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Lúcio e
Ricardo e os mistérios da identidade
A obra é iniciada por uma
declaração do protagonista justificando a sua não defesa contra as acusações,
segundo ele, levianas, que o fizeram ficar dez anos preso acusado de ter
assassinado seu grande amigo Ricardo de Loureiro.
O que levaria um homem aceitar
passar dez anos de sua vida preso mesmo sem ser culpado? Lúcio aceitou a pena
imposta a ele por não conseguir provar sua inocência, pois os fatos descritos
posteriormente na obra, e que fariam com que ele fosse absolvido, fogem
completamente da realidade. Surge, então, um jogo que tem como base o
fantástico tornando-se regra e não a exceção e, o tom dado à narrativa passa a
ser o do mistério. O tom de mistério, que permeia toda a obra, e que é explicitado
no projeto de A confissão
de Lúcio, aparece na epígrafe escolhida
para iniciar o texto.
“... assim éramos nós obscura-mentedois, nenhum de nós, sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto
outro viveria...”
A epígrafe de Fernando Pessoa
mostra a presença do duplo. Ao fazer esta escolha para iniciar seu texto,
Sá-Carneiro opta por um poema de seu amigo cujo tema é a própria fusão da
identidade e a dificuldade de conseguir separar o eu do outro - tema de
inúmeras outras poesias de Sá-Carneiro, o que demonstra sua angústia e dificuldade
para lidar com a questão da identidade.
É através da identidade que as
interpretações do texto mudam de leitor para leitor. A partir de então, cabe a
cada um direcionar sua leitura para aquilo que lhe pareça mais adequado, porque
saímos do campo da realidade para entrar no espinhoso campo de determinar a
existência e as características das três personagens centrais da narrativa.
Esta dissertação toma como mais
adequada a leitura que acredita na existência real de Lúcio e Ricardo e, que
considera Marta uma projeção do marido para poder possuir seu amigo. A crença
de esta ser a leitura mais apropriada está sustentada no momento em que Ricardo
confessa ao amigo que criou Marta numa
noite de insônia.
[...] Uma noite, porém, finalmente,
uma noite fantástica de branca, triunfei! Achei-A... sim, criei-A! criei-A... Ela é só minha, entendes? , é só minha! Compreendemo-nos
tanto, que Marta é como se fora a minha própria alma. Pensamos da mesma
maneira; igualmente sentimos. Somos nós dois... Ah!, e desde
essa noite eu soube, em glória soube, vibrar dentro de mim o teu afeto –
retribuir-to: mandei-A ser tua! Mas estreitando-te ela, era eu próprio que te estreitava... Satisfiz a minha ternura: Venci! E ao possuí-la, eu sentia, tinha nela, a amizade que te devera dedicar – como os outros sentem na alma
as suas afeições. Na hora em que a achei, tu ouves? foi
como se a minha alma, sendo sexualizada, se tivesse materializado. E só com o espírito te possui, materialmente! Eis o meu triunfo...Triunfo inigualável! Grandioso segredo!
....................................................................................................................
[...]
Os teóricos escolhidos para sustentar a
argumentação desta dissertação são partidários desta versão, mas ela não é
única. António Quadros, por exemplo, defende a existência apenas de Lúcio na
narrativa e que Ricardo e Marta seriam seus desdobramentos. Lúcio nesta leitura
perde totalmente a lucidez e vive num mundo a parte. A prisão a que ele se
refere é o manicômio que estaria supostamente internado.
Uma vez aceita que algumas são as
possibilidades de leitura do texto isso comprova como o mistério é quem dá o
tom para a narrativa. A vida de Lúcio, seu encontro com Ricardo, o casamento
deste com Marta, o assassinato, o cárcere. Tudo é narrado envolto a uma névoa
de mistérios. O próprio vocabulário utilizado mostra isto. O texto todo é
permeado por expressões como “denso véu de bruma” que ocorre, por exemplo, duas
vezes num espaço de pouco mais do que quinze linhas.
Hugo Friedrich escreve o que
pensava Baudelaire a respeito do mistério:
[...] Baudelaire fala muitas vezes
do sobrenatural e do mistério. Só se compreende o que ele quer dizer com tudo
isto quando − como ele próprio
fez − se renuncia a dar a estas palavras outro conteúdo quenão seja o
próprio mistério absoluto [...]
Em A confissão de Lúcio é exatamente assim. A única certeza que se tem é de que não
existe uma única verdade, de que alguns são os pontos de vista e que as
possibilidades de leituras não se esgotam, pois o que de fato a faz
interessante é justamente o jogo que ela obriga o leitor de perceber o homem em
suas nuances mais guardadas, mais interiorizadas, a vida narrada de Lúcio é um
mistério e não existe mistério maior que a própria existência humana.
