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O Hissope: crítica e
intertextualidade na obra de António Dinis da Cruz e Silva
O poema a partir do qual serão
ilustradas as características do gênero é O Hissope, de António
Dinis da Cruz e Silva. A obra de Cruz e Silva faz parte de um conjunto de
poemas herói-cômicos portugueses cuja elaboração se deu no século XVIII. Esta
obra, manuscrita em 1768 pelo seu autor quando ele exercia o cargo de auditor
militar em Elvas, trata da querela envolvendo o deão da Sé de Elvas, José
Carlos de Lara, e o bispo Lourenço de Lancastro, por conta da recusa por parte
daquele de entregar a este o hissope à porta da Igreja, como era costumeiro na
cidade por ocasião das visitas do bispo. Tal matéria menor é o motivo a partir
do qual Cruz e Silva constrói um enredo cuja estruturação e recursos narrativos
são típicos da literatura dedicada a temas heróicos e elevados – a épica.
Mantém-se desta a estrutura narrativa contendo proposição, invocação e
narração, a abundância de epítetos, a existência dos planos real e maravilhoso,
sendo ainda o poema enriquecido com citações recorrentes de obras épicas
como Eneida e Geórgicas de
Virgílio, bem como de outros poemas como as Metamorfoses de Ovídio, Orlando
Furioso de Ariosto e, principalmente, o poema herói-cômico Le
Lutrin de Boileau e o poema épico Os Lusíadas de
Camões.
Uma razão que motiva a escolha da
obra é não apenas a importância da mesma entre as várias obras
herói-cômicas portuguesas, mas a relação do seu autor com o Brasil. António Dinis
da Cruz e Silva foi chanceler da relação no Rio de Janeiro entre 1766 e 1799,
sendo participante ativo em 1791 no julgamento e condenação de Tomás António
Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, inconfidentes
mineiros. Cruz e Silva também foi o autor de um poema épico da Arcádia
intitulado Metamorfoses, dedicado ao Brasil
e à exaltação das belezas naturais brasileiras. Ambos os fatores são elementos
que motivam o pesquisador à investigação da obra de Cruz e Silva, em especial
aquela que, não sendo obra típica da Arcádia Lusitana, representa
provavelmente o empreendimento literário mais bem sucedido quanto à
recepção por parte dos leitores e quanto à influência em obras portuguesas posteriores: O
Hissope.
O século XVIII é o ano da eclosão do
poema herói-cômico na literatura portuguesa. As obras Monoclea (anterior
a 1733), O Foguetário (entre 1729-1742), Benteida (1752), O Desertor (1774) e Reino da Estupidez (1781), Malhoada (antes
de 1786) e Os Toiros (1796). são exemplos
significativos da utilização do gênero em um século de concomitante eclosão do ideário
iluminista, e da influência marcante de Horácio e Boileau. António Cruz e
Silva, autor de O Hissope, foi um importante nome do movimento
árcade português. Sob o pseudônimo de Elpino Nonacriense, participou da
fundação do movimento Arcádia Lusitana em terras lusitanas.
Escreveu O Hissope quando
era magistrado na cidade de Elvas e tomou conhecimento da demanda estabelecida
entre José Carlos Lara, deão da Catedral de Elvas, e o bispo Lourenço
Lancastre.
O problema que motivou poema de Cruz
e Silva foi a insatisfação do bispo com o deão, que costumeiramente
oferecia ao bispo, quando de suas visitas à Sé de Elvas, no início da
celebração da missa, o hissope. O bispo, sentindo-se ofendido, conseguiu junto
ao cabido cardinalício a penalização do deão de Elvas, que apelou, por sua vez,
da decisão junto a outras instâncias eclesiásticas, que rejeitaram a
apelação. Conhecedor de tais eventos, Cruz e Silva elaborou um poema
herói-cômico de inspiração iluminista, no qual critica futilidades e vãs disputas
clericais, o relaxamento moral dos religiosos, o destempero que os
caracterizava e a sua ignorância. Diniz também critica o
“francesismo” dos clérigos, o seu constante apelo à filosofia e à teologia
escolástica, as tendências barrocas e fanfarrice dos clérigos poetas e
o purismo estéril dos gramáticos e canonistas. Tais elementos, em
conjunto, são reunidos pelo autor e consistem uma crítica vigorosa de
influência humanístico-racional.
O poema O Hissope revela
ainda a conservação do ethos clássico ao poema, mas não
consoante a carnavalização
do genus épico,
como se percebe na Eneida Travestita de Giambattista Calli, e Virgile
Travesti, de Scarron. O poema de Cruz e Silva é, na verdade, paródia
proveniente do épico, assim como “de uma mãe formosa nasce um feto ridículo”. A sua
inspiração é proveniente do herói-cômico francês, em especial, Le
Lutrin, de Boileau, com o qual conserva afinidades formais. A influência
imediata que é possível perceber em O Hissope pode ser
observada no próprio poema, logo no início do seu Canto I, em que se menciona
nominalmente a influência de Boileau:
Eu canto o BISPO, e a espantosa
guerra,
Que o HYSSOPE excitou na Igreja
d’Elvas.
Musa, Tu, que nas margens aprazíveis,
Que o Sena borda de
árvores viçosas,
Do famoso Boileau a
fértil mente
Inflamaste benigna, Tu me inflama;
Tu me lembra o motivo; Tu, as causas,
Por que a tanto furor, a tanta raiva
Chegaram o Prelado, e o seu Cabido.
[O Hissope, I.1-9]
Logo, tanto Le
Lutrin quanto O Hissope são paródias do gênero
épico, as quais revelam um inegável “débito de Cruz e Silva em relação a
Boileau”. Além disto, ambos os poemas se referem a fatos
historicamente discerníveis e ambos são inspirados por conflitos entre
clérigos. Porém, Le Lutrin originou-se a partir de uma
discussão literária a respeito da matéria do poema heróico, que pode ser,
segundo Boileau, matéria menor, continuando ainda assim, excelente. A
inspiração de Cruz e Silva, distintamente de Boileau, é o anticlericalismo de
inspiração pombalina.
O socius do poema O
Hissope é a cidade de Elvas, que fornece o ridens et ridiculus tópico
para o poema. A cidade, próxima a Badajoz, na Espanha, é provinciana e
especialmente conhecida mais pelas enormes azeitonas que produz do que pela
sofisticação de seu povo. Tal ambiência serve aos propósitos do autor, que
cancela as enteléquias ou as utiliza para a matéria menor – ou seja, o tópos também
fornece o pano de fundo necessário aos propósitos do gênero: produzir o
efeito cômico pelo jungir das temáticas e formas de expressão das mesmas,
desproporcionais e, por isso, risíveis.
As categorias formais da épica
utilizadas em O Hissope revelam a intenção da promoção do up-to-date camoniano
do gênero: Cruz e Silva lança mão de elementos da épica camoniana, ou
mesmo de episódios significativos de Os Lusíadas em seu poema.
Parte significativa da estrutura épica também é mantida: a exposição do tema, a
invocação às musas, bem como episódios, como o episódio profético do agouro do
galo, reminiscência do episódio do velho do Restelo. Cruz e Silva também
mantém a presença do duplo plano da épica camoniana: o pleno humano e o plano
divino. Porém, o plano divino de Cruz e Silva apresenta uma mitologia
específica, com divindades próprias ao exercício do efeito cômico: “Gênio das
Bagatelas”, “Excelência” (divindade protetora do bispo), “Senhoria” (divindade protetora
do deão), “Lisonja”, “Discórdia”, entre outras. Deuses da mitologia clássica
latina também são mencionadas em O Hissope: “Anticyras”,
“Amphitrite”, “Neptuno”, “Tritões”, “Zéphyro”, “Flora”, “Górgones”,
“Cefastas”, “Baccho”, “Morpheu”, “Ceres”, “Jope”, “Marte”, “Juno”,
“Pallas”, “Arachne” e “Minerva”.
A respeito do papel das personagens
divinas em O Hissope, as divindades alegóricas exercem funções
de primária importância na narrativa, pois representam ao mesmo tempo a
presença do divino e os sentimentos e/ou motivações das personagens. Por tal
razão, as divindades mitológicas clássicas não fazem parte do panteão mais
fundamental de O Hissope, mas cooperam às relações intertextuais
e às referências indispensáveis ao atrelamento do gênero à épica, pois os
motivos e as alusões relacionados às divindades mitológicas exercem um papel
muito importante nos poemas heróicos. Algumas dessas divindades são alusivas às críticas
feitas às personagens – por exemplo, Baccho é a divindade a quem se atribui o costume
dos eclesiásticos de beber em demasia. Outras são citadas de passagem,
servindo para a ambiência elevada do poema – como, por exemplo, a símile entre
o concílio dos deuses no poema e o Zéfiro, onde Flora atravessa entre as
flores. Observa-se, portanto, que, em linhas gerais, as divindades
tradicionais do panteão clássico exercem funções secundárias na trama. E é
nesse âmbito que também são feitas alusões aos heróis e anti-heróis épicos
(Adônis e Páris, por exemplo), cujas alusões referenciam personagens e eventos
em O Hissope cujo significado depende do conhecimento
sobre tais personagens nos mitos da Antiguidade. Logo, é importante
observar que o gênero herói-cômico pressupõe o conhecimento prévio do gênero épico,
sem o qual ele fica drasticamente esvaziado em seu poder expressivo e, por tal
razão, cômico.
