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Estrangeirização e
domesticação na obra de Anchieta
Lawrence
Venuti em seu trabalho The Translator´s Invisibility toma como ponto de
partida para sua análise evidências da ocorrência de traduções
estrangeirizadoras e domesticadoras na história e em estudos teóricos da
tradução do Ocidente. Ele afirma que a estratégia de se domesticar uma tradução
tem ocorrido pelo menos desde o Império Romano e a tradução por vezes tem se
configurado como ferramenta de conquista. Como exemplo, cita que os tradutores romanos de obras gregas não apenas excluíam os
marcadores culturais como também
acrescentavam alusões à cultura romana, substituindo os nomes dos poetas gregos
por nomes de poetas romanos, com a finalidade de dar a impressão que os textos
haviam sido originalmente escritos em latim.
Fazendo um
paralelo com textos traduzidos para o inglês na sociedade anglo-americana contemporânea,
Venuti conclui que o método “domesticador” – o qual, na análise de Nida, pode
corresponder à equivalência dinâmica - é uma redução etnocêntrica do texto estrangeiro
na língua, cultura e valores de chegada e implica em uma tradução fluente. Tal tradução faz com que o texto seja reconhecido e
compreendido, tornando-se um texto familiar e domesticado, registrado na
linguagem padrão da cultura receptora e não em um discurso variante.
Quanto à tradução “estrangeirizadora”,
Venuti afirma que ela pode apresentar “uma estratégia discursiva que se desvia
da hierarquia prevalecente do discurso dominante na cultura de chegada. A
escolha do texto a ser traduzido pode até mesmo desafiar o cânone de determinada
época da literatura estrangeira na cultura receptora”. Venuti exemplifica
sua afirmação através de traduções de Pound, de Newman e de suas próprias.
Em suas palavras, a
tradução por ele feita de poemas do italiano Milo De Angelis desafiou a estética
dominante anglo-americana por reproduzir a descontinuidade e a indeterminação inerentes
ao texto original. Lê-se em De Angelis:
“Esseri dispotici
regalavano il centro
distrattamente, com una
radiografia,
e in sogno padroni
minacciosi
sibilanti:
‘se ti togliamo ciò che
non è tuo
A tradução
de Venuti devido a sua quase literalidade, torna o texto estranho à sintaxe e à
estética dominante na poesia em língua
inglesa:
“Despotic beings made a gift of the center
absentmindedly, with an X-ray,
and in a dream threatening bosses
hissing:
‘if we take from you what isn’t yours
you’ll have nothing left’.”
(Seres despóticos
ofereciam o centro
distraidamente, com uma
radiografia
e em sonho patrões
ameaçadoramente sibilantes:
‘se lhe tirarem o que
não é seu,
Anchieta
incorre em solução semelhante à encontrada por Venuti, através dessa estrangeirização, na manutenção da literalidade na
transcrição para o tupi. Como
comentada anteriormente, a comparação entre o fluxo de discurso das obras de Anchieta
e o da carta de Diogo Camarão pode nos revelar uma estrangeirização semelhante,
sob a luz dos parâmetros propostos por Crofts (1974), que diferenciam a língua
indígena e o português. Ao analisarmos as poesias anchietanas anteriormente,
encontramos evidências de estrangeirização na
redação do jesuíta, como também nota João Hansen:
“Metrificar o tupi com a
redondilha menor medieval impõe uma acentuação, um ritmo e a forma de
respiração européia que o aculturam. Rimar o tupi submete a língua do indígena
a um sistema musical de equivalências relacionadas ao principio de similitude
e, portanto, ao princípio metafísico de identidade, Deus.”
Apesar de
não defender indiscriminadamente a valorização da cultura estrangeira ou o conceito
metafísico de elementos estrangeiros como valores essenciais, Venuti considera que
o texto estrangeiro deve ser privilegiado em uma tradução estrangeirizadora
apenas se ele permitir a ruptura de códigos
culturais da cultura de chegada, de forma que o valor da tradução estrangeirizadora
é estratégica, conforme a formação cultural na qual ela estará inserida. A tradução
estrangeirizadora engloba a aproximação do texto estrangeiro e o distanciamento
dos valores dominantes da cultura de chegada.
A "escolha de um
texto estrangeiro a ser traduzido pode ser tão ‘estrangeirizadora’ pelo seu
impacto sobre a cultura de chegada quanto pela invenção de uma estratégia discursiva”.
A estrangeirização na
tradução, segundo Venuti, pode assumir formas variadas, tais como:
a) alta fidelidade ao texto
estrangeiro;
b) preservação de
marcadores culturais estrangeiros;
c) a
criação de variações dialetais na linguagem da cultura de chegada, tais como
jargões, terminologia técnica, inovações
estilísticas, neologismos e figuras literárias (metáforas).
Podemos encontrar na obra
anchietana a ocorrência das três formas acima. Contudo, Anchieta também utiliza
a estratégia domesticadora, em especial quando ele recorre à equivalência
dinâmica de Nida.
