08/06/2014

Reliquiae, de Florbela Espanca

 Reliquiae,  de Florbela Espanca
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Florbela e o feminismo
  
Em sua época, a poetisa Florbela Espanca era tratada com certo preconceito e hostilidade pela sociedade portuguesa. Com o passar do tempo e o gradual desenvolvimento dos movimentos feministas iniciados no século XIX, com um significativo avanço na segunda metade do século XX, a poetisa começa a ser redimida pela crítica portuguesa, que recupera sua biografia e sua obra.

A preocupação ou mesmo a consciência do papel que cabe à mulher e uma protoluta, se é que se pode chamar assim, pelos direitos da mulher, se delineavam em Florbela, embora ela não tivesse levantado bandeira feminista, e também não tivesse participado de movimentos feministas que protestavam contra a exclusão política da mulher. Segundo Rolando Galvão, a poetisa dedicava-se a uma vida pacata, sem envolvimento políticos ou sociais.

Os movimentos feministas não eram um fato novo na época em que Florbela vivia. No longínquo século XV podem ser encontrados textos dispersos, considerados fundadores do feminismo, escritos por mulheres, em cujos conteúdos se revelavam veementes protestos contra os preconceitos discriminatórios contra a mulher. Joan Scott aponta o início da luta das mulheres pelos seus direitos na Revolução Francesa, quando elas se sentiram excluídas pelas promessas de liberdade, igualdade universal e direitos políticos estendidos a todos. É nesse ambiente reivindicatório que o movimento feminista começa a ganhar forma. A exclusão feminina da política deu-se através de um discurso baseado na diferença sexual. Para Scott:

Quando se legitimava a exclusão com base na diferença biológica entre o homem e a mulher, estabelecia-se que a “diferença sexual” não apenas era um fato natural, mas também uma justificativa ontológica para um tratamento diferenciado no campo político e social.

Para Scott, o protesto feminista contra a exclusão política da mulher objetivava eliminar as diferenças sexuais na política, entretanto, ao defender as mulheres na tentativa de eliminar a “diferença sexual”, o feminismo, em nome dessas mulheres, alimentava ainda mais essa diferença. “Esse paradoxo – a necessidade de, a um só tempo, aceitar e recusar a ‘diferença sexual’ – permeou o feminismo como movimento político por toda sua longa história”.

A exclusão das mulheres da vida política, intelectual e cultural levou-as, gradativamente, a posicionar-se contra as práticas do poder masculino assumindo uma postura cada vez mais clara e responsável dentro da perspectiva da política feminista pela conquista dos direitos civis. Dentre esses direitos, pode-se destacar o direito à educação e à profissão. A postura reivindicatória assumida pelas mulheres representou um grande avanço na caminhada do feminismo, e pode ter tido um reflexo imediato na literatura escrita por mulheres. Zahidé Muzart afirma que a principal ligação do feminismo com a literatura aconteceu no século XIX, quando as mulheres resolveram sair do fechamento doméstico. Para Muzart, pode-se dizer que as mulheres escritoras, desejosas de viver da pena, e de serem escritoras profissionais, eram feministas, pois só o fato de saírem da esfera doméstica era um indício de possuírem uma cabeça pensante e um desejo de subversão. Na primeira metade do século XIX, as mulheres da classe média (especialmente na Inglaterra e na França) adentraram no universo da escrita sendo que as mulheres da aristocracia européia eram as únicas que, dados os seus privilégios de classe, podiam almejar ser escritoras, segundo Cláudia P. Alonso.

As feministas vão consolidando essa postura por meio de lutas, movimentos, numa longa caminhada de duras e pequenas conquistas políticas, intelectuais, sociais e culturais. Entretanto a mesma disposição das feministas não é percebida em Florbela, embora a insistência em fazer-se ouvir através de sua fala, de seus poemas, de seus escritos fizesse com que ela transgredisse regras, rompesse barreiras tanto na vida quanto na obra.

Agustina Bessa-Luís credita a forma de Florbela comportar-se e até mesmo a neurastenia que a acompanharia até o final de sua vida, à composição familiar a que foi submetida durante sua vida. Ao nascer foi colocada aos cuidados de sua madrinha e mulher legítima do pai, Mariana Toscano, que veio a falecer depois de ter se separado de João Maria Espanca. Após a morte da primeira madrasta, a poetisa teve um relacionamento amigável com a segunda madrasta. Apesar de ter recebido boa educação e nada lhe faltar, Florbela, desde muito cedo, conviveu com uma instabilidade familiar por conta dos amores que o pai colecionou vida afora e das mães com as quais teve que conviver. Esse modo de vida, a atitude, o comportamento de Florbela, de certa maneira, revolucionário, tanto na sua poesia quanto em sua vida, fez muitos críticos confundirem uma com a outra.

A associação que parece existir entre vida e obra de Florbela, talvez tenha feito com que os críticos encontrassem dificuldade em distinguir o que era da vida e o que era da obra da poetisa. Lúcia Castello Branco diz que poucos são os críticos que conseguiram distinguir os domínios da arte dos domínios da vida na produção poética das mulheres escritoras em geral. Para Haquira Osakabe, o fato de a poetisa ter se constituído mais como mito do que como escritora reconhecida pelos seus dotes literários foi, por vezes, favorável e em outras vezes se voltou contra ela. O autor alega que dificilmente se distinguirá com nitidez o que é da vida e o que é da obra em Florbela Espanca, pois ambas se atrelam e se subordinam à solidez do mito que por vias misteriosas se construiu. Nesse aspecto, a poetisa é aparentada de Mariana Alcoforado, embora haja uma diferença radical e escandalosa: enquanto as figuras femininas, incluindo Heloísa, foram possivelmente inventadas por mãos masculinas, Florbela foi inventada por si mesma.

As lutas feministas reivindicavam direitos políticos concernentes à individualidade e à cidadania; Florbela, por sua vez, reivindicava o direito ao prazer, à sensualidade em seus versos, sem se preocupar com a sua reputação. Com esta preocupavam-se os críticos que queriam salvar sua poesia, considerada, por eles, de inegável valor. Nessa tarefa, transformavam-se em defensores da moral das senhoras poetisas que tinham a coragem de declarar-se capazes de sentir prazer. Para Lúcia Castello Branco, a vida e a obra de Florbela foi inquieta e paradoxal. Ao mesmo tempo transitava entre a ousadia e o recato, entre a sensualidade insaciável e a santidade fanática, entre a paixão desenfreada e o amor fraterno-cristão. O fato de ser ao mesmo tempo desbocada e pudica, sensual e etérea rendeu-lhe uma intensa hostilidade pelos “decorosos senhores da literatura”. E é no auge de sua ousadia que o erotismo explode na sua poesia, sem medo de transgredir, sem culpa de ter transgredido. Em Florbela, o direito de conclamar o erotismo mais próximo da transgressão do que do sagrado, no livro Charneca em Flor, de alguma maneira se efetiva. Portanto, a interdição encontra uma certa libertação na sua poesia.

O fato de o tema da paixão, do erotismo aparecer com uma certa regularidade na poesia de Florbela, justifica os vários estudos que se encontram publicados a respeito dessa temática. Desde seus primeiros poemas publicados no livro Trocando Olhares delineiam-se as matrizes da paixão, do amor, da sensualidade filiadas ao erotismo. A cada livro essa tendência se consolidaria e ganharia espaço, configurando o seu texto poético como discurso feminino do erotismo, e que Rolando Galvão chama de “a intensidade de um transcendido erotismo feminino”.

Para Castello Branco, o erotismo é uma das questões mais delicadas e movediças quando se trata da escritura feminina. A autora assinala que o erotismo difuso ou canalizado para um objeto de prazer é tema recorrente na literatura feminina, e, determinante na obra de Florbela. E por ser tão visível e palpitante na sua obra é que os críticos, mesmo aqueles que se manifestaram na década de 20, se reportam ao tema do erotismo.

Para as mulheres de hoje, falar sobre e fazer sexo deixou de ser tabu.

Não havendo mais interdição, conseqüentemente não há mais transgressão. Nos dias de hoje não é mais tabu falar sobre sexo no discurso literário feminino ou fora dele, na década de 20, a mulher que ousasse abordar o erotismo no seu discurso seria considerada imoral, “porque as mulheres não deviam falar nesse tom”.

Florbela ousou erotizar seu discurso literário, por isso não é de se estranhar as críticas que recebeu e a crucificação a que foi submetida em sua época. Hoje, não são raros os críticos que a consideram uma heroína, uma precursora, um mito, a mesma Florbela considerada por seus contemporâneos como devassa, e todos os termos pejorativos e degradantes possíveis e imagináveis de uma sociedade que se considerava paladina da moral.


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Fonte:
Marly Catarina Soares: “O místico e o erótico na poesia de Florbela Espanca”. (Tese   apresentada             como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor no Curso de Pós-Graduação em Literatura,      Doutorado     em      Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – sob a 
orientação da Profª Drª Simone Pereira Schmidt). Florianópolis, 2008.

Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível em: repositorio.ufsc.br

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