03/05/2014

O Hissope, de Antônio Diniz da Cruz e Silva

 O Hissope - Antonio Diniz da Cruz e Silva - Iba Mendes
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O Hissope: crítica e intertextualidade na obra de António Dinis da Cruz e Silva

O poema a partir do qual serão ilustradas as características do gênero é O Hissope, de António Dinis da Cruz e Silva. A obra de Cruz e Silva faz parte de um conjunto de poemas herói-cômicos portugueses cuja elaboração se deu no século XVIII. Esta obra, manuscrita em 1768 pelo seu autor quando ele exercia o cargo de auditor militar em Elvas, trata da querela envolvendo o deão da Sé de Elvas, José Carlos de Lara, e o bispo Lourenço de Lancastro, por conta da recusa por parte daquele de entregar a este o hissope à porta da Igreja, como era costumeiro na cidade por ocasião das visitas do bispo. Tal matéria menor é o motivo a partir do qual Cruz e Silva constrói um enredo cuja estruturação e recursos narrativos são típicos da literatura dedicada a temas heróicos e elevados – a épica. Mantém-se desta a estrutura narrativa contendo proposição, invocação e narração, a abundância de epítetos, a existência dos planos real e maravilhoso, sendo ainda o poema enriquecido com citações recorrentes de obras épicas como Eneida e Geórgicas de Virgílio, bem como de outros poemas como as Metamorfoses de Ovídio, Orlando Furioso de Ariosto e, principalmente, o poema herói-cômico Le Lutrin de Boileau e o poema épico Os Lusíadas de Camões.

Uma razão que motiva a escolha da obra é não apenas a importância da mesma entre as várias obras herói-cômicas portuguesas, mas a relação do seu autor com o Brasil. António Dinis da Cruz e Silva foi chanceler da relação no Rio de Janeiro entre 1766 e 1799, sendo participante ativo em 1791 no julgamento e condenação de Tomás António Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, inconfidentes mineiros. Cruz e Silva também foi o autor de um poema épico da Arcádia intitulado Metamorfoses, dedicado ao Brasil e à exaltação das belezas naturais brasileiras. Ambos os fatores são elementos que motivam o pesquisador à investigação da obra de Cruz e Silva, em especial aquela que, não sendo obra típica da Arcádia Lusitana, representa provavelmente o empreendimento literário mais bem sucedido quanto à recepção por parte dos leitores e quanto à influência em obras portuguesas posteriores: O Hissope.

O século XVIII é o ano da eclosão do poema herói-cômico na literatura portuguesa. As obras Monoclea (anterior a 1733), O Foguetário (entre 1729-1742), Benteida (1752), O Desertor (1774) e Reino da Estupidez (1781), Malhoada (antes de 1786) e Os Toiros (1796)são exemplos significativos da utilização do gênero em um século de concomitante eclosão do ideário iluminista, e da influência marcante de Horácio e Boileau. António Cruz e Silva, autor de O Hissope, foi um importante nome do movimento árcade português. Sob o pseudônimo de Elpino Nonacriense, participou da fundação do movimento Arcádia Lusitana em terras lusitanas. Escreveu       O Hissope       quando era magistrado na cidade de Elvas e tomou conhecimento da demanda estabelecida entre José Carlos Lara, deão da Catedral de Elvas, e o bispo Lourenço Lancastre.

O problema que motivou poema de Cruz e Silva foi a insatisfação do bispo com o deão, que costumeiramente oferecia ao bispo, quando de suas visitas à Sé de Elvas, no início da celebração da missa, o hissope. O bispo, sentindo-se ofendido, conseguiu junto ao cabido cardinalício a penalização do deão de Elvas, que apelou, por sua vez, da decisão junto a outras instâncias eclesiásticas, que rejeitaram a apelação. Conhecedor de tais eventos, Cruz e Silva elaborou um poema herói-cômico de inspiração iluminista, no qual critica futilidades e vãs disputas clericais, o relaxamento moral dos religiosos, o destempero que os caracterizava e a sua ignorância. Diniz também critica o “francesismo” dos clérigos, o seu constante apelo à filosofia e à teologia escolástica, as tendências barrocas e fanfarrice dos clérigos poetas e o purismo estéril dos gramáticos e canonistas. Tais elementos, em conjunto, são reunidos pelo autor e consistem uma crítica vigorosa de influência humanístico-racional.