Sob a ótica de Venuti, a
tradução domesticadora é tradução transparente e fluente. Ela elimina a
diferença lingüística e cultural do texto original em relação à cultura de
chegada e freqüentemente é reescrita com outras representações sociais, crenças
e valores da cultura receptora.
Em consonância com a
hipótese de Venuti, o teatro de Anchieta - ancorado na estrutura, ideologia e
temática do teatro vicentino - em algumas passagens aponta para uma tradução “transparente”,
proporcionando a seu expectador uma leitura fluente através de personagens reconhecidos pelo público formado por
índios e colonos. O Auto de São Lourenço tem entre seus protagonistas
Guaixará, Aimbirê e Sarauaia, chefes indígenas inimigos dos tupiniquins. No
início do segundo ato, Guaixará é recebido por uma velha índia com a tradicional saudação lacrimosa dos tupis. Entre os
personagens conhecidos pela platéia, desfilam outros apenas conhecidos pelos
europeus, tais como São Sebastião e São Lourenço.
Anchieta oscila entre
estrangeirismo e domesticação. Similar à ótica de Venuti, a dicotomia proposta
por Schleiermacher, que dispõe em pólos opostos autor e leitor, prega que estrangeirizar
é levar o leitor até o autor. Esse último fica intacto, enquanto o leitor fica sujeito
aos códigos da língua do autor. Considerando que no caso da catequização dos tagalos,
bem como na dos silvícolas do Brasil, temos a relação leitor–colonizado e autor–colonizador, a tradução estrangeirizadora
faz com que o leitor–colonizado se mova em direção
ao autor. Analisemos algumas ocorrências de traduções estrangeirizadoras e domesticadoras
nos seguintes trechos do Auto de São
Lourenço e Na aldeia de Guaraparim:
“Kûeîsé kó a-por-apiti
aîuruîuba îukábo,
ûi-nhe-moerapûã-ngatû-abo
T’a-só nde pyr-y, kori,
(Eis que ontem trucidei
gente,
matando europeus,
tornando-me muito
famoso.
Hei de ir junto de ti,
hoje,
Para comer aqueles reis)
Na fala do demônio Kaburé,
Anchieta recorre ao termo “aîuru-îuba” para designar - em uma tradução
domesticada - “europeus”. Tal expressão em tupi, que literalmente significa “papagaios
amarelos”, era utilizada depreciativamente por certos índios ao referirem-se a
franceses e ingleses.
No trecho do auto a aldeia de Guaraparim, Anchieta
opta pela estrangeirização, através da manutenção do termo português ‘cristão’,
em vez de grafar alguma expressão explanatória em tupi:
S-emo’ẽ, oiobaupa.
Xe r-erok-eté pa’i.
A-royrõ-mbá t-ekó-poxy,
Abaré nhe’eng-endupa.
(Eles mentem, um de cara
para o outro.
Batizou-me,
verdadeiramente, o padre.
Detesto completamente o
pecado,
Ouvindo a palavra do
padre.
Eu sou cristão, eu sou
virtuso.)
Um pouco mais adiante, no
mesmo auto, notamos seqüencialmente uma tradução omesticada e
estrangeirizadora:
“Tupã-eté r-erobîara
îa-î-poraká xe ybyîa.
Diabo 1 - Abá-pe nde
r-erok-ara?
Alma – Akó Ana gûaîbĩ
rainha,
(A crença no Deus
verdadeiro
encheu meu interior.
Diabo 1 – Quem foi tua
madrinha?
Alma – Aquela velha Ana,
rainha,
que ama o Senhor Deus.)
A expressão ‘r-erok-ara’
significa ‘a que tirou o nome’ (com alusão ao fato de substituí-lo por um outro
nome cristão) e faz referência direta ao papel de uma ‘madrinha’. Contudo, ao
fazer referência a Santana, Anchieta não tem a preocupação de encontrar um
equivalente em tupi para o termo ‘rainha’.
No corpus objeto de
nosso estudo, as representações sociais, crenças e valores da cultura de chegada
são reorganizados com o intuito de introduzir a cosmologia européia na vida do indígena.
O Anchieta tradutor manipula esses elementos em prol de sua missão e os mesclam
com elementos inéditos e alienígenas ao seu público.
Além das considerações
teóricas de Nida, Lefevere e Venuti, acreditamos que muito nos serve a matriz
proposta por Maria Tymoczko para classificarmos a obra de Anchieta, conforme
analisaremos na seção seguinte.
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Fonte:
Paulo Edson Alves Filho: “Tradução e sincretismo nas obras de José de Anchieta”. (Tese apresentada ao Departamento de Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com vistas à obtenção do título de Doutor. Orientador: Prof. Dr. John Milton. Universidade de São Paulo). São Paulo, 2007.
Fonte:
Paulo Edson Alves Filho: “Tradução e sincretismo nas obras de José de Anchieta”. (Tese apresentada ao Departamento de Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com vistas à obtenção do título de Doutor. Orientador: Prof. Dr. John Milton. Universidade de São Paulo). São Paulo, 2007.
Notas:
A imagem inserida no texto não se
inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz
menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é
apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma
compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua
totalidade. Disponível em: www.teses.usp.br
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