17/06/2014

Charneca em Flor, de Florbela Espanca

 Charneca em Flor, de Florbela Espanca PDF
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A superação da dor de amor


O luto da imagem, na medida em que não consigo levá-la a cabo, me angustia; mas, na medida em que consigo realizá-lo, me entristece. Se o exílio do Imaginário é a via necessária para a “cura” deve-se convir que nesse caso o progresso é triste. Essa tristeza não é uma melancolia incompleta (de modo algum clínica), pois não me acuso de nada e não estou prostrado. Minha tristeza pertence àquela orla da melancolia em que a perda do ser amado permanece abstrata. Dupla perda: nem mesmo posso investir em minha desgraça, como naquela época em que sofria por estar enamorado. Naquela época, eu desejava, sonhava, lutava; havia um bem diante de mim, simplesmente adiado, atravessado por contratempos. Agora, nada mais ressoa. Tudo está calmo, e é pior. Se bem que justificado por uma economia – a imagem morre para que eu viva -, o luto amoroso sempre deixa um resto: uma frase ressoa sem cessar: “Que pena!” (BARTHES, 2003, 187)

Esse luto amoroso descrito por Barthes neste fragmento, pode ser encontrado nas poesias de Florbela Espanca, figurado na morte da imagem do ser amado:

AMOR QUE MORRE

O nosso amor morreu... Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre... e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia...
Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer
E são precisos sonhos pra partir.

Eu bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
Doutro amor impossível que há de vir!
(ESPANCA. In: Reliquiae, 1997, 288)

Esse soneto de Florbela Espanca é representativo da imagem do luto do amor. O eu-lírico tem a consciência de que o amor, o sentimento morreu. Foi necessário realizar o luto para evitar o sofrimento demasiado ou a evitar a formação de uma fantasia. Aparece ainda a imagem da cegueira novamente relacionada ao sentimento amoroso:

O nosso amor morreu... Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

No verso Bem estava a sentir que ele morria..., aponta de um sujeito que já conhece e pode prever as conseqüências de um enamoramento, reconhece assim, a efemeridade do sentimento:

Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre... e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia...

O eu-lírico parece já ter vivido a mesma situação antes. A sua cegueira se contrapõe ao abrir dos olhos e enxergar um outro clarão que estar por vir, e esse clarão, nada mais é, mais um novo amor. O amor, o sentimento, que não passava de um engano, se esvai. Reconhece o eu-lírico o amor enquanto sentimento efêmero quando afirma a vinda da luz doutra miragem fugidia. O amor é uma miragem - o que se vê não é a realidade -, além de ser efêmero.

Apesar de enganoso e fugidio, e de ser um sentimento relacionado à dor, morte, aniquilação do sujeito, o amor também, reconhece o eu-lírico, é essencial para a vida:

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer
E são precisos sonhos pra partir.


Confirma-se, mais uma vez, o paradoxo vidamorte do amor na obra poética de Florbela Espanca: o amor é princípio e fim, parafraseando um de seus poemas. Entretanto, após a morte, a destruição, vem a reconstrução, e essa depende do sonho. É necessário sonhar para conseguir abandonar os velhos sentimentos. Do velho sentimento resta, apenas, a esperança para viver um outro amor, mesmo reconhecendo a sua efemeridade:

Eu bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
Doutro amor impossível que há de vir!

Na obra de Florbela, o luto, o esquecimento de um amor está relacionado à condição da vida:

A VIDA

É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés d’alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!

Todos somos no mundo “Pedro Sem”,
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo d’onde vem!

A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...

Amar-te a vida inteira eu não podia.
A gente esquece sempre o bem dum dia.
Que queres, meu Amor, se isto é a Vida!...
(ESPANCA. In: Livro de “Sóror Saudade”, 1999, 195)

Podemos observar no soneto, mais uma vez, a percepção do eu-lírico em relação à efemeridade dos sentimentos: amor, ódio, desdém. Qualquer tipo de sentimento, assim como o desejo é inútil:

É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés d’alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!

A ilusão do amor se desfaz, e o que resta é a nostalgia, uma saudade que parecia adormecida, mas logo se desfaz:

A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...

A efemeridade do amor não permite a eternidade deste. Acabamos por esquecer o que um dia nos foi importante. Essa é a condição da vida:

Amar-te a vida inteira eu não podia.
A gente esquece sempre o bem dum dia.
Que queres, meu Amor, se isto é a Vida!...

A morte do amor é condição para o surgimento de outro amor, como vimos no soneto Amor que morre. É nesse ponto em que na poesia de Florbela aparece a temática que é a negação do único e grande amor e o encontro com vários amados:

Assim se fecha um ciclo: espera do amante-amado; encontros com vários amados; sentimento do desencontro; negação do amor único e do grande amor; entrega ao amar só por amar, com recusa de pertencer a alguém; total decepção do amor dos homens; apelo para um Deus que não virá.(RÉGIO, José. In: Sonetos de Florbela Espanca, 1984, 24) 
Em várias poesias de Florbela percebemos a presença da temática da inconstância do objeto de amor, o que exprime a própria condição da pulsão (rever conceito de pulsão no Capítulo I). A dinâmica do desejo permite que este se realize em vários objetos de amor. Não existe a completude procurada pelo sujeito. Um outro não totaliza o que é desejado, procurado. Um outro ser não é capaz de preencher a falta do sujeito. A incompletude reina, então.

AMAR!

Eu quero amor, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz foi pra cantar!

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba prender... pra me encontrar...
(ESPANCA. In: Charneca em flor, 1999, 232)

O soneto acima confirma a dialética do objeto de desejo através da multiplicidade do verbo amar. Amar a todos é o que importa, não importa a quem, ou seja, o objeto sempre substitui um outro que já partiu, e assim, não amar a ninguém, que representa a consolidação do desejo no simbólico:

Eu quero amor, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Assim se confirma também, mais uma vez, a efemeridade do sentimento:

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Torna-se indiferente qualquer tipo de sentimento, pois não perduram. Eles duram um tempo determinado, que no soneto é representado pela estação da primavera, que é a estação do desabrochar das flores, que aqui pode remeter ao desabrochar do sentimento, do desejo:

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz foi pra cantar!

Reconhece-se, assim, a multiplicidade dos sentimentos que a obra de Florbela comporta. Partindo do desejo suscitado com o olhar, passamos pela vassalagem amorosa, chegando ao olhar negado, responsável pela dor e angústia do sujeito. A conseqüência da dor é o luto ou a fantasia de um amor. Completa-se o ciclo com a busca de um novo objeto de amor.

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Fonte:
Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento
: “Trocando olhares: o desejo, o amor, a angústia e a dor na Poesia de Florbela Espanca”. (Dissertação apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito de conclusão do Mestrado em Literatura Comparada, sob a orientação do Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros). Natal/RN, 2005.

Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível em: ftp.ufrn.br

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