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Relação arte-realidade
O desejo de se livrar da
opressão da cidade em processo de metropolização, em que se encontra Lisboa,
fragmentada, no presente do sujeito lírico de OSO e no restante da obra como um
todo, leva-o a buscar saída de diversos modos: pelo espaço geográfico representado
por outros países “Madrid, Paris, São Petersburgo, o mundo!” (I-3) ou pelo campo;
pelo espaço mental e físico “a cismar” e “erro pelo cais” (I-5); no tempo
histórico, representado pelas “crônicas navais” (I-6); na literatura, pela
alusão a “Os Lusíadas” (I-6); no sonho, que se torna pesadelo “Cólera e Febre”
(II-7); no mito, que se refere à “raça ruiva do porvir” (IV-6). Entretanto, é
através do processo de criação artística que o sujeito lírico reitera várias
vezes o desejo de libertação, saída da opressão citadina: “E eu, de luneta de uma
lente só, / Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:” (II-11). Essa tensão,
que no poema analisado se configura entre opressão e desejo de libertação do
sujeito poético, é um dos traços da poesia moderna, que segundo Hugo Friedrich:
Essa tensão dissonante da
poesia moderna exprime-se ainda em outro aspecto. Assim, traços de origem
arcaica, mística e oculta, contrastam com uma aguda intelectualidade, a
simplicidade da exposição com a complexidade daquilo que é expresso, o
arredondamento lingüístico com a inextricabilidade do conteúdo, a precisão com
a absurdidade, a tenuidade do motivo com o mais impetuoso movimento
estilístico. São, em parte, tensões formais e querem, freqüentemente, ser
entendidas somente como tais. Entretanto, elas aparecem também nos conteúdos.
Tal é o caso, para fins
exclusivos de análise, sabendo-se indissociável no universo artístico a
forma-conteúdo, da alucinação (conteúdo) que o sujeito lírico expressa em OSO, através
dos quartetos mistos, um verso decassílabo e três alexandrinos, (forma) que mantêm
a isometria ao longo de todo poema. Na Parte I do poema, a busca de saída pela literatura
parece frustrar-se ante a impossibilidade de imaginar, contida no verso: “Singram
soberbas naus que eu não verei jamais!” (I6). Na Parte II, o sujeito lírico
parece insinuar a expressão pictórica ao observar “de luneta de uma lente só”,
ou seja, examinar microscopicamente, ao gosto do cientificismo da época que,
segundo A. Moles inaugurou a crença na ciência, em oposição à fé, “ciência do
certo”, a própria realidade: “Eu acho sempre assunto a quadros revoltados”. Na
Parte III, ele enuncia o desejo de escrever: “E eu, que medito um livro que exacerbe,
/ Quisera que o real e a análise mo dessem;” (III-5). Na Parte IV, a busca de
uma saída do ambiente urbano que o oprime dá-se no plano existencial: “Enleva-me
a quimera azul de transmigrar”, verso que conota devaneio pelo verbo “enleva”,
e criação literária, pela “quimera azul”, referência à tinta de escrever, ou
seja, "de compor versos no papel." (IV-1). Em seguida, a associação
das “linhas de uma pauta” à “dupla correnteza das fachadas”, também remete ao
ato de escrever as notas musicais na pauta, e aos “círios de capela”, pela
ordenação paralela que sugerem. E, finalmente, ante a realidade concreta e
penosa da cidade, representada como “massa irregular de prédios sepulcrais, com
dimensão de montes”, que aprisiona, a abstração dos “amplos horizontes” remete
à idéia de liberdade, embora haja a consciência do sujeito poético que “a dor
humana busca / E tem marés de fel, como um sinistro mar.”
Lembrando que “Na criação
lírica, ao contrário [da épica], metro, rima e ritmo surgem em uníssono com as
frases. Não se distinguem entre si, e assim não existe forma aqui e conteúdo
lá.”, cabe aqui, a partir de uma visão panorâmica da métrica cesariana, que
prima pelo rigor parnasiano, que tende à procura da confecção perfeita dos
versos, pela regularidade métrica, estrófica e rítmica, ressaltar dois poemas,
cuja análise estilística denota um processo de maturação da lírica cesariana. A
avaliação estilística das opções métricas de Cesário denota a diversidade
combinatória dos dois metros, alexandrino e decassílabo, sendo os poemas Humilhações
e De Verão importantes exemplos do momento de maturação da modernidade
poética de Cesário, em que o casamento forma-conteúdo dá o tom de cada poema.
