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“Sub Tegmine Fagi”
O título do poema, “Sub Tegmine
Fagi” das Espumas Flutuantes, já indica o dado bucólico que percorrerá todas as
estrofes. O verso de Virgílio, “0sob a sombra da faia”, mostra que o desenrolar
do poema alvesiano apresentar a criação poética como realização do Gênio ligado
à natureza:
SUB TEGMINE FAGI
A Melo Morais
Dieu parle dans le
calme plus haut que dans la tempête.
MICKIEWIKCZ
Deus nobis haec otia
fecit.
VÍRGILIO
Amigo! O campo é o ninho do poeta...
Deus fala, quando a turba está quieta,
As campinas em flor.
— Noivo — Ele
espera que os convivas saiam...
E n'alcova onde as lâmpadas desmaiam
Então murmura — amor
—
Vem comigo cismar risonho e grave...
A poesia — é uma luz... e a alma — uma ave...
Querem — trevas
e ar.
A andorinha, que é a alma — pede o campo.
A poesia quer sombra — é o pirilampo...
P'ra voar...
p'ra brilhar.
Meu Deus! Quanta beleza nessas trilhas...
Que perfume nas doces maravilhas,
Onde o vento gemeu!...
Que flores d'ouro pelas veigas belas!
...Foi um anjo co'a mão cheia de estrelas
Que na terra as
perdeu.
Aqui o éter puro se adelgaça...
Não sobe esta blasfêmia de fumaça
Das cidades p'ra o céu
E a Terra é como o inseto friorento
Dentro da flor azul do firmamento.
Cujo cálix pendeu!..
Qual no fluxo e
refluxo, o mar em vagas
Leva a concha dourada... e traz das plagas
Corais em turbilhão,
A mente leva a prece a Deus — por pérolas
E traz, volvendo após das praias cérulas,
— Um brilhante —
o perdão!
A alma fica melhor no descampado...
O pensamento indômito, arrojado
Galopa no sertