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Os sentidos do Húmus: leitura crítica do romance
Húmus é um livro repleto de
signos que nos remetem à dor: o embate entre a vida e a morte, problemática que
sempre inquietou o homem, supura em gritos que ecoam por toda a narrativa e que
abrem uma via de comunicação entre dois estados possíveis: a vida-simulacro,
feita de manias e de mentiras, esboço de uma vivência humana, e a
vida-verdadeira, em que, de fato, a existência ganharia sentido. Embora as
dicotomias estejam sempre presentes, em Húmus não há dois pólos: vida e morte formam
uma só moeda. O narrador, sobre quem nos deteremos mais adiante, protesta contra
a mesmice da existência, contra a mentira, contra a Igreja, contra a burguesia
e contra o capitalismo; não aceita as artimanhas impostas pela civilização
moderna, da qual decorre uma vida falsa, desprovida de uma experiência
autêntica, para pensarmos a partir dos conceitos de Walter Benjamin.
Entretanto, se se expõe que a vida é uma farsa (essa idéia Raul Brandão já
havia exposto em seu livro de 1903 e a retoma durante quase toda a sua produção
literária), também se afirma que é preciso mentir para suportar a inutilidade
da vida e reprimir o sonho (que se manifesta a partir das experiências alquímicas
do Gabiru) que existe no mais recôndito de cada ser humano, desejoso de que não
lhe caia a máscara.
Na meticulosa construção do
texto, Raul Brandão harmoniza uma plêiade de estéticas e tendências que surgiam
na virada do século, algumas das quais estão entre as conhecidas vanguardas
européias, com destaque para o valor expressionista (ao lado do impressionismo,
como já mencionamos na abertura do primeiro capítulo), que se infiltra não
apenas na forma, mas também no conteúdo literário: as personagens sofrem
agonicamente, perfilam toda a narrativa como a purgar os defeitos e a tentar recomeçar
a viver, sempre aos gritos, plasticamente aproximando-se da tela de Edvard Munch.
O desespero lancinante que se confronta ao olhar O Grito, pintado em 1893, aproxima-se, em tema e em técnica, da miséria, da dor e do sofrimento
que se multiplicam pelo texto brandoniano, ora emitidos pelo narrador, ora pelas
velhas ou pelo Gabiru. A explosão da emoção e a retratação do sentimento por meio
da deformação visual da imagem, em que a dramaticidade (e, em certa medida, a tragicidade)
avulta, aproximam o texto brandoniano e a tela de Munch.
Técnica: essa parece ser a
palavra-chave na construção do Húmus, livro que, verdadeiramente, exige
reencontros, novas leituras, para que possamos absorver e compreender ao máximo
possível o texto de Raul Brandão e o projeto estético a ele subjacente. Se,
como vimos no primeiro capítulo, Teixeira de Pascoaes sentiu a necessidade de
voltar à obra, a fim de estudá-la como peça de arte (conscientemente construída),
algumas passagens do romance parecem confirmar essa idéia, dando-nos a
impressão de que seu discurso difuso, freqüentemente ambíguo, é mais uma das artimanhas
do autor, que muitas vezes se detém em esmiuçar o cotidiano de uma vila imaginária,
que dá certa ambientação ao livro, ou em enveredar por reflexões existenciais e
até mesmo metalingüísticas.
A metalinguagem, aliás, é um dos
mais fortes argumentos disponíveis no próprio corpo do texto para que se
defenda a modernidade da narrativa, numa perspectiva da consciência da ruptura,
aparentemente explicitada por meio do narrador, que diz: “E é com secreta
satisfação que vejo esfarelar-se este edifício tão bem construído sobre bases,
que pareciam inabaláveis” (H1, p. 61), pois a “construção antiga desabou, e a um
mundo novo correspondem criaturas novas” (H1, p. 118). Assim, a “narrativa desconjunta-se:
ganha em dor e em grotesco. Enche a boca, perde a naturalidade, adquire em
imponência” (H1, p. 145), ou seja, “torna-se obscura, dolorosa, hesitante, como se fosse arrancada aos
pedaços d’uma alma espezinhada” (H1, p. 147, grifo nosso).
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Fonte:
Otávio Rios Portela: “A experiência estética de Raul Brandão: Variantes textuais e Construção narrativa em Húmus”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira). Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/
Fonte:
Otávio Rios Portela: “A experiência estética de Raul Brandão: Variantes textuais e Construção narrativa em Húmus”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira). Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/
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