Naquele, os três primeiros versos dos quartetos são alexandrinos, e o último,
decassílabo; neste a relação se inverte, sendo o primeiro verso dos quintetos alexandrino
e os quatro seguintes decassílabos, contribuindo, assim, a irregularidade métrica
para o efeito de sentido singular de cada poema, um dos traços marcantes da modernidade.
Tal indício já pode ser observado no poema Cristalizações (1879),
composto por vinte estrofes de cinco versos cada, com a rima ABAAB, sendo o
primeiro verso alexandrino e os outros quatro decassílabos. Esta introdução às
quintilhas, feita por um verso de doze sílabas, atribui ao poema um ritmo
especial, que ora se concilia com a condição climática e a situação do tempo,
ora se quebra em frases exclamativas que introduzem aspectos particulares dos
trabalhadores: “A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!”; “Homens de
carga! Assim as bestas vão curvadas!” E nesse “dia frio, de imensa claridade
crua” vão aparecendo os “calceteiros terrosos e grosseiros”, “as peixeiras descalças”
“a dar com os rins”, “os rapagões” ”que partem penedos”, os “valadores” que atiram
terra com largas pás”. E estes homens, “filhos das lezírias, dos montados”, “filhos
da planície” ou “das montanhas”, do campo, portanto, com saúde de ferro e
atitudes de macho, opõem-se à fragilidade da “actrizita”, uma figura feminina
delicada, citadina, com rostinho estreito, friorento, que passa por ali
vacilante para seu ensaio, atravessando “covas, entulhos e lamaçais”, num
casaco à russa e botinas de tacões agudos, semelhantes “a pés de cabra”. Tanto
em um caso como em outro, os verbos de ação conotam o movimento necessário para
vencer o frio. O mesmo se dá com as peixeiras que marcham agitando os quadris e
gritam. No tempo presente os verbos descrevem a ação e o som perpassa nítido
através do ritmo das estrofes, às vezes pela contraposição ausência-presença
dele, como por exemplo: “Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!/ Tomam por
outra parte os viandantes;/ E o ferro e a pedra – que união sonora! /Retinem
alto pelo espaço fora, / Com choques rijos, ásperos, cantantes.” (E.4)
Sobre o ritmo, valemo-nos
de Otávio Paz, quando diz: “O poeta encanta a linguagem por meio do ritmo. Uma
imagem suscita outra. [...] O poema é um conjunto de frases, uma ordem verbal,
fundados no ritmo.“. Se a fragmentação em estrofes e versos é elemento
constituinte do poema, o ritmo, ao provocar uma expectativa, produz um anelo. As
imagens verbais expressam o movimento alternado entre opressão e desejo de
liberdade no cotidiano, representando o contínuo na existência. Neste caso, o
movimento de retração e expansão do sujeito lírico equivale à semelhança de
sístole e diástole à pulsão da vida. No poema OSO, o ritmo se altera na fusão
dos sextetos nos alexandrinos e à cesura variada dos decassílabos de que é
constituído. Ao heroísmo comum da oitava rima de herança clássica substituem os
quartetos populares, em que o cotidiano e a oralidade, num jogo temático, transformam
o herói épico daquela no homem ordinário, sobrevivente ao dia a dia destes.
Não há repetições em vão.
As variações do andamento expressam intensidades do sentir diferentes da
regularidade dos passos, o que, de certo modo, possibilita ao leitor a noção do
espaço físico e do espaço da emoção, do sentimento. Citando Óssip:
O ritmo como termo
científico significa uma apresentação particular dos processos motores. É uma
apresentação convencional que nada tem a ver com a alternância natural nos
movimentos astronômicos, biológicos, mecânicos, etc. O ritmo é um movimento
apresentado de uma maneira particular.
O ritmo marcado pela luz e
sombra do dia e da noite marca o ciclo solar natural em OSO. O ritmo dos passos
na cidade ou no campo marca o continuar na existência. Nesse sentido, verbos no
presente do indicativo reforçam a idéia de movimento do sujeito no espaço. Por
exemplo: “saio”, “erro”, “embrenho-me”, “sigo”, denotam um deslocamento físico,
uma ação. Por outro lado, os verbos “ocorrem-me”, “chora-me”, “lembram-me”, “enleva-me”,
“julgo”, remetem a uma atitude interior do sujeito. Do mesmo modo, o ritmo da
natureza está presente em outros poemas, como é o caso de Provincianas, como observamos nas
expressões: “Como amanhecer”, “Nessa manhã”, “Bom sol!”, “ao meio-dia”, denotando
período do diurno, ou “inverno”’e “outono”, designando as estações do ano, com
suas paisagens “vagas dum verde garço” e atividades características: os grãos e
as sementes “acordam”, “cresce o relevo dos montes”, “fartam-se as vacas”, “produz
as novas manteigas”, referindo-se ao trabalho humano. Se o anoitecer na cidade
desperta o sentimento de melancolia no sujeito, o amanhecer no campo deflagra
sua alegria. A claridade do sol, mesmo nos poemas de temática citadina, dá tom
de vigor aos versos. Por exemplo, Num
Bairro Moderno, em que o sol é “o intenso colorista” (E.7) , capaz de transformar
vegetais em ser humano, na visão de artista do sujeito lírico. E, no
mesmo poema: “E o sol estende, pelas frontarias, / Seus raios de laranja
destilada.” (E.18), as imagens de alto teor impressionista contribuem para os
efeitos da luz nos elementos espaciais da cidade.
Diversamente do meio
natural, de farta insolação, o meio técnico sofria de precariedade. Segundo
Joel Serrão, em 1848, são acesos em Lisboa os primeiros candeeiros a gás. Em
1871, no Concelho de Lisboa, havia já 3080 candeeiros. “Mas a noite, a antiga e
persistente noite, só será vencida de vez pela luz elétrica, o que levará seu
tempo. A princípio (1878), só na via pública, [...]. Levará tempo a sobrepor-se
à iluminação a gás, cujos restos ainda hoje existem nos bairros velhos de
Lisboa.”122 Em 1878,
Cesário nos dá o “Quadro dum que à candeia / Ensina o filho a ler...?”,
documento histórico de excepcional valor de que a candeia de azeite continuava
a iluminar a noite. A luz do gás torna-se obsessão em sua poesia. Por exemplo,
nos versos a seguir: “E em breve ao quente sol e ao gás alvejará!” (Ironias
do desgosto, 1875. E.7); “Nas ruas a que o gás dá noites de balada”
(Merina, 1878. E.1); “Entre um saudoso gás amarelado” (Noitada,
1879. E.1); “O gás extravasado enjoa e perturba,” (OSO, 1880. E.2).
O próprio som da palavra gás
sugere algo que escapa; e a sequência de sons a e l nas palavras balada e amarelado, bem como as vogais que intercalam as
sibilantes em extravasado, sugerem lentidão e monotonia. Um ritmo lento.
Valendo-nos aqui, por transposição, das expressões com que Milton Santos se
refere à má distribuição do uso da técnica no mundo atual, podemos dizer que a
precariedade da iluminação técnica da Lisboa de Cesário também fazia dessa
capital um espaço opaco em relação ao espaço luminoso de outras
capitais europeias da época, o que se reflete na angústia do sujeito, no texto.
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Fonte:
Sônia Maria de Araújo Cintra: “Relações espaciotemporais na obra poética de Cesário Verde: fragmentação e busca de totalidade”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Raquel de Sousa Ribeiro). São Paulo, 2009. Disponível em: www.teses.usp.br/
Fonte:
Sônia Maria de Araújo Cintra: “Relações espaciotemporais na obra poética de Cesário Verde: fragmentação e busca de totalidade”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Raquel de Sousa Ribeiro). São Paulo, 2009. Disponível em: www.teses.usp.br/
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