16/02/2015

Pelo Mundo Fora, de Maria Amália Vaz de Carvalho

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A propósito do suicídio de Antero de Quental

A propósito do suicídio de Antero, falou-se muito de três suicídios também famosos que o precederam; mas realmente, a não ser pela notoriedade que os assinala, eu não sei que eles tenham comparação com o deste poeta. Nem Camilo, nem Júlio César Machado nem Soares dos Reis se mataram pelos motivos transcendentes que atuaram no ânimo de Antero de Quental. 
Os três mataram-se porque sofriam mais do que é dado aos seres humanos sofrer sem procurarem no aniquilamento a paz invocada entre suplícios. 
Um deles, Camilo, artista de nervos exasperados pela cegueira, temperamento de histérico para o qual a resignação era uma virtude impossível, matou-se para fugir às trevas densas de uma lôbrega morte em que se sentia perdido! 
Júlio César Machado matou-se porque, no meio do mundo hostil que não satisfizera nenhuma das ambições da sua pobre alma delicada e sonhadora, ele concentrava as afeições todas do seu coração, os últimos sonhos da sua fantasia, a esperança, a suprema glória, no amor de um filho que se suicidara com 19 anos! ― deixando-o só. O infeliz enlouqueceu e matou-se também...
Sobre a morte de Soares dos Reis paira uma sombra de mistério. Quem sabe que lutas íntimas, que drama de paixão intensa e dolorosa esse suicídio não veio rematar!

A morte de Antero obedeceu a outro gênero de impulsos. Não digo que para ela não concorresse também o estado de miséria moral e de anarquia mental em que via a sua pátria (da qual havia pouco ele tinha porventura esperado qualquer ato de enérgica reação contra o destino), mas a sua dor era uma destas dores de ordem aristocrática e rara, que não se originam como as da maioria dos homens no coração, mas que emanam do espírito cansado de cogitar em vão no mistério impenetrável das cousas... 
Querem ver os espectros que enchiam de pavor sagrado as suas noites? Ouvi este soneto que é, como todos os outros, página solta de uma confissão intelectual complicada e dolorosa, tal como um Pascal ou um Amiel a escreveram também cada um, já se vê, na sua respectiva esfera, um nos seus imortais Pensamentos, outro no seu jornal tão característico e tão pouco compreendido: 
Espectros que velais enquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus sonos curtos e cansados
Me encheis as noites de agonia e susto!...

De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados,
Disputar dia a dia à mão dos fados
Uma parcela do saber augusto.

Se a minh'alma há de ver sobre si fitos
Sempre esses olhos trágicos, malditos!
Se até dormindo, com angústia imensa

Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma, verter sobre o meu peito
As lágrimas geladas da descrença!

Foram estas as dores que o mataram. A sua consciência não achava repouso em nenhuma das concepções do Universo em que alternativamente tentava acolher-se.

Ora, dirigindo-se à meiga Virgem do Catolicismo ele a invocava com infantil simplicidade; ora punha na mão direita de Deus o seu coração cansado, e lhe ordenava que ali dormisse eternamente; ora achava que a dúvida tinha soprado sobre o mundo um vento de ruína e de morte, que tudo emurchecera, que tudo apagara, deixando apenas uma humilde e misteriosa flor desabrochar a medo no fundo da consciência humana. 
Aspirava ao nirvana, à paz inconsciente; queria cair naquele vácuo tenebroso onde na imobilidade indefinida termina o ser inerte, ocioso; e ao mesmo tempo a compreensão atávica da eternidade católica torturava-lhe em horas de luta o inquieto espírito. 
Que aspiração intensa ao ideal, a deste formoso espírito alado! Que sublimes tormentos os seus, procurando sem descanso a verdade e a luz!... 
Mas sempre, em todas as fases desta interna luta que talvez fizesse sorrir alguns dos leitores dos sonetos enquanto o suicídio do poeta lhe não deu o seu fundo de lúgubre realidade, ― Antero chamou pela Morte, a invocou, lhe sorriu, lhe deu os nomes mais belos, os mais doces, os mais apaixonados! 
Dele se pôde dizer que foi um amante da Morte, amante austero e triste, mas nem por isso menos fervoroso e ardente.
Por motivos inteiramente diversos dos seus, também Santa Tereza, a apaixonada castelhana, chamou a Morte com aqueles mesmos arroubos de êxtase que nos surpreendem e nos fazem estremecer a nós, pobres criaturas feitas de carne melindrosa e frágil, a quem o sofrimento repugna, e a sepultura com a sua podridão infecta repele formidavelmente. 
Digam-me se há em língua alguma expressão de dor mais completa do que a deste soneto a que Antero pôs o título de Despondenci por não achar em português um termo que rigorosamente correspondesse ao estado de resinada e tranquila desesperança que ele traduz: 


Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade...
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram...

Deixá-la ir, à vela que arrojaram
Os tufões pelo mar na escuridade,
Quando a noite surgiu na imensidade,
Quando os ventos do Sul se levantaram...

Deixá-la ir a alma lastimosa,
Que perdeu a paz e fé e confiança
À morte queda, à morte silenciosa...

Deixá-la ir a nota desprendida
De um canto extremo e a última esperança...
E a vida... e o amor... deixá-la ir a vida!

***

Não há por tudo isto motivos para espanto no suicídio de Antero. Ele não era, como já dissemos, um escritor de ofício, que de propósito exacerbasse e cultivasse em si próprio o desespero e as lágrimas, para as transformar em retórica livresca; não tinha também um vão amor de glória indesculpável em quem sondava com tão penetrante e lúcido olhar o vazio de todas essas quimeras, a efêmera duração de tudo que é da terra... 
Era uma alma sincera e torturada, que naturalmente desafogava o seu sentir tanta vez contraditório e doentio, em versos de uma magia dolorosa, de uma graça delicada e triste, de uma profundidade de expressão inigualável, e nesses versos só uma nota era constante: o elogio da Morte
Invocou-a sempre, chamou por ela, coroou-a de fúnebres flores, suplicou-lhe que o acolhesse no seu regaço frio, achando enfim que depois do mal de haver nascido não havia senão um bem: tornar ao Nada. 

[Trecho do livro]

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