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A narrativa em A Cabeça do Tiradentes
E, entre as obras de Bernardo
Guimarães que organizaram o tempo histórico, demarcaram espacialidades, deram
sentido para certa coletividade, nota-se que também podem ser lidas como
narrativas de fundação, e a que nos interessa aqui é a novela A cabeça do Tiradentes, publicada em um
livro com mais dois romances, pela Garnier em 1872. Nessa obra, o autor mineiro
trata de um dos símbolos da Inconfidência Mineira, Tiradentes, representando-o
como mártir, promovendo vínculos entre ele e a cidade de Ouro Preto, e
indicando também uma relação identitária entre aquele herói e as pessoas que
ali viviam, e ainda com as que habitavam os outros lugares do país. Eis, um breve
resumo da obra.
Escrita em maio de 1867, em Ouro
Preto, essa obra é caracterizada como tradição mineira, cuja datação consta do
século XVIII. Ao iniciar a narrativa, Guimarães comenta sobre o clima daquela
noite, e diz se lembrar da história de uma caveira dos finais do século 18, que
se passou em Vila Rica.
Em seguida, ele começa descrever
como era Vila Rica naquele período, e que na praça da cidade havia uma cabeça
pendurada que serviria tanto como símbolo de poder do Governo, quanto como de exemplo
para o povo. A cabeça era de Tiradentes. E numa noite tomada pela neblina, a
cabeça foi misteriosamente roubada e o guarda que estava de vigia naquele
momento disse que o autor do roubo foi um fantasma, de tão rápido e sorrateiro
que foi o roubo.
Após essa narrativa mais
descritiva da situação de Vila Rica no século 18 e do roubo da Cabeça do
Tiradentes, Bernardo Guimarães começa a descrever a rua das cabeças e explicar
a origem desse nome. Em seguida, comenta que nessa rua, havia uma casa arruinada,
onde morava um velho muito misterioso e que não falava com ninguém.
Despertadas pela curiosidade,
algumas pessoas, espiando-o, viram que guardava um crânio com muita devoção. Os
moradores achando que o velho era um feiticeiro o temeram por muito tempo. E,
somente anos após a sua morte, é que alguém que sabia do segredo do velho
misterioso, contou que o velho era o roubador da cabeça do Tiradentes.
Guimarães termina a narrativa dizendo que o paradeiro da cabeça de Tiradentes
continua sendo um mistério e que os fatos que ele acabou de narrar não foram
inventados por ele, sendo fatos tradicionais.
Para facilitar o entendimento
dessa obra vamos abordar a sua narrativa por meio de dois aspectos essenciais:
o formal e o relacionado aos conteúdos. O aspecto formal está diretamente
ligado ao texto e suas características estruturais. E o aspecto relacionado aos
conteúdos tratados na obra discutirá quais foram os elementos mobilizados
construir a narrativa.
Essa obra faz parte, junto com
mais dois romances, de um livro chamado Histórias e Tradições da Província de
Minas Gerais, o que já nos leva a perceber que não se trata de uma obra
puramente ficcional e a compreendê-la como uma história ou tradição dessa
província. O texto é dividido em uma parte inicial e mais quatro pequenos
capítulos. Nessa primeira parte, Guimarães parece tentar levar e acomodar seu leitor
ao ambiente de contação de histórias, e vai dialogando com seu leitor como se estivessem
mesmo à beira do fogão de lenha, como na seguinte passagem, por exemplo, “Quereis,
minhas senhoras, que vos conte uma história para disfarçar o enfado destas longas
e frigidíssimas noites de maio?” (1976, p. 03). E nesse tom, ele continua até
que esse diálogo o leva ao inicio da narrativa sobre a cabeça do Tiradentes,
descrito na seguinte passagem.
E pois vou contar-vos a história
de uma caveira memorável.
É uma simples tradição nacional,
ainda bem recente, e da nossa própria terra.
Essa história eu a poderia
intitular: História de uma Cabeça Histórica (1976, p. 04)
O restante do texto é estruturado
em quatro pequenos capítulos que apesar de
não terem títulos, estão
organizados pelo assunto que irão tratar: I. contexto que levou à Inconfidência
Mineira; II. Descreve Vila Rica e a praça central, onde a cabeça ficava exposta;
III. Narra o roubo dessa cabeça; IV descreve a rua das cabeças, a origem desse nome;
e trata do suposto ladrão da cabeça do Tiradentes. E, certamente, essa divisão serviria
para organizar a leitura e também facilitar a compreensão do leitor.
Outro ponto importante, que está
relacionado ao aspecto formal da obra, está
no quarto e último capítulo, no
trecho que Guimarães encerra a narrativa, dizendo que:
Os fatos, que acabo de narrar,
posto que pouco conhecidos, são tradicionais.
Perguntem aos velhos, e mesmo a
alguns moços mais curiosos, das coisas antigas da nossa terra, e se convencerão
de que esta história não é de minha lavra. (1976, p. 12)
Assim, temos que a maneira como
ele inicia e finaliza a narrativa dessa história
sobre a cabeça do Tiradentes,
parece fazer parte de uma estratégia para conservar a característica das lendas
e contos tradicionais, que devem ser assegurados somente pela memória e
transmitidos oralmente, pois o autor estrutura o texto da forma como essas histórias
tradicionais eram contadas. Dessa forma, o modo como ele conduziu a narrativa
também parece condizer com o apelido de “contador de causos” que Guimarães
recebeu de seus críticos contemporâneos.
E, para entender como a narrativa
d’A cabeça do Tiradentes foi formada abordando desta vez seus conteúdos, vamos
utilizar os estudos do lingüista russo Mikhail Bakhtin a respeito do cronotopo
como unidade de sentido (de tempo e de espaço). O Cronotopo pode ser
compreendido como “a interligação fundamental das relações temporais e
espaciais, artisticamente assimiladas em literatura, (..) é uma categoria
conteudístico-formal”. E, a “assimilação do cronotopo real e histórico na literatura
fluiu complexa e intermitentemente: assimilaram-se alguns aspectos determinados
do cronotopo acessíveis em dadas condições históricas, elaboraram-se apenas
formas determinadas de reflexão do cronotopo real” (BAKHTIN, 1998, p. 212).
Nesse sentido, tem-se na obra
literária em questão a articulação de tempo e espaço representada pela cabeça
do Tiradentes, roubada e enterrada, que é um elemento que diz respeito à
tradição de um lugar. Tal fato, em uma obra de fundação como esta, deve ser
lido como um cronotopo, pois esse elemento mobiliza tempo e espaço específicos,
contribuindo na composição de sentido da obra.
Ao mobilizar a história
misteriosa da cabeça de Tiradentes, o autor traz à tona na narrativa um tempo e
um espaço específico, caracterizado por um passado de opressão, vivido em Vila
Rica, como Guimarães mesmo narra: “E nessa época de riqueza e opulência, de
servilismo e degradação social, no meio da praça principal desta cidade se via
uma cabeça humana dessecada, cravada sobre um alto poste. P.7”. É como se a
cabeça mobilizasse todo o passado de opressão do Governo e da revolta do século
XVIII, vivido não só em Vila Rica, mas também em outras localidades da Colônia portuguesa.
E a cabeça do Tiradentes ao atuar como cronotopo nessa obra literária, mobiliza
esse tempo e espaço que ela representa, e consegue estabelecer uma relação entre
a Inconfidência Mineira e Tiradentes com os leitores, criando vínculos
identitários entre esses, tanto na esfera local (Ouro Preto) quanto em uma mais
abrangente como o Brasil.
Juntamente a isso, a narrativa é
cercada de muito mistério e marcada pela adoração direcionada a cabeça e pelo
seu sumiço, o que acaba despertando nos leitores uma curiosidade em relação a
essa história e dando à própria cabeça um status de sagrado, e ao aumentar toda
a mistificação que há em torno de Tiradentes, consegue envolver os leitores
ainda mais.
Diante do que foi dito até agora
se pode notar que o apelido de “contador de causos” de Guimarães contribuiu com
seu projeto político para a literatura nacional. A obra tratada aqui faz parte
desse projeto de se voltar os olhos para o interior do Brasil para ver ali o
brasileiro. E, ao tratar, nesta obra, de fatos ligados a um importante evento histórico,
ocorrido em Minas Gerais, e que refletiu em todo o território, por meio de uma
tradição que já muito conhecida na região de Vila Rica, e elaborar
cuidadosamente nessa obra literária os aspectos formais e o cronotopo,
Guimarães contribuiu com a criação de vínculos identitários entre os leitores,
e organizou o tempo imemorial, e essa obra fazendo parte da cultura histórica
do oitocentos, elaborou uma memória e uma história tanto em uma esfera local
quanto nacional.
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Fonte:
Fonte:
Gisela Morena de Souza (da Universidade
Federal de Ouro Preto): “Entre a lenda e a história: a narrativa em A Cabeça do
Tiradentes, de Bernardo Guimarães”. VI Simpósio Nacional de História Cultural Escritas
da História: Ver – Sentir – Narrar Universidade Federal do Piauí – UFPI. Disponível
em: gthistoriacultural.com.br
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