08/06/2014

O Livro Dele, de Florbela Espanca

 O Livro Dele, de Florbela Espanca
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Olhar, amor e dor: o mito de Narciso e a poesia de Florbela Espanca.

Dedicatória
É só teu o meu livro; guarda-o bem,
Nele floresce o nosso casto amor
Nascido nesse dia em que o destino
Uniu o teu olhar à minha dor!
(ESPANCA.Trocando olhares)
  
Olhar, amor e dor. Essa tríade se mostra presente em toda a poesia Ocidental, e é o que podemos observar na dedicatória da obra Trocando olhares (ESPANCA, 1999), de Florbela. O olhar sempre se relaciona à dor, é a dor do amor impossível, aqui, a dor do casto amor. O olhar é o desencadeador do amor e da dor, consecutivamente. O olhar, enquanto responsável pelo desejo e fascinação, é uma das grandes teorias estudadas não só pela psicanálise como também pela filosofia. Tema recorrente na poesia Ocidental, encontra raízes na mitologia greco-romana, com o famoso mito de Narciso. No senso comum, usamos a palavra “mito” para nos opor a algo verdadeiro, ou seja, ao conhecimento científico. Segundo Ana Vincentin de Azevedo (2004, 8), seria atribuída à palavra “mito” características de algo falso, ruim ou nocivo. Essa oposição dicotômica presente tanto no senso comum quanto na filosofia clássica é trabalhada de forma diferente pela psicanálise, desde os seus primórdios, que põe tal oposição em questão. Na obra de Sigmund Freud, o mito aparece como uma fonte única, indispensável de reflexão e inspiração para a elaboração de suas teorias acerca do funcionamento psíquico. O mito é linguagem para a psicanálise, assim como o inconsciente também o é para Lacan. O mito tece algumas das noções que serão elaboradas pela psicanálise – olhar, desejo, narcisismo, édipo, etc -, e é na teia do mito de Narciso em que se tece, em que se elabora uma teoria acerca do olhar, enquanto responsável pelo desejo e fascinação. A qual objeto é direcionado o olhar de Narciso? O que é captado e desejado pelo olhar de Narciso? Como o mito tece a teoria do olhar, desejo e fascinação? Apenas remontando ao mito de Narciso, pode-se perceber como esse olhar é desejoso e mortal na sua constante busca pela satisfação.

Uma das versões mais comuns e aceitas do mito de narciso pode ser encontrada em O livro de ouro da mitologia (2000, 123–125), de Thomas Bulfinch. De acordo com o mito, Narciso foi um belo jovem que enamorou todos por onde passou, inclusive uma bela ninfa chamada Eco. Eco foi condenada por Juno a não mais poder falar, poderia apenas dizer a última palavra do que fosse pronunciado pelas outras pessoas. Só iria poder responder, nunca mais dizer a última palavra, castigo duro, já que Eco era conhecida por ser falante. Certa vez, Narciso estava caçando quando Eco o viu. Apaixonou-se e seguiu os seus passos, tentou dirigir-lhe a palavra, mas não conseguiu. Conquistá-lo estava fora do seu poder. Esperou que falasse primeiro para poder responder.

Um dia, Narciso afastou-se de seus amigos e gritou para poder encontrá-los, foi aí que apareceu Eco. A ninfa causou espanto em Narciso, que a desdenhou. A ninfa escondeu a sua vergonha nos bosques, e daquele dia em diante passou a viver entre grutas e rochedos. De pesar, seu corpo definhou. Suas carnes desapareceram e seus ossos se transformaram em rochedos. Restou apenas a sua voz. Narciso não foi cruel apenas com Eco. Ele desprezou todas as outras ninfas. E certo dia, quando desdenhou uma bela donzela que tentava atraí-lo, esta implorou aos deuses que ele algum dia pudesse saber o que é amar sem ser correspondido.

Foi assim, que Narciso, num belo dia, cansado e fatigado da caçada, se aproximou de uma fonte clara, cuja água parecia prata, e se debruçou para beber a água dessa fonte. Debruçando-se viu um belo jovem na água, com olhos brilhantes, cabelos anelados, rosto oval, pescoço de marfim, lábios entreabertos e aspecto saudável. Era a sua própria imagem refletida na água, mas pensara ser algum espírito das águas que ali vivesse. Apaixonou-se pela bela imagem e tentou tocá-la, mas a imagem fugiu com o contato. Tentou beijá-la e abraçá-la, mas a imagem não correspondia às suas ações. Pensou que causasse repugnância ao ser, e entristeceu-se. Narciso, depauperado, morreu.

Seu corpo não foi encontrado. Em seu lugar foi encontrada uma flor roxa, rodeada de folhas brancas, que tem o nome e conserva a memória de Narciso. (cf. BULFINCH, 2000, p.123-125)

A incompletude de Eros está presente no mito de Narciso, pois para haver o desejo, a atração, é necessário que este ser busque o que lhe falta. A relação amorosa assume uma dimensão narcísica à medida que um busca no outro amado justamente o que lhe falta. Eros busca voltar à sua completude do Todo, busca a supressão de toda falta ou penúria: Eros seria filho de Penia e Poros, como expõe Platão, através da sua obra O Banquete:

Por ocasião do nascimento de Afrodite, os deuses deram um grande banquete comemorativo, a que compareceu também Poros, o Esperto, o filho de Métis, a Prudência. Enquanto se banqueteavam, aproximou-se Penia, a Pobreza, para mendigar as sobras da festa, e sentou-se à porta. Embriagado pelo néctar – pois o vinho ainda não existia - , Poros se encaminhou para os Jardins de Zeus e lá adormeceu, dominado pela embriagruez. Foi então que Penia, em sua miséria, desejou ter um filho de Poros. Deitou-se ao seu lado e concebeu a Eros. Por esse motivo é que Eros tornou-se mais tarde companheiro e servidor de Afrodite, pois foi concebido no dia em que esta nasceu. Além disso, Eros, devido à sua natureza, ama o que é belo e, como sabemos, Afrodite é bela.
E por ser filho de Poros e Penia, Eros tem o seguinte fado: é pobre, e muito longe está de ser delicado e belo, como todos vulgarmente pensam. Eros, na realidade, é rude, é sujo, anda descalço, não tem lar, dorme no chão duro, junto aos umbrais das portas, ou nas ruas, sem leito nem conforto. Segue nisso a natureza de sua mãe que vive na miséria.
Por influência da natureza que recebeu do pai, Eros dirige a tenção para tudo que é belo e gracioso; é bravo, audaz, constante e grande caçador; está sempre a deliberar e a urdir maquinações, a desejar e adquirir conhecimentos, filosofa duramente toda a sua vida; é grande feiticeiro, mago e sofista.[...] (PLATÃO. 2001, 144)

Eros busca o retorno a um estado de satisfação plena. Eros é duplo, é o que engendra e desfaz, tece redes de sedução e enganos. E é através dessa ótica trágica que se tece o dualismo pulsional freudiano vidamorte, que visa a repetição de uma experiência primordial de satisfação. A psicanálise afirma que a reedição dessa satisfação total está fadada ao fracasso, já que o seu objeto é desde sempre perdido. É o paradoxo da satisfação pulsional.

Mas como surge o desejo? – no olhar.

É na busca para saciar a sua sede que surge a sede de “o olhar da bela forma que ele vê”. A rede de enganos na qual Narciso se enreda é resumida por Ovídio: “Ele ama uma esperança sem substância e crê que é substância o que é somente sombra”. Mas ele se reconhece na sombra. Há a identificação. Na busca do outro, busca-se o que falta a si mesmo, a reparação da falta, a perfeição do Todo. É com esse reflexo, com essa “sombra tomada como substância”, que Narciso se identifica e na qual se perde de forma trágica. É a realização do paradoxo vidamorte no mito de Eros. É a busca pela satisfação plena que conduz à extinção do ser. O olhar seduz, fascina, e esse olhar fascinou Eco e todas as outras ninfas, é o movimento olhar-se, olhar e ser olhado. “ E reconheço no outro”, poderia afirmar todos que olham, inclusive o próprio Narciso, mas o que há é que ao mesmo tempo em que Narciso é a imagem, esta é o outro que não ele. E ele se reconhece no outro.

Enquanto em Eco temos por modalidade pulsional temos apenas o olhar. Ao recusar todos os jovens que por ele se apaixonaram, notadamente Eco, Narciso desmonta o campo visual fundante do amor, a reciprocidade do olhar e ser olhado. E na reflexividade do fazer-se olhar, engendra um campo que a psicanálise nomeia como pulsão escópica. Narciso é capturado por um olhar que o fascina. Esse olhar é o que a psicanálise destaca como objeto dessa pulsão, que se caracteriza pelo fato de o sujeito poder se ver, tal como uma flecha atirada que retorna para o próprio sujeito. Narciso teve, então, um olho perfurado por um evanescente olhar.

Assim se estrutura a teia do olhar em Narciso: Eco se olha e se reconhece em Narciso, deseja-o, o olhar desejante é o objeto da pulsão. A satisfação da pulsão é o seu objetivo. Entretanto, olhar e não ser olhada é a dor de Eco, o gozo do impossível, a dor de Amor, a morte. Todos foram enceguecidos por um foco de luz irradiante, vibrante, que cega a consciência e faz olhar o inconsciente. Deseja-se o objeto, o olhar quer o aprisionar para si, uma vez que já fora aprisionado pelo olhar do Outro.

Como foi dito anteriormente, a relação entre olhar, amor e dor não é propriedade da mitologia. Na poesia abaixo, podemos observar todas as peculiaridades citadas em relação ao mito de Narciso, como o olhar desejante, olhar enceguecido, o dualismo vidamorte, a dor de amar:

As quadras dele (I)

Saudades e amarguras
Tenho eu todos os dias,
Não podem pois adejar
Em meus versos alegrias.

Saudades e amarguras
Tenho eu todas as horas,
Quem noites só conheceu,
  
Não pode cantar auroras
 *
Se é um pecador a sonhar
Tenho um pecado na vida,
Peço a Deus por tal pecado
A penitência merecida.


Quando o meu sonho morrer
(Que penitência tão dura!)
vai encontrar em teu peito
carinhosa sepultura.
 *
Onde estás ó meu amor,
Que não te vejo apar’cer?
Para que quero eu os olhos
Se não servem pra te ver?
  
Que m’importa a luz suave
Dos olhos que o mundo tem?
Não posso ver os teus olhos
Não quero ver os de ninguém.
 *
Tens um coração de pedra
Dentro de um peito de lama
Pois nem sabes distinguir
Quem te odeia ou quem te ama.
  
Por uma que te despreza,
Teu coração endoidece;
E a pobre que te quer bem
Só teus desprezos merece!
  
 *
Desde que o meu bem partiu
Parecem outras as cousas;
Até as pedras da rua
Têm aspectos de lousas!


Quando por acaso as piso,
Perturba-me um tal mistério!...
Como se pisasse à noite
As pedras dum cemitério...
 *
Teus olhos têm uma cor
Duma expressão tão divina,
Tão misteriosa, tão triste,
Como foi a minha sina.
  
É uma expressão de saudade
Vogando num mar incerto.
Parecem negros de longe,
Parecem azuis de perto.
  
Mas nem negros nem azuis
São teus olhos, meu amor,
Seriam da cor da mágoa
Se a mágoa tivesse cor!
 *
Nem o perfume dos cravos,
Nem a cor das violetas,
Nem o brilho das estrelas,
Nem o sonhar dos poetas,

Pode igualar a beleza
Da primorosa flor,
Que abre na tua boca
O teu riso encantador.
 *
Levanta os olhos do chão,
Olha de frente pra mim
Fingindo tanto desprezo,
Que podes ganhar assim?
  
Não andes tão distraído,
Contando as pedras da rua,
Não sei pra que finges tanto...
Tu és meu e eu sou tua...
  
Levanta os olhos do chão,
Que podes ganhar assim?
Se Deus nos fez um pro outro,
Para que foges de mim?
 *
Coveiros, sombrios, desgrenhados,
Fazei-me depressa a cova,
Quero enterrar minha dor
Quero enterrar-me assim nova.
  
Coveiros, só o corpo é novo,
Que há poucos anos nasceu;
Fazei-me depressa a cova
Que a minha alma morreu.
 *
Amar a quem nos despreza


É sina que a gente tem;
Eu desprezo quem m’odeia,
E adoro quem me quer bem.
 *
Ai, tirem-me o coração
Que o tenho todo desfeito!
Cada pedaço um punhal
Que trago dentro do peito.
 *
Eu quero viver contigo
Muito juntinho os dois
O tempo que dura um beijo,
Embora eu morra depois.
 *
Meu coração é ruína
Caindo todo a pedaços,
Oh, dá-lhe a hera piedosa
Bendita desses teus braços!
 *
Quando fito o teu olhar
Tão frio e tão indiferente,
Fico a chorar um amor
Que o teu coração não sente.
 *
O fado não é da terra,
O fado criou-o Deus,
O fado é andar doidinha
Perdida p’los olhos teus.
 *
Esmaguei meu coração
Para o triste te esquecer,


Mas ao sentir os teus passos,
Põe-se a bater... a bater...
 *
Andam pombas assustadas
No teu olhar, adejando,
Mal sentem os meus olhos,
Batem as asas, voando.
 *
Há sonhos que ao enterrar-se,
Levam dentro do caixão,
Bocados da nossa alma,
Pedaços de coração!
 *
Andam sonhos cor do mar
Nas minhas quadras, imersos,
Se queres comigo sonhar,
Canta baixinho os meus versos.
(ESPANCA. In: Trocando Olhares, 1999, 4 - 9)

A poesia acima é composta por trinta estrofes de quartetos. Observamos a separação de alguns quartetos por asteriscos, o que representa uma mudança de tema que ocorre no grupo de versos, mas a dualidade mortevida está presente em quase todas as estrofes: a morte dos sonhos, do amor, da alma.

Na 1ª estrofe, o eu-lírico define o seu estado de espírito, de saudades e amarguras, justificando o fato de não estar presente em seus versos a alegria. Esse mesmo estado de espírito se repete na 2ª estrofe, desta vez justificando a causa do seu estado de espírito:

Quem noites só conheceu,
Não pode cantar auroras.

A imagem da noite representa, então, a tristeza, a dor, a escuridão, a morte, e se contrapõe à “aurora”, que por sua vez representa a alegria, a luz, a vida.

Na 3ª e 4ª estrofes surge um elemento religioso cristão, o pecado. O ato de sonhar, para o eu-lírico, infringe as leis divinas, e a morte do sonho é a penitência merecida. A morte parece, então, ser o fim de todo sonho.

O olhar , representativo do desejo, é o elemento presente na 5ª e 6ª estrofes. Olhar os olhos do outro significa capturar o olhar do outro. É o desejo que é desencadeado pelo objeto. Desejo o olhar que capturou o meu:

Não posso ver os teus olhos
Não quero ver os de ninguém.

Desejar o que não se tem, é a lei do desejo. É o traço observado no mito de Narciso tanto na figura de Eco quanto do próprio Narciso. Eros é o desejo da falta. É a mola do amor. Eco, que morreu de amor, desejava Narciso, que desejava uma imagem a qual ele não poderia alcançar. Na 7ª e 8ª estrofes, a teia do desejo é desenhada,

Por uma que te despreza,
Teu coração endoidece;
E a pobre que te quer bem
Só teus desprezos merece!

o eu-lírico sofre desprezo por seu objeto de desejo, quer por sua vez é desprezado por seu respectivo objeto de amor, assim como Eco foi desprezada por Narciso. Ama-se o que não se tem. A dor causada pelo desprezo é a dor mortal, é a dor que levou Eco a definhar pelos bosques até encontrar o seu destino final. O sentimento de morte parece perseguir os amantes. Na 9ª e 10ª estrofes aparecem os vocábulos lousa e cemitério, remontando esse sentimento sombrio causado pela dor da rejeição, da perda. Aniquilar a alma parece ser a única solução para cessar a dor que a consome.

Outro elemento religioso que aparece é o destino, a predestinação. O eu-lírico parece se conformar com a dor, como se esta fosse predestinada, o seu destino, a sua sina:

Teus olhos têm uma cor
Duma expressão tão divina,
Tão misteriosa, tão triste,
Como foi a minha sina.

Os olhos aparecem com relevância, pois o que é desejado é o olhar que não se tem. O objeto de desejo é o tempo todo exaltado, e adjetivos como divino, misterioso e triste se mesclam construindo metáforas, tentando descrevê-lo. Mas não são apenas os olhos que são exaltados, o sorriso também está presente na 13ª e 14ª estrofes, fazendo comparações e sobrepondo este a elementos da natureza.

Na 19ª e 20ª estrofes, é retomada, novamente a imagem da morte: para aniquilar a dor, é necessário aniquilar a alma:

Fazei-me depressa a cova
Que a minha alma morreu.

Alma e coração, parecem se fundir, pois na 22ª estrofe, e a única solução de a dor do sujeito ser extirpada é ficar sem o coração, o responsável pelo amor e dor de amar:

Ai, tirem-me o coração
Que o tenho todo desfeito!
Cada pedaço um punhal
Que trago dentro do peito.
O desejo sobrepõe a vida:
Eu quero viver contigo
Muito juntinho os dois
O tempo que dura um beijo,
Embora eu morra depois.

Foi esse desejo de juntar-se ao objeto desejado que causou o fim trágico de Narciso. É esse desejo que se sobrepõe a própria vida, o desejo de satisfação, satisfação que não existe na realidade objetiva. E em relação a esse desejo de satisfação na obra de Florbela Espanca, diz José Régio:

Numa personalidade contraditória e rica (pelo menos aparentemente contraditória), e “sendo a si tão contrário o mesmo amor” segundo Camões, decerto seriam compreensíveis tais fluxos e refluxos do sentimento, tal diversidade de atitudes, se novos dados não viessem reforçar a hipótese que estou desenvolvendo: impossibilidade de Florbela achar satisfação no amor. (RÉGIO, José. In: Sonetos de Florbela Espanca.1984, 21)

Já na 25ª estrofe do poema, depara-se com o olhar frio,

Quando fito o teu olhar
Tão frio e tão indiferente,
Fico a chorar um amor
Que o teu coração não sente.


na qual o olhar frio e indiferente corresponde à não realização do movimento: se olhar, olhar e ser olhado. O olhar frio e indiferente corresponde, dessa forma, ao não amor, e o fato de não ser olhado/amado conduz o eu-lírico à dor, representada no trecho pelo “choro”. Essa estrofe sintetiza bem a relação entre olhar, desejo, amor e dor, ou seja, a relação que este trabalho vem buscar dentro da obra de Florbela Espanca, fazendo uma ponte, neste capítulo, com os mitos greco-romanos.

A poesia Eu, do Livro de Mágoas, também possui o mesmo eixo temático. Encontramos nela a presença do Olhar não correspondido, do ser que deseja apenas ser olhado, desejado por alguém.

 Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...


Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino e forte, amargo, triste
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
  
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam de triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...
  
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,


E que nunca na vida me encontrou!
(ESPANCA. In:. Livro de Mágoas, 1999, 133)

O soneto Eu é um bom exemplo em que se pode observar a relação entre o olhar, ou seja, a falta do olhar, e a dor provocada por essa falta. O eu-lírico, que aparece sob a forma feminina através da utilização dos pronomes de gênero feminino, se afirma o tempo todo durante as três primeiras estrofes. E nesse reconhecimento de si mesmo, parece se desconhecer. O eu-lírico se apresenta como um ser perdido, e por estar perdida, não se encontra e não é encontrada:

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,

O destino do eu-lírico é amargo, e leva-o à morte. A morte parece ser o único fim para o ser sofrido:

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino e forte, amargo, triste
Impele brutalmente para a morte!

Sofrimento por ser invisível aos olhos dos outros - ninguém o olha -, por não ser compreendida:

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam de triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

A imagem de chorar sem saber o porquê, expõe uma dor cuja causa desconhece o eu-lírico, ou seja, é a partir deste momento que o eu-lírico exprime a sua dúvida identitária. Ele não se conhece porque não se reconhece no outro:

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

Na última estrofe, acima, surge o porquê de toda a dor expressa no soneto: estar no mundo e não ser olhado(a). O desejo do eu-lírico é ser visto, ser olhado, ter significado para o outro. Aparece também a dúvida através do vocábulo “talvez”. Talvez o eu-lírico seja o objeto de desejo perdido de alguém, talvez não. Esse alguém se encontra em maiúscula por poder se tratar de alguém definido que foi predestinado para ele, alguém que veio ao mundo para encontrá-lo e não o encontrou. Talvez o eu-lírico seja esse sonho, o desejo de alguém. Mas como saber? Se desconhece a sua sina, o destino lhe reserva a morte, que seria a anulação total do ser. A morte é o fim do ser que vive na incerteza e na dor de não poder encontrar ou ser encontrada por um objeto de amor.

A imagem do eu-lírico perdido, logo na 1ª estrofe, parece lembrar a imagem da ninfa Eco, no mito de Narciso. A imagem desse ser que não é visto, como ela por Narciso. O ser que é impelido para a morte por não se tornar objeto de desejo de alguém. Tornar-se objeto de amor, ser vista por alguém, parece ser o caminho para a satisfação. O seu contrário significa a dor. Essa mesma temática se segue no poema:

Fanatismo

Minha’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
  
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!


“Tudo no mundo é frágil, tudo passa...”
quando me dizes isto, toda a graça
duma boca divina fala em mim!
  
E, os olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
que tu és como Deus: Princípio e Fim!...”
(ESPANCA. In: Livro de “Sóror Saudade”, 1999,171)

No soneto acima, traça-se a imagem da alma perdida, ou seja, do eu-lírico confuso, confusão causada pelo desejo. O amor enceguece o eu-lírico, pois o olhar se direciona apenas para o objeto de desejo. Nada mais importa. Como se pode notar, as imagens dos olhos e da cegueira são recorrentes na poesia de Florbela. A cegueira, no caso, é o avesso da razão. Outro ponto encontrado aqui é a exaltação do objeto de amor :

Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

O objeto de amor é a “vida” do eu-lírico, o motivo pelo qual ele vive, o que pode se confirmar se levarmos em conta as duas poesias anteriores, nas quais a morte é o fim para quem não encontra e/ou não é encontrado(a) por seu objeto de amor/desejo. Amar parece condição necessária para a vida, não importando se é ou não amado da mesma forma:

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa...”
quando me dizes isto, toda a graça
duma boca divina fala em mim!

A confirmação da vulnerabilidade do amor através dos versos acima não parece ser condição para a tristeza do eu-lírico, e resulta na idealização e confirmação do sentimento deste:

E, os olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
que tu és como Deus: Princípio e Fim!...”

A idealização se confirma na comparação feita entre Deus e o objeto de amor. O amor sentido pelo eu-lírico é coisa impossível de se extinguir, porque está no início e no fim de todas as coisas. Nesse ponto, pode-se fazer remissão ao mito da criação do Universo, no qual o amor aparece como anterior a todas as coisas, pois está na origem. O amor aparece também como incondicional. Não importa como seja sentido pelo outro. É amor, existe, e pronto. A efemeridade do sentimento não existe. Amar parece mais importante que ser amado, neste momento.


Eros está no cerne da poesia de Florbela. Está no Princípio e no Fim, parafraseando os seus próprios versos. Eros dá a vida, e Eros mata com a dor. O mito revive nos versos de Florbela, amor e dor se fundem.

Continuando o passeio pelo olhar, chegamos à origem da nossa literatura de língua portuguesa, a idade média, onde se desenvolveu o movimento conhecido como Trovadorismo, no qual o olhar tinha papel importante para a poesia.


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Fonte:

Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento: “Trocando olhares: o desejo, o amor, a angústia e a dor na poesia de Florbela Espanca.”. (Dissertação apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito de conclusão do Mestrado em Literatura Comparada, sob a orientação do Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros). Natal, 2005. Disponível em: ftp://ftp.ufrn.br/

Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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