Também há no poema herói-cômico O
Hissope alusões mitológicas na adjetivação, tal como procede
Camões em Os Lusíadas. Expressões de influência camoniana são
recorrentes em O Hissope, como “itúreo arco”, “idália
selva” e “neptunina Tróia” (eco das “neptuninas ondas” de Os
Lusíadas I.58.2). Tais alusões épicas são
elementos de refinamento da narrativa, característica aprofundada no uso do
recurso, em ambos os poemas, de vocabulário culto nas expressões “pérfidos
solípsos” (Os Lusíadas X.26.8, O Hissope I.25),
“excelso/magnífico palácio (Os Lusíadas X.51.6, O Hissope I.101),
Neptuno undoso (“mar undoso” em Os Lusíadas VII.21.5),
“régio sólio” (expressão “régio sólio posto” de Os Lusíadas X.146.6, “funesto
influxo” (Os Lusíadas X.146.1, O Hissope I.218),
“idôneo tempo” (Os Lusíadas VIII.78.3, O Hissope I.239)
entre outras.
Os recursos estilísticos também
fazem parte do conjunto de elementos aproximantes entre Os
Lusíadas e O Hissope. Um exemplo importante é a
utilização, em Os Lusíadas, de contrastes entre tempos verbais
da mesma sequência frásica, o que se repete em o Hissope. Em Os
Lusíadas I.90.7-8, há:
Já blasfema da guerra, e maldizia,
O velho inerte, e a mãe que o filho
cria.
A mistura dos tempos verbais
(presente e pretérito) também se dá em O Hissope nas
seguintes passagens:
Pela comprida sala passeava,
Sorvendo uma pitada de tabaco,
Do quando em quando, sua Senhoria:
Ora a janela chega, e aplicando
Uma pequena lente à curta vista,
O que passa na Praça vigiava;
Ora arrotando, para dentro, torna.
[O Hissope, I.239-235]
Comia pouco, pouco repousava,
Não joga, nem Café, nem Chá bebia.
[O Hissope, VIII.64-65]
A verossimilhança nos usos dos
tempos verbais entre Os Lusíadas e O Hissope, a
qual se repete nesta última obra em I.220-225, II.373-375;457-460, revela
que os usos lingüísticos camonianos são vivazes reminiscências na obra de Cruz
e Silva, apontando para a intencionalidade do poema herói-cômico de parecer, em
sua diccção, com o poema épico e, assim, provocar o efeito, quando da
observação dos temas referidos em tais usos (no caso dos acima referidos,
arrotos, fumo, jogos entre outros), de jocosidade.
As enumerações também fazem parte do
conjunto de recursos que aproximam a épica do poema herói-cômico. O uso da
forma “catálogo” para se referir a povos, guerreiros, comandos, naus e outros é
um recurso expressivo da épica no afã ou de atribuir a memória de tais listas
às divindades inspiradoras (musas), recurso mitopoético importante para a qualificação
da natureza do texto. Em Camões, o uso da lista ou catálogo
serve, por exemplo, para enumerar povos e terras na exposição da geografia
da Europa por Vasco da Gama (Os Lusíadas III.3-19). O mesmo
recurso do apelo à Musa serve em Camões para indicar a forma pela qual o poeta
sabe de uma conversa privada entre Vasco da Gama e o Rei de Portugal. O
poema de Cruz e Silva também lança mão das listas, não mais para justificar a
onisciência do narrador, mas especialmente para reforçar o efeito cômico do
poema mediante enumeração mais breve ou pela formulação de catálogos
de maior fôlego.
Nestes, o autor destaca o estado
deplorável do clero ou qualifica de forma pejorativa personagens e hábitos, ou
mesmo utiliza os catálogos e enumerações para indicar o exagero na frugalidade
dos religiosos. Neste último caso, a hiperbolização mediante a indicação
das quantidades de cada alimento, juntamente com a catalogação dos alimentos do
banquete, formam um contexto cômico-crítico significativo a partir da
apropriação de formas típicas da épica e que nestas estão via de regra
despojadas de sentido jocoso.
Percebe-se, portanto, que o gênero
herói-cômico carece imprescindivelmente de um modelo épico que lhe
empresta formas, temas, estruturas e linguagens. O gênero, ao se apropriar
das tais, desvela de forma cômica a matéria escolhida pelo poeta: o canto do vil,
do anti-herói, da situação despojada de nobreza. Por causa destas
características é que o gênero desapareceu, pois a épica também sofreu
modificações profundas até o seu relativo desaparecimento. As alusões
interliterárias aos clássicos da Antiguidade, que explicam a mitologia que
perpassa os poemas do século XVIII, entraram em desuso. A épica camoniana,
ainda admirada, não inspira mais a feitura de poemas de maior fôlego que
mantenham suas diretrizes e características gerais. Por tais razões, o
poema herói-cômico é um gênero praticamente morto, mas cujo valor e
interesse podem ser evocados mediante a observação e análise de textos
como o Hissope, cuja qualidade literária e habilidade no uso cômico
da épica é eficiente e, ainda hoje, vivaz.
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Fonte:
Fonte:
Brian Gordon Lutalo Kibuuka
(da UFRJ): “O Hissope: crítica e intertextualidade na obra de António Dinis da Cruz
e Silva”. Disponível em: www.uefs.br
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