida na fibrina do inglês seu compatriota, faz dele um Mitridates para os sais de chumbo diluídos no vinho do Porto. O inglês não pode morrer por ingestão alcoólica. Se quer suicidar-se com instrumento líquido, tem de asfixiar-se, afogar-se no túnel como o lendário Lord. Ele é imortal, absorvendo; e só pode morrer— absorvido. Estranho animal! E é senhor das águas e das melhores garrafeiras! O destino, pela tuba sonorosa de Camões, disse ao inglês:
Entre no reino d'água o rei do vinho.

         (LUS. c. VI.)

[Trecho do Livro]

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