01/01/2014

Os Escravos, de Castro Alves

 Castro Alves - Os Escravos - Iba Mendes
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Comover para convencer

Edison Carneiro (1937), Afrânio Coutinho (1947), Vicente Azevedo (1971) e Lopes Rodrigues (1974) são unânimes em destacar que o contexto em que Castro Alves viveu foi decisivo para a consolidação do repertório do poeta. Pensamos que além de influenciada pelo contexto em que viveu e pelas obras literárias com que teve contato, deve-se somar a ligação  com o fato de ser a Bahia, sua terra natal, um palco de lutas do povo brasileiro, uma vez que as revoltas empreendidas naquele território trouxeram, em grande medida, discussões envoltas pela idéia de liberdade, entendida em suas várias conotações. Além disso, a Bahia vivera praticamente da dependência do tráfico negreiro até 1850, o que acirrara mais ainda o ambiente de lutas pela liberdade (Silva, 2006, p. 22). Certamente, o Recife também exerceu forte influência na formação do poeta; entretanto, a Bahia liga-se mais fortemente à memória das lutas em que estiveram presentes familiares de Alves16.

Foi na Bahia, por exemplo, que se deu a Rebelião de 1711, assinalada por José Barbosa Mello (s/d, p. 354). O movimento era contrário ao imposto de 10% ad valorem sobre as mercadorias importadas, lançado pelo Governador Pedro de Vasconcelos e Souza, com a finalidade de conseguir dinheiro que se destinasse à fortificação do Rio de Janeiro e à organização de cruzadas para defender esta cidade de assaltantes piratas. Ainda segundo Barbosa Mello, os Motins populares de 1831 e 1832 revelaram profundo estado de insatisfação com o poder monárquico, por causa da condição de vida da população pobre (idem)17. Além disso, recordemos que a Independência, se oficialmente datada de 7 de setembro de 1822, teve seu marco na Bahia somente quase um ano depois. Trata-se do 2 de julho, a que o poeta Castro Alves assim se refere num texto embalado pela exaltação da, então, emancipada pátria:
  
E nós, que somos faíscas
Da luz desses arrebóis,
Nós que somos borboletas
- Das crisálidas de avós,
Nós, que entre as bagas dos cantos,
Por entre as gotas dos prantos
Inda o sabemos chorar,
Podemos dizer: “Das campas
Sacudi as frias tampas!
Vinde a pátria abençoar!...
Erguei-vos santos fantasmas!
Vós não tendes que corar...
(Porque eu sei que o filho torpe
faz o morto soluçar...)”
(Alves, 1997, p. 93) 

Ainda assinalamos que este texto, intitulado “Ao dous de julho”, foi recitado no Teatro São João - local onde ocorreram vários debates em prol da abolição do escravismo e da proclamação da República - “como era costume numa sociedade que lia pouco mas gostava de ouvir e sabia admirar uma fala bonita” (Silva, 2006, p. 18). Ainda salientamos o diálogo com os “santos fantasmas”, expressão que provavelmente representa os personagens que lutaram no passado histórico brasileiro pela liberdade e/ou contra opressões de várias ordens, sem embargo presentes tanto na memória quanto na prática do poeta de Cabaçeiras. Destaquemos também que a Revolta dos Malês (1835), empreendida pelo escravos muçulmanos advindos do norte da África (então Daomé, hoje Benin) propunha, em certo sentido, a libertação das agruras escravocratas e a constituição de uma República Negra, ideais coincidentes com duas das principais teses condoreiras de Alves. A idéia de se construir a República foi retomada/relida pela Sabinada (1837-1838), como aponta Francisco Iglesias (1992, p. 188); este movimento propunha uma espécie de “República da Bahia” (idem).

Desta forma, pois, cremos que desde os primeiros versos, os denominados “Colegiais”, escritos por volta dos 14 anos e recitados no Ginásio Baiano (1861), até os derradeiros, de 1971, Alves se preocupou em conduzir a denúncia dos desmandos da classe senhorial brasileira, a desditosa condição em que se encontravam os oprimidos, além de despertar consciências e engrossar as fileiras dos que defendiam a Abolição e a República, movido por relatos, experiências visíveis sobre ações de resistência ao cativeiro, fugas massivas e espraiadas, assassinatos dos senhores, revoltas individuais e coletivas, organização de quilombos, enfim, todo um imaginário que se forma em torno da figura empírica do escritor e que de alguma forma migra para os textos. Nas palavras de Costa e Silva, “era como poeta político que ele gostava de falar às grandes platéias. E que ninguém censure esta expressão: Castro Alves via-se como tal, desejoso de, com seus versos, mudar o país e a vida” (Silva, 2006, p. 98). Em poema recitado pelo aluno Antônio de Castro Alves no “Outeiro que teve lugar no Ginásio Baiano a 3 de julho de 1861”, por exemplo, já percebemos a postura empenhada do vate:

Se o índio, o negro africano,
E mesmo o perito Hispano
Tem sofrido servidão;
Ah! Não pode ser escravo
quem nasceu no solo bravo
Da brasileira região!
(Alves, op. cit., p. 568-569) 

A imagem contrastiva entre pátria e escravidão será explorada no conjunto da obra. O texto em questão deixa perceber a voz em defesa dos oprimidos ao mesmo tempo em que contrapõe os infortúnios deles à grandeza da pátria. Podem-se perceber ainda duas releituras críticas sobre a formação do Brasil desde a colônia. Primeiramente, a denúncia da tentativa de escravização dos indígenas por parte dos portugueses, que não vingou totalmente devido à resistência e conhecimentos da terra por parte dos nativos. O negro africano foi eleito mão-de-obra predominante na Colônia e no Império por causa do fracasso da empreitada em fazer do indígena escravo e porque, uma vez heterogêneos entre si e arrancados da África à força e trazidos para cá, ofereciam aparentemente menor possibilidade de organização em luta contra os senhores (cf. Ribeiro, 1995). Outra releitura, ao nosso olhar, é o projeto político de fazer do elemento subjugado ser integrante da nação brasileira, cidadão livre e independente dos mandos senhoriais. Bastante à frente de seu tempo, a textualidade do escritor baiano mostra desejo de integração social e étnica, sentimento nem mesmo presente na campanha desempenhada pelo grupo de parlamentares abolicionistas. Segundo Célia Maria Marinho de Azevedo (1987), o auge da campanha abolicionista se deu ao longo das décadas de 1870 e 1880, impulsionada muito mais pelo “medo branco da onda negra” do que pelo desejo de integração do elemento escravo. Não descartamos, no entanto, que os debates ocorridos em apresentações culturais e acadêmicas, correntes ao longo dos anos de 1850 e 1860, tenham sido importantes para a caminhada libertadora. Nestes debates, os textos de Alves funcionaram enquanto “catalisadores” da caminhada pela libertação18. Temos os versos do autor baiano como argumento que aponta para um desejo de integração social do negro vinte anos antes da abolição! Trata-se, portanto, de uma postura artística/política engajada em problemas de seu tempo/contexto; em outras palavras, o conjunto dos textos é grandiosamente sensível à causa do outro social. A poesia condoreira de Alves, assim, teve como objetivo “dar rosto e vez” à massa oprimida - principalmente escrava - como se pode ver em “Estrofes do solitário”, poema publicado originalmente no Diário da Bahia, a 2 de julho de 1870, já no apagar da vida do poeta:

Basta de covardia! A hora soa...
Voz ignota fatídica revoa,
Que vem... Donde? De Deus.
A nova geração rompe da terra,
E, qual Minerva armada para a guerra,
Pega a espada... olha os céus.
(...)
E o povo é como – a barca em plenas vagas,
A tirania – é o tremendal das plagas,
O porvir – a amplidão.
Homens! Esta lufada que rebenta
É o furor da mais lôbrega tormenta...
_ Ruge a revolução!

E vós cruzais os braços... Covardia!
E murmurais com fera hipocrisia:
_ É preciso esperar...
Esperar? Mas o quê? Que a populaça
Este vento que os tronos despedaça,
Venha abismos cavar?
(Alves, op. cit., p. 274-275)

 É aspecto recorrente no conjunto da obra condenar a tirania e chamar a atenção da sociedade para os problemas que afetam a “populaça”, “barcas em plenas vagas”, e para o despertar de consciências, sobretudo da jovem geração de estudantes para a “revolução que ruge”. Percebe-se também a condenação daqueles que “cruzam os braços” diante dos reclames do contexto que oprime os menos abastados. Um elemento que pode comprovar nossa afirmação reside no fato de os textos freqüentemente recorrerem a figuras históricas, políticas ou mitológicas que, de alguma forma, estiveram ligadas a ações em prol da liberdade, da “revolução”, em épocas distintas, como por exemplo, no poema supra-citado, Minerva, a protetora de Roma e principalmente a defensora dos artesãos e do trabalho manual, tendo se tornado também símbolo do conhecimento e da sabedoria; Cristo; Sobieski, que lutou pela libertação da Polônia; Byron, que lutou pela libertação da Grécia; Kossuth, personagem importante para a afirmação do Estado húngaro, entre outros mais. As referências a essas personagens manifestam-se em formas de metonímias, metáforas, ou símiles providenciais (por exemplo em “E, qual Minerva armada para a guerra,/ Pega a espada... olha os céus”), mecanismos a servir de reflexão e contraponto sobretudo para os estudantes brasileiros, jovens das elites, pois estes deveriam ver nos exemplos dos outros razões para lutarem pelo “basta de covardia!”. Gostaríamos de destacar também que os três últimos versos do trecho citado apontam para uma visão elitista, típica do patriarcado brasileiro, de tomar as rédeas das transformações sociais, não deixando oportunidades para o povo ser sujeito da história. Aliás, esse acontecimento não é isolado em nossa trajetória histórica. Em 1930, repetiu-se um movimento que nos caracteriza desde a Independência, passando certamente pelo Abolicionismo: mais uma vez, tentando evitar que as camadas populares tivessem um papel ativo nas transformações sociais, as classes dominantes se valeram do Estado e do poder  econômico para promover mudanças, sempre em seu favor. “Façamos a revolução antes que o povo a faça” é a sintomática frase do então presidente da província de Minas Gerais, Antônio Carlos. Cremos que a essência desta frase/mentalidade acaba por indicar a única circunstância em que as elites brasileiras admitem rever suas comodidades: quando há ameaça de perdê-las.
  
Consciência possível para o século XIX, Castro Alves não esteve imune a esta mentalidade, pois mesmo erguendo sua voz em favor dos cativos, ainda os representa de maneira a recair em estereótipos, como veremos adiante. Por fim, o poeta alude a uma recorrência nas transformações históricas brasileiras: na esmagadora maioria das vezes, as elites, classe da qual provém o escritor, promovem as “mudanças”.

O autor quer insistentemente demonstrar por meio de “esta lufada que rebenta o furor da mais lôbrega tormenta”- seus escritos - que é preciso acabar com “o tremendal das plagas” - a tirania -, intencionalidade política que também pode ser percebida nas estrofes finais de “América”:
  
Ó pátria, desperta... Não curves a fronte
Que enxuga-te os prantos o sol do Equador.
Não miras na fímbria do vasto horizonte
A luz da alvorada de um dia melhor?

Já falta bem pouco. Sacode a cadeia
Que chamam riquezas... que nódoas que são!
Não manches a folha de tua epopéia
No sangue do escravo, no imundo balcão.

Sê pobre, que importa? Sê livre... é gigante,
Bem como os condores dos píncaros teus!
Arranca este peso das costas do Atlante,
Levanta o madeiro dos ombros de Deus
 (Alves, op. cit., p. 245)
  
O trecho traz em si um apelo à pátria pela libertação dos cativos. Ao recorrer à imagens da nação, o eu poético aponta para a incompatibilidade entre o momento nacional (“folha de tua epopéia”) e a “mancha” da escravidão; em outras palavras, é como se o texto levasse cada um de seus receptores a repensar seu papel no todo social: os versos “não miras na fímbria do vasto horizonte/ A luz da alvorada de um dia melhor?” bem podem pressupor tanto o agente da ação verbal [tu, interlocutor], um sujeito particular, quanto a pátria, soma de todos os sujeitos particulares. Neste e em outros poemas, podemos ler um ato de trazer dramas e experiências particulares, mas que remetem a dramas públicos da sociedade brasileira.

Aponta-se, então, para uma fusão de desejos – do sujeito textual, do receptor e da pátria – pela liberdade dos escravos e pela proclamação da República. O trecho ainda permite inferir o tom retórico, incisivo do poeta, já que este visa tocar e persuadir o público que lhe ouve recitais e/ou o lê em periódicos.

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Fonte:
Luiz Henrique Silva de Oliveira: “A representação do negro nas poesias de Castro Alves e de [Luiz Silva] Cuti: de objeto a sujeito”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Teoria da Literatura. Orientação: prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte). Belo Horizonte, 2007

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