O poema O Hissope revela ainda a conservação do ethos clássico ao poema, mas não consoante a carnavalização do  genus épico, como se percebe na Eneida Travestita de Giambattista Calli, e Virgile Travesti, de Scarron. O poema de Cruz e Silva é, na verdade, paródia proveniente do épico, assim como “de uma mãe formosa nasce um feto ridículo”. A sua inspiração é proveniente do herói-cômico francês, em especial, Le Lutrin, de Boileau, com o qual conserva afinidades formais. A influência imediata que é possível perceber em O Hissope pode ser observada no próprio poema, logo no início do seu Canto I, em que se menciona nominalmente a influência de Boileau:


Eu canto o BISPO, e a espantosa guerra,
Que o HYSSOPE excitou na Igreja d’Elvas.
Musa, Tu, que nas margens aprazíveis,
Que o Sena borda de árvores viçosas,
Do famoso Boileau a fértil mente
Inflamaste benigna, Tu me inflama;
Tu me lembra o motivo; Tu, as causas,
Por que a tanto furor, a tanta raiva
Chegaram o Prelado, e o seu Cabido.
[O Hissope, I.1-9]

Logo, tanto Le Lutrin quanto  O Hissope são paródias do gênero épico, as quais revelam um inegável “débito de Cruz e Silva em relação a Boileau”. Além disto, ambos os poemas se referem a fatos historicamente discerníveis e ambos são inspirados por conflitos entre clérigos. Porém, Le Lutrin originou-se a partir de uma discussão literária a respeito da matéria do poema heróico, que pode ser, segundo Boileau, matéria menor, continuando ainda assim, excelente. A inspiração de Cruz e Silva, distintamente de Boileau, é o anticlericalismo de inspiração pombalina.

socius do poema O Hissope é a cidade de Elvas, que fornece o ridens et ridiculus tópico para o poema. A cidade, próxima a Badajoz, na Espanha, é provinciana e especialmente conhecida mais pelas enormes azeitonas que produz do que pela sofisticação de seu povo. Tal ambiência serve aos propósitos do autor, que cancela as enteléquias ou as utiliza para a matéria menor – ou seja, o tópos também fornece o pano de fundo necessário aos propósitos do gênero: produzir o efeito cômico pelo jungir das temáticas e formas de expressão das mesmas, desproporcionais e, por isso, risíveis.

As categorias formais da épica utilizadas em O Hissope revelam a intenção da promoção do up-to-date camoniano do gênero: Cruz e Silva lança mão de elementos da épica camoniana, ou mesmo de episódios significativos de Os Lusíadas em seu poema. Parte significativa da estrutura épica também é mantida: a exposição do tema, a invocação às musas, bem como episódios, como o episódio profético do agouro do galo, reminiscência do episódio do velho do Restelo. Cruz e Silva também mantém a presença do duplo plano da épica camoniana: o pleno humano e o plano divino. Porém, o plano divino de Cruz e Silva apresenta uma mitologia específica, com divindades próprias ao exercício do efeito cômico: “Gênio das Bagatelas”, “Excelência” (divindade protetora do bispo), “Senhoria” (divindade protetora do deão), “Lisonja”, “Discórdia”, entre outras. Deuses da mitologia clássica latina também são mencionadas em O Hissope: “Anticyras”, “Amphitrite”, “Neptuno”, “Tritões”, “Zéphyro”, “Flora”, “Górgones”, “Cefastas”, “Baccho”, “Morpheu”, “Ceres”, “Jope”, “Marte”, “Juno”, “Pallas”, “Arachne” e “Minerva”.

A respeito do papel das personagens divinas em O Hissope, as divindades alegóricas exercem funções de primária importância na narrativa, pois representam ao mesmo tempo a presença do divino e os sentimentos e/ou motivações das personagens. Por tal razão, as divindades mitológicas clássicas não fazem parte do panteão mais fundamental de O Hissope, mas cooperam às relações intertextuais e às referências indispensáveis ao atrelamento do gênero à épica, pois os motivos e as alusões relacionados às divindades mitológicas exercem um papel muito importante nos poemas heróicos. Algumas dessas divindades são alusivas às críticas feitas às personagens – por exemplo, Baccho é a divindade a quem se atribui o costume dos eclesiásticos de beber em demasia. Outras são citadas de passagem, servindo para a ambiência elevada do poema – como, por exemplo, a símile entre o concílio dos deuses no poema e o Zéfiro, onde Flora atravessa entre as flores. Observa-se, portanto, que, em linhas gerais, as divindades tradicionais do panteão clássico exercem funções secundárias na trama. E é nesse âmbito que também são feitas alusões aos heróis e anti-heróis épicos (Adônis e Páris, por exemplo), cujas alusões referenciam personagens e eventos em O Hissope cujo significado depende do conhecimento sobre tais personagens nos mitos da Antiguidade. Logo, é importante observar que o gênero herói-cômico pressupõe o conhecimento prévio do gênero épico, sem o qual ele fica drasticamente esvaziado em seu poder expressivo e, por tal razão, cômico.

Também há no poema herói-cômico O Hissope alusões mitológicas na adjetivação, tal como procede Camões em Os Lusíadas. Expressões de influência camoniana são recorrentes em O Hissope, como “itúreo arco”, “idália selva” e “neptunina Tróia” (eco das “neptuninas ondas” de Os Lusíadas    I.58.2). Tais alusões épicas são elementos de refinamento da narrativa, característica aprofundada no uso do recurso, em ambos os poemas, de vocabulário culto nas expressões “pérfidos solípsos” (Os Lusíadas X.26.8, O Hissope I.25), “excelso/magnífico palácio (Os Lusíadas X.51.6, O Hissope I.101), Neptuno undoso (“mar undoso” em Os Lusíadas VII.21.5), “régio sólio” (expressão “régio sólio posto” de Os Lusíadas X.146.6, “funesto influxo” (Os Lusíadas X.146.1, O Hissope I.218), “idôneo tempo” (Os Lusíadas VIII.78.3, O Hissope I.239) entre outras.

Os recursos estilísticos também fazem parte do conjunto de elementos aproximantes entre Os Lusíadas e O Hissope. Um exemplo importante é a utilização, em Os Lusíadas, de contrastes entre tempos verbais da mesma sequência frásica, o que se repete em o Hissope. Em Os Lusíadas I.90.7-8, há:

Já blasfema da guerra, e maldizia,
O velho inerte, e a mãe que o filho cria.

A mistura dos tempos verbais (presente e pretérito) também se dá em O Hissope nas
seguintes passagens:

Pela comprida sala passeava,
Sorvendo uma pitada de tabaco,
Do quando em quando, sua Senhoria:
Ora a janela chega, e aplicando
Uma pequena lente à curta vista,
O que passa na Praça vigiava;
Ora arrotando, para dentro, torna.
[O Hissope, I.239-235]

Comia pouco, pouco repousava,
Não joga, nem Café, nem Chá bebia.
[O Hissope, VIII.64-65]

A verossimilhança nos usos dos tempos verbais entre Os Lusíadas e O Hissope, a qual se repete nesta última obra em I.220-225, II.373-375;457-460, revela que os usos lingüísticos camonianos são vivazes reminiscências na obra de Cruz e Silva, apontando para a intencionalidade do poema herói-cômico de parecer, em sua diccção, com o poema épico e, assim, provocar o efeito, quando da observação dos temas referidos em tais usos (no caso dos acima referidos, arrotos, fumo, jogos entre outros), de jocosidade.

As enumerações também fazem parte do conjunto de recursos que aproximam a épica do poema herói-cômico. O uso da forma “catálogo” para se referir a povos, guerreiros, comandos, naus e outros é um recurso expressivo da épica no afã ou de atribuir a memória de tais listas às divindades inspiradoras (musas), recurso mitopoético importante para a qualificação da natureza do texto.  Em Camões, o uso da lista ou catálogo serve, por exemplo, para enumerar povos e terras na exposição da geografia da Europa por Vasco da Gama (Os Lusíadas III.3-19). O mesmo recurso do apelo à Musa serve em Camões para indicar a forma pela qual o poeta sabe de uma conversa privada entre Vasco da Gama e o Rei de Portugal. O poema de Cruz e Silva também lança mão das listas, não mais para justificar a onisciência do narrador, mas especialmente para reforçar o efeito cômico do poema mediante enumeração mais breve ou pela formulação de catálogos de maior fôlego.

Nestes, o autor destaca o estado deplorável do clero ou qualifica de forma pejorativa personagens e hábitos,  ou mesmo utiliza os catálogos e enumerações para indicar o exagero na frugalidade dos religiosos. Neste último caso, a hiperbolização mediante a indicação das quantidades de cada alimento, juntamente com a catalogação dos alimentos do banquete, formam um contexto cômico-crítico significativo a partir da apropriação de formas típicas da épica e que nestas estão via de regra despojadas de sentido jocoso.

Percebe-se, portanto, que o gênero herói-cômico carece imprescindivelmente de um modelo épico que lhe empresta formas, temas, estruturas e linguagens. O gênero, ao se apropriar das tais, desvela de forma cômica a matéria escolhida pelo poeta: o canto do vil, do anti-herói, da situação despojada de nobreza. Por causa destas características é que o gênero desapareceu, pois a épica também sofreu modificações profundas até o seu relativo desaparecimento. As alusões interliterárias aos clássicos da Antiguidade, que explicam a mitologia que perpassa os poemas do século XVIII, entraram em desuso. A épica camoniana, ainda admirada, não inspira mais a feitura de poemas de maior fôlego que mantenham suas diretrizes e características gerais. Por tais razões, o poema herói-cômico é um gênero praticamente morto, mas cujo valor e interesse podem ser evocados mediante a observação e análise de textos como o Hissope, cuja qualidade literária e habilidade no uso cômico da épica é eficiente e, ainda hoje, vivaz.
  
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Fonte:

Brian Gordon Lutalo Kibuuka (da UFRJ): “O Hissope: crítica e intertextualidade na obra de António Dinis da Cruz e Silva”. Disponível em: www.uefs.br

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