A ligação com Ricardo e o
desdobramento deste em Marta, faz com que o protagonista busque incansavelmente
desvendar o mistério que reside em cada um dos indivíduos envolvidos no caso. O
que ele sabe de cada um não mais convence, não mais basta. Lúcio quer saber
quem é, e com quem verdadeiramente se relacionava. O interesse decadente está
justamente no universo interior das personagens, suas dúvidas, suas angústias, seus desdobramentos. A intimidade
que adquiriu com o amigo fez com que Lúcio soubesse o desejo mais íntimo dele,
o de possuir alguém do mesmo sexo. O leitor conhece, através de Lúcio, as
inquietações e dúvidas dele próprio e de Ricardo.
A narração nos é trazida pelo
próprio Lúcio, que se mostra um exímio contador da história, ele é capaz de
usar de sua verbalização para envolver o leitor e dividir tudo que relata em
dois planos distintos, embora fundidos na obra: o da realidade e o da
idealidade, o do verossímil e do sobrenatural. No plano da idealidade temos o
romance entre as personagens, as traições, o assassinato de Marta e a morte de
Ricardo. Já, no plano da realidade fica impossível explicar que o tiro fora
dado em direção a Marta, mas que quem caiu morto foi Ricardo. Lúcio recebe e
aceita a culpa porque se sente incapaz de argumentar sobre algo num plano que
não domina – o da realidade - e é nesta esfera que está o leitor, uma esfera em
que o inverossímil não tem espaço.
Objetivamente Lúcio não se descreve
durante a narrativa, era um jovem novelista, um homem ligado às artes, mas não
tão sofisticado quanto Ricardo ou Gervásio Vila-Nova. Não tinha família,
possuía apenas alguns poucos amigos e morava em Lisboa, mas passou um período
em Paris. Pouco sabemos se ele sofreu mudanças físicas ao longo do texto,
porque ele não oferece estas informações a seu próprio respeito. Mais detalhada
que as informações a respeito de Lúcio, são as descrições de Ricardo. Ricardo
de Loureiro fora apresentado o amigo numa noite de festa e imediatamente nutriu
por ele uma simpatia ímpar.
[...] Pelo caminho a conversa
foi-se entabulando e, ao primeiro contato, logo experimentei uma viva simpatia
por Ricardo de Loureiro. Adivinhava-se naquele rosto árabe de traços decisivos,
bem vincados, uma natureza franca, aberta – luminosa por uns olhos geniais, intensamente
negros. [...]
Ricardo era poeta e Lúcio já
conhecia sua poesia, pois a esta altura ele era razoavelmente conhecido entre
os artistas da cena parisiense - a Americana, chega a comentar dele quando é
apresentada a Lúcio - e, além disso, Ricardo era o único homem que possuía uma
fala tão envolvente a ponto de calar Gervásio Vila-Nova – conhecido por sua
capacidade de ser escutado e por não dividir atenção com ninguém. O cenário do
primeiro encontro dos dois marcará o tom da história que viverão juntos: “tão
estranho, tão perturbador, tão dourado...”.
Ricardo tinha vinte e sete anos e
não se percebia na vida para trabalhar ou coisa que o valha. Estava ora em
Paris, ora em Lisboa, sem ter nenhum tipo de compromisso formal - tal qual a Lúcio.
Fisicamente passa por uma
significativa transformação. Seu rosto, num primeiro momento, foi descrito por
Lúcio como um rosto árabe e, portanto, um rosto viril, mas que se modifica com
o casamento. Lúcio percebe imediatamente a mudança quando reencontra o amigo na
estação de trem por conta de seu retorno a Portugal. Assim, Lúcio nota Ricardo:
“As suas feições bruscas haviam-se amenizado, acetinado – feminilizado [...]”
A amizade entre eles se desenvolveu
porque além da simpatia que nutriam um pelo outro, tinham também vidas muito
semelhantes. Ambos eram artistas, não trabalhavam, não tinham família,
freqüentavam os mesmos lugares, divertiam-se com as mesmas coisas. Vidas de
ócio e arte.
[...]
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Fonte:
Fonte:
Maria Carolina Vazzoler Biscaia: “A
estética decadentista em A
confissão de Lúcio de Mário de Sá-Carneiro”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura
Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Literatura Portuguesa. Orientador: Prof.
Dr. Carlos Alberto Vechi). São Paulo, 2006.
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