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Virgílio Várzea: Percurso
Na segunda metade do século XIX,
um filho de portugueses, cujo pai comandava uma embarcação transportando
mercadorias e imigrantes pelo litoral de uma pequena província dos confins
brasileiros, recebeu o mesmo nome de um dos mais estimados escritores do
império romano e um dos mais célebres poetas de todos os tempos. Nascido a bordo
de um barco, crescido numa pequena ilha subtropical, Virgílio Várzea traz no primeiro
nome uma tradição literária muito remota, associada à construção não só da
poesia pastoril, mas de uma obra que se tornou marco fundante da civilização
latina. Porém, formando um oxímoro, o segundo nome o coloca junto aos vales e
planícies. Assim, entre o célebre e o ignoto, delineia-se um Virgílio das
terras planas, herdeiro de marcos territoriais e culturais trazidos pelas lides
marítimas e pelas fantasias literárias, que bordejou espaços da vida pública
desde fins do Império e primórdios republicanos, exercendo ao longo da vida
atividades de funcionário público e deputado, jornalista e escritor.
Um século mais tarde seu nome
seria especialmente lembrado por ser o mesmo de uma rodovia que conduz à parte
norte da ilha-capital, onde anteriormente ficava a antiga freguesia em que
nasceu. Mas é bem possível que dentre todos os usuários e turistas que transitam
pelas vias chãs que levam ao balneário, poucos saibam que publicava narrativas curtas
que em boa parte cabiam na dimensão das edições de bolso, com editoração
modesta e muito semelhante a de almanaques, enquanto aspirava um assento na recém-criada
Academia Brasileira de Letras. Eis então uma outra característica do
protagonista: um escritor nem notável, ilustre ou glorioso, tampouco maldito ou
malvisto, clandestino ou infame, cuja produção literária não pode ser alçada ao
firmamento, mas também não pode ser jogada à sarjeta. Se seus escritos não
pertencem aos cânones da mais alta, erudita ou refinada literatura, nem por
isso se constituem em escrituras de caráter meramente popular, marginal ou
ordinário. Característica que remete ao contingente de artistas e intelectuais medianos,
habitantes de um território localizado entre extremos, mas não menos desejosos de
reconhecimento pelas marcas escolhidas para alcançar a posteridade.
Em seus registros biográficos não
consta nenhuma grande tragédia ou feito político, econômico, étnico, religioso,
familiar ou mesmo pessoal que lhe pudesse assegurar certa notoriedade.
Igualmente não constam dados que evidenciem um destino absolutamente errático,
desventuroso ou pantanoso e nem uma existência que possa ser destacada como sinistra
ou desastrosa. Nem mesmo trata-se de um escritor colhido pela morte prematura, fenômeno
que freqüentemente assegura aos aspirantes da vida artística-intelectual certo suspense
em torno dos talentos que não se manifestaram a tempo. Na juventude foi amigo e
parceiro das primeiras aventuras jornalísticas e literárias de Cruz e Sousa,
mais adiante, na idade adulta foi colega de trabalho de Olavo Bilac, porém não
se tornou porta-voz devotado à poética simbolista do primeiro parceiro ou
parnasiana do segundo poeta. Também foi contemporâneo de Machado de Assis,
Euclides da Cunha e Lima Barreto. Mas evitou tematizar, tanto quanto possível,
a ambiência do Rio de Janeiro, bem como a do interior territorial com vistas a
documentar os sofrimentos e dramas dos esquecidos fora do circuito urbano. Não
afeito à maneira machadiana de tratar as elites do circuito cosmopolita, tampouco
demonstrou preferência pelos seus segmentos remediados ou miseráveis.
Todavia, se Virgílio Várzea era
portador de ambições literárias que não se realizaram, não se pode simplesmente
atribuir este fato a sua inscrição isolada ou periférica, uma vez que se trata
também de um desafio que coube a muitos escritores de seu tempo. Assim, numa
conferência que assinalava os cinqüenta anos da morte de Baudelaire, Paul Valery
observou que o autor de As flores do mal foi contemporâneo do romantismo, justo
na fase de seu apogeu, sendo que seu desafio era tornar-se um grand poète, mais
n’être ni Lamartine, ni Hugo, ni Musset. Nasceria daí um sortilégio de tensões
e combinações da poética baudelairiana e que, tanto no que tange a sua temática
como a sua abordagem, pagou tributo à embriaguez
musical e recorreu à turbulência pictoral das cores e formas, tornando-se o
mais misterioso de todos os poetas da literatura ocidental, fenômeno que permite
entrever o incessante jogo de articulações entre beleza e morte, efêmero e
infinito, modernidade e fantasmagoria.
Ocorre que, longe da busca pela
autonomia da obra, tal como o fizeram Mallarmé pelo lado da literatura em
findos oitocentistas ou os pós-impressionistas na nascente do século XX,
Virgílio Várzea preferiu as assimilações compósitas e as figurações híbridas em
tempos art-nouveau. Foi assim que entre 1884 e 1910 guardou particularidades
estéticas de um período posteriormente chamado belle époque, cujas publicações
foram catalogadas como um opúsculo e duas coletâneas de poemas , cinco
coletâneas de contos, um romance , quatro novelas e dois estudos considerados
de caráter descritivo, distribuídos entre editoras de sua cidade natal e do Rio
de Janeiro, além de seis publicações em casas de edição portuguesas e quatro
francesas. Todas estas publicações datam de um tempo lacunar, em que as
certezas abolicionistas e as militâncias republicanas foram minguando, enquanto
os engajamentos modernistas não eram suficientemente visíveis e nem se definiam
ou validavam novas convicções e causas reivindicadas por grupos específicos em
nome de vanguardas estéticas. Enquanto assistia às esperanças políticas e
estéticas, advindas dos tempos imperiais, resultarem em desapontamentos e
abandonos, oscilando entre o cinismo arrivista e a ironia desencantada,
certamente não escaparam a este Virgílio as ambições mais pessoais que
desnudavam escolhas, confrontando interesses e relativizando grandezas de modo
insuspeitável antes do início republicano.
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Fonte:
Fonte:
Rosângela Miranda Cherem: “Aparições
da textualidade: dizer e ver um Virgílio”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, para obtenção do Grau
de Doutora em Literatura, sob a orientação do Prof. Dr. Raul Antelo). Florianópolis,
2006.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade. Disponível em: repositorio.ufsc.br
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