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Gonzaga, o Direito Natural e as Teorias do Contrato
Ao escrever sua obra mais
conhecida, em 1513, Nicolau Maquiavel pretendia ensinar os governantes a se
manterem no lugar do poder conquistado. Almejava ainda, pensam alguns,
livrar-se de seus infortúnios e conseguir um cargo de secretário junto à família
Médicis, à qual, justamente, dedicara o “pequeno” Príncipe.
Certo que Tomás Antônio Gonzaga,
nosso “poeta namorador”, para falarmos como o historiador das ideias Eduardo
Frieiro em seu “retrato imaginário de Gonzaga”, não sofria, na época em que
publicava seu Tratado do Direito Natural, as vicissitudes políticas que
cercaram a vida do florentino. Ainda mais certo que se trata de obra “menor”,
se comparada aos escritos legados por Maquiavel. Mas não seria descabido
sugerir que também seu Tratado tinha intenções semelhantes àquelas que levaram
o renascentista a escrever o manual dos príncipes modernos.
O Tratado foi dedicado ao então
Ministro de D. José I, o Marquês de Pombal. Sem certeza quanto às datas e às
condições exatas da publicação, é possível supor que o texto foi redigido entre 1768, ano da
formatura de Tomás Antônio, em Leis, na Universidade de Coimbra, e 1772,
período áureo da administração pombalina, com a promulgação dos novos estatutos
da Universidade de Coimbra e da introdução da cadeira de Direito Natural em seu
curriculum.
A obra do brasileiro, assim, poderia ter por
objetivo angariar para o autor uma vaga àquela cadeira na Faculdade de Leis em
Coimbra As aspirações do nosso Tomás Antônio ao grau de lente na restaurada
Universidade deveram-se, de algum modo, aos conselhos de seu pai, o
desembargador João Bernardo Gonzaga, homem de confiança de Pombal. A
incumbência da cópia do Tratado ficara, também, nas mãos do pai. Talvez, de
acordo com Manuel Rodrigues Lapa, mesmo a dedicatória ao Marquês fosse
decorrência desse laço existente entre o homem de Estado português e o pai do
poeta.
É mesmo em tom laudatício que
Gonzaga apresenta a sua obra, o que parece confirmar a hipótese de um texto
produzido ao sabor das circunstâncias pessoais: Todos sabem ser [Pombal]
desejoso do crédito dos seus nacionais, [que] os estimulou aos estudos dos
Direitos Naturais e Públicos, ignorados se não de todos, ao menos dos que
seguiam a minha profissão, como se não fossem sólidos fundamentos dela. E sendo
eu um dos que me quis das utilíssimas instruções de V. Exa. fora ingratidão
abominável o não lhe retribuir ao menos com os frutos delas.
O caráter adulador é evidente, já
na dedicatória:
Eu me persuadi que não devia
aparecer em público obra alguma que se encaminhasse a semelhante fim, em cujo
frontispício se não lesse o nome do Soberano ou o de Vossa Excelência, para se
mostrar assim, se há instrução que não nasça de semelhantes fontes, não há
contudo alguma que apareça sem ser debaixo da sua aprovação e do seu amparo.
O que talvez explique o motivo
pelo qual entre nós pouco se estudou o Tratado, excetuando-se o trabalho
pioneiro de Lourival Gomes Machado de 1949, nunca refutado e ao qual minha
própria leitura de Gonzaga só fez acomodar-se: nas poucas referências à obra
(como em Faoro ou em Carlos Guilherme Mota e mesmo nos raros artigos, mais recentes, que pude localizar),
ela é em geral percebida como inscrita no rol do pensamento político
luso-brasileiro conservador.
Alguns estudiosos, aliás, nem
consideram o Tratado de Direito Natural como a obra onde se possa encontrar o
verdadeiro pensamento político de Gonzaga. É o que afirma Afonso Arinos de
Mello Franco, para quem melhor seria percorrer o Critilo das Cartas Chilenas
que debruçar-se sobre o pequeno manual de direito, trabalho preparado por um postulante
a cargo público atento a não ferir a orientação da doutrina oficial do pombalismo.
Rodrigues Lapa, de seu lado,
acredita que no Tratado “o jovem opositor fazia a política do poderoso
ministro”, isto é, mais que bajular o governante, o texto servia de reforço à
tirania ilustrada do Marquês em seu embate com a Igreja, fazendo do poder civil
instância superior àquela do poder eclesiástico, como se verá mais à frente.
A tese já fora apresentada por
Raymundo Faoro, que se referia a Gonzaga como um representante da corrente que
vingou com a ascensão pombalina ao poder em Portugal (1750-1772), um
conservador, certamente, que, com seu Tratado, visava aprovar e legitimar a
política do Ministro de D. José I. Colocava, é verdade, como concorda Lapa, o poder
civil acima do poder eclesiástico, negando assim a jurisdição temporal do Papa,
mas o fez fundando o fenômeno político em algo que lhe é transcendental, isto
é, Deus. Com isso, Gonzaga interrompia uma importante tradição que germinara na
península ibérica – a teoria da mediação popular na origem do poder –
vinculando-se, ao contrário, às teses absolutistas e dificultando, pensa Faoro,
a constituição de um liberalismo “irado”, de cunho radical, entre nós.
Talvez, segundo Rodrigues Lapa, a
obra a um só tempo peça laudatória e retórica fosse um reflexo dos primeiros
contatos do nosso poeta com o universo das letras, que se deu no Colégio dos
Jesuítas da Bahia:
Com os jesuítas deveria ter
aprendido o fundo humanístico da sua obra e aquela habilidade dialética, o
rigor silogístico, que tão bem se evidenciou no Direito Natural e até nos
interrogatórios do próprio prisioneiro. A atmosfera baiana estremecida do
lirismo dengoso das modinhas havia de ter deixado algum vestígio no seu
temperamento (...).
Sabemos mais a respeito da
formação de Gonzaga quando nos debruçamos sobre os Autos da Devassa, como o fez
Eduardo Frieiro. Quando do traslado dos bens do nosso Tomás Antônio indicava-se
apenas, infelizmente, que foram encontrados “quarenta e três livros de folha de
vários autores, franceses, portugueses e latinos, sete livros de meia folha da
mesma matéria e quarenta e três de quarto dos mesmos”, sem que conheçamos os títulos,
os autores ou os assuntos das obras apreendidas.
Entretanto, se trabalharmos com a hipótese de
uma espécie de “redes” de informações, de livros, de ideias e de amizades entre
os líderes federados das Minas Gerais que os interrogatórios da devassa vieram desmontar11,
tendemos a acreditar que o ideário à disposição da elite ilustrada brasileira não
distava muito da vulgata conhecida dos europeus. Parece ser um fato que muitos
de nossos homens de ciência estavam informados das teorias filosóficas e
científicas que moveram a política do Iluminismo.
Adverte, porém, o próprio Gonzaga
que o leitor não encontrará em seu Tratado
uma mera compilação das doutrinas
e dos melhores autores que se debruçaram sobre o estudo do direito natural.
Para ele, tratava-se não tanto de apresentar essas doutrinas “naturalistas” tão
em voga na Europa a partir do século XVII, que ele considerava ímpias, mas de
corrigi-las a partir das lentes da religião cristã. Não que o autor se furtasse
ao diálogo com os formuladores ou comentadores mais célebres do direito. Em
suas páginas, são explícitas as referências às grandes teorias de Thomas
Hobbes, Hugo Grotius, Samuel Pufendorf. Ainda mais provável, seu contato com a
obra de tradutores e principais divulgadores das teorias do direito natural:
Christian Thomasius, Jean Barbeyrac, Samuel Cocceji, Jean-Jacques Burlamaqui e,
sobretudo, Heineccius... Se não conhecia de perto os “grandes textos”,
certamente dominava a vulgata das teses jusnaturalistas.
É a primeira vez, segundo o
próprio Gonzaga, que se publica diretamente em língua portuguesa um livro
acerca do Direito Natural. Dispôs-se, assim, a escrever um Tratado útil, que
abarque duas disposições chaves, como ele próprio destaca no prólogo ao leitor,
da Ilustração portuguesa: o nacionalismo, bandeira da reforma educacional
liderada por Verney, e o reformismo que funda o Direito Natural a partir de um
princípio teológico. De fato, a primeira palavra do livro de Gonzaga é Deus e
seu primeiro capítulo intitula-se “Da existência de Deus”. O que nos permite já
adiantar que o Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga pouco
diferia da orientação absolutista corrente no Portugal católico dos setecentos.
Gonzaga crê residir na própria
autoridade constituída – e encarnada na pessoa do Rei ou de seu representante –
a própria razão e a própria origem da obediência: é dele, do rei ou de seu
mandatário – no caso, o Marquês de Pombal – que emana imediatamente a vontade
de poder. Assim, ao cidadão não resta senão assujeitar-se ao que é o primeiro direito,
sagrado e anterior a todas as vontades individuais, o direito que possui o
mandante de submeter seus súditos. Veremos, adiante, e com mais cuidado, as
implicações dessa tese. Leiamos, já, Gonzaga:
Ilmo. e Exmo. Sr. Marquês de Pombal.
Depois de intentar sair à luz com
uma obra que toda se encaminha a instruir os meus nacionais nos santos direitos
a que estão sujeitos, já como homens, já como cidadãos, a quem, Senhor, a quem
poderia buscar por patrono dela senão ou ao REI, em cujas mãos depositou Deus o
cuidado deles, ou aquele varão sábio, prudente e justo, de quem fiou o mesmo
REI uma grande parte da sua direção?
Ora, o trecho não reflete uma
orientação meramente oportunista de Tomás Antônio Gonzaga – angariar uma vaga à
faculdade de Leis de Coimbra – em sua defesa do Estado pombalino. Ao contrário,
mais parece obra a serviço da legitimação daquele Estado. O jovem tratadista
não apresenta já nas primeiras linhas do seu Tratado de Direito Natural o tom
da sua orquestra? Isto, então, no lugar de atenuar o suposto oportunismo da obra,
revela, mais ainda, o enquadramento dos jovens intelectuais luso-brasileiros da
segunda metade do século XVIII – justamente aqueles responsáveis pela fundação
do Estado no Brasil – ao despotismo, mesmo reformista, mesmo ilustrado,
português.
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Fonte:
Erygeanny Machado de Lira: “Uma teoria moral da soberania: O Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga”. (Monografia apresentada à coordenação do curso de bacharelado de Ciências Sociais, Universidade Federal da Paraíba, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Bacharel. Orientadora: Ana Montoia). João Pessoa, Julho de 2010, disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/
Fonte:
Erygeanny Machado de Lira: “Uma teoria moral da soberania: O Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga”. (Monografia apresentada à coordenação do curso de bacharelado de Ciências Sociais, Universidade Federal da Paraíba, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Bacharel. Orientadora: Ana Montoia). João Pessoa, Julho de 2010, disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/
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