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Florbela
e o feminismo
Em sua época, a poetisa Florbela Espanca era tratada com certo preconceito
e hostilidade pela sociedade portuguesa. Com o passar do tempo e o gradual desenvolvimento
dos movimentos feministas iniciados no século XIX, com um significativo
avanço na segunda metade do século XX, a poetisa começa a ser redimida pela crítica
portuguesa, que recupera sua biografia e sua obra.
A preocupação ou mesmo a consciência do papel que cabe à mulher e uma
protoluta, se é que se pode chamar assim, pelos direitos da mulher, se delineavam
em Florbela, embora ela não tivesse levantado bandeira feminista, e também não tivesse
participado de movimentos feministas que protestavam contra a exclusão política
da mulher. Segundo Rolando Galvão, a poetisa dedicava-se a uma vida pacata, sem envolvimento
políticos ou sociais.
Os movimentos feministas não eram um fato novo na época em que Florbela
vivia. No longínquo século XV podem ser encontrados textos dispersos, considerados
fundadores do feminismo, escritos por mulheres, em cujos conteúdos se revelavam
veementes protestos contra os preconceitos discriminatórios contra a mulher. Joan Scott aponta o
início da luta das mulheres pelos seus direitos na Revolução Francesa, quando elas se
sentiram excluídas pelas promessas de liberdade, igualdade universal e direitos
políticos estendidos a todos. É nesse ambiente reivindicatório que o movimento feminista
começa a ganhar forma. A exclusão feminina da política deu-se através de um discurso
baseado na diferença
sexual. Para Scott:
Quando
se legitimava a exclusão com base na diferença biológica entre o homem e a mulher,
estabelecia-se que a “diferença sexual” não apenas era um fato natural, mas
também uma
justificativa ontológica para um tratamento diferenciado no campo político e social.
Para Scott, o protesto feminista contra a exclusão política da mulher
objetivava eliminar as diferenças sexuais na política, entretanto, ao defender as
mulheres na tentativa de eliminar a “diferença sexual”, o feminismo, em nome dessas
mulheres, alimentava ainda mais essa diferença. “Esse paradoxo – a necessidade de, a um só tempo, aceitar e recusar
a ‘diferença sexual’ – permeou o feminismo como movimento político por toda sua longa história”.
A
exclusão das mulheres da vida política, intelectual e cultural levou-as, gradativamente, a
posicionar-se contra as práticas do poder masculino assumindo uma postura cada
vez mais clara e responsável dentro da perspectiva da política feminista pela conquista
dos direitos civis. Dentre esses direitos, pode-se destacar o direito à educação e à
profissão. A postura reivindicatória assumida pelas mulheres representou um grande
avanço na caminhada do feminismo, e pode ter tido um reflexo imediato na literatura
escrita por mulheres. Zahidé Muzart afirma que a principal ligação do feminismo
com a literatura aconteceu no século XIX, quando as mulheres resolveram sair do
fechamento doméstico. Para Muzart, pode-se dizer que as mulheres escritoras, desejosas
de viver da pena, e de serem escritoras profissionais, eram feministas, pois só
o fato de saírem da esfera doméstica era um indício de possuírem uma cabeça pensante e um desejo
de subversão.
Na primeira metade do século XIX, as mulheres da classe média (especialmente na
Inglaterra e na França) adentraram no universo da escrita sendo que as mulheres
da aristocracia européia eram as únicas que, dados os seus privilégios de classe,
podiam almejar ser escritoras, segundo Cláudia P. Alonso.
As feministas vão consolidando essa postura por meio de lutas, movimentos,
numa longa caminhada de duras e pequenas conquistas políticas, intelectuais, sociais
e culturais. Entretanto a mesma disposição das feministas não é percebida em Florbela,
embora a insistência em fazer-se ouvir através de sua fala, de seus poemas, de seus
escritos fizesse com que ela transgredisse regras, rompesse barreiras tanto na vida quanto na obra.
Agustina Bessa-Luís credita a forma de Florbela comportar-se e até
mesmo a neurastenia que a acompanharia até o final de sua vida, à composição familiar
a que foi submetida durante sua vida. Ao nascer foi colocada aos cuidados de sua
madrinha e mulher legítima do pai, Mariana Toscano, que veio a falecer depois de
ter se separado de João Maria Espanca. Após a morte da primeira madrasta, a poetisa
teve um relacionamento amigável com a segunda madrasta. Apesar de ter recebido
boa educação e nada lhe faltar, Florbela, desde muito cedo, conviveu com uma
instabilidade familiar por conta dos amores que o pai colecionou vida afora e das
mães com as quais teve que conviver. Esse modo de vida, a atitude, o comportamento
de Florbela, de certa maneira, revolucionário, tanto na sua poesia quanto em sua
vida, fez muitos críticos confundirem
uma com a outra.
A associação que parece existir entre vida e obra de Florbela, talvez
tenha feito com que os críticos encontrassem dificuldade em distinguir o que
era da vida e o que era da obra da poetisa. Lúcia Castello Branco diz que
poucos são os críticos que conseguiram distinguir os domínios da arte dos
domínios da vida na produção poética das mulheres escritoras em geral. Para Haquira Osakabe, o fato de a poetisa ter se constituído
mais como mito do que como escritora reconhecida pelos seus dotes literários foi,
por vezes, favorável e em outras vezes se voltou contra ela. O autor alega que dificilmente
se distinguirá com nitidez o que é da vida e o que é da obra em Florbela
Espanca, pois ambas se atrelam e se subordinam à solidez do mito que por vias misteriosas
se construiu. Nesse aspecto, a poetisa é aparentada de Mariana Alcoforado, embora
haja uma diferença radical e escandalosa: enquanto as figuras femininas,
incluindo Heloísa, foram possivelmente inventadas por mãos masculinas, Florbela
foi inventada por si
mesma.
As lutas feministas reivindicavam direitos políticos concernentes à
individualidade e à cidadania; Florbela, por sua vez, reivindicava o direito ao
prazer, à sensualidade em seus versos, sem se preocupar com a sua reputação. Com
esta preocupavam-se os críticos que queriam salvar sua poesia, considerada, por
eles, de inegável valor. Nessa tarefa, transformavam-se em defensores da moral
das senhoras poetisas que tinham a coragem de declarar-se capazes de sentir
prazer. Para Lúcia Castello Branco, a vida e a obra de Florbela foi inquieta e
paradoxal. Ao mesmo tempo transitava entre a ousadia e o recato, entre a sensualidade
insaciável e a santidade fanática, entre a paixão desenfreada e o amor
fraterno-cristão. O fato de ser ao mesmo tempo desbocada e pudica, sensual e etérea
rendeu-lhe uma intensa hostilidade pelos “decorosos senhores da literatura”. E
é no auge de sua ousadia que o erotismo explode na sua poesia, sem medo de
transgredir, sem culpa de ter transgredido. Em Florbela, o direito de conclamar
o erotismo mais próximo da transgressão do que do sagrado, no livro Charneca em Flor, de alguma maneira se
efetiva. Portanto, a interdição
encontra uma certa libertação na sua poesia.
O fato de o tema da paixão, do erotismo aparecer com uma certa regularidade
na poesia de Florbela, justifica os vários estudos que se encontram publicados a
respeito dessa temática. Desde seus primeiros poemas publicados no livro Trocando Olhares delineiam-se as matrizes da paixão, do amor, da sensualidade filiadas
ao erotismo. A cada livro essa tendência se consolidaria e ganharia espaço, configurando
o seu texto poético como discurso feminino do erotismo, e que Rolando Galvão chama de “a intensidade de
um transcendido erotismo feminino”.
Para Castello Branco, o erotismo é uma das questões mais delicadas
e movediças quando se trata da escritura feminina. A autora assinala que o erotismo
difuso ou canalizado para um objeto de prazer é tema recorrente na literatura feminina,
e, determinante na obra de Florbela. E por ser tão visível e palpitante na sua
obra é que os críticos, mesmo aqueles que se manifestaram na década de 20, se reportam ao tema do
erotismo.
Para as mulheres de hoje, falar sobre e fazer sexo deixou de ser
tabu.
Não havendo mais interdição, conseqüentemente não há mais
transgressão. Nos dias de hoje não é mais tabu falar sobre sexo no discurso
literário feminino ou fora dele, na década de 20, a mulher que ousasse
abordar o erotismo no seu discurso seria considerada imoral, “porque as mulheres não deviam falar nesse
tom”.
Florbela ousou erotizar seu discurso literário, por isso não é de se
estranhar as críticas que recebeu e a crucificação a que foi submetida em sua época.
Hoje, não são raros os críticos que a consideram uma heroína, uma precursora, um
mito, a mesma Florbela considerada por seus contemporâneos como devassa, e todos
os termos pejorativos e degradantes possíveis e imagináveis de uma sociedade que se considerava paladina
da moral.
---
Fonte:
Marly Catarina Soares: “O místico e o erótico na poesia de Florbela Espanca”. (Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor no Curso de Pós-Graduação em Literatura, Doutorado em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – sob a orientação da Profª Drª Simone Pereira Schmidt). Florianópolis, 2008.
Fonte:
Marly Catarina Soares: “O místico e o erótico na poesia de Florbela Espanca”. (Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor no Curso de Pós-Graduação em Literatura, Doutorado em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – sob a orientação da Profª Drª Simone Pereira Schmidt). Florianópolis, 2008.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível em: repositorio.ufsc.br
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível em: repositorio.ufsc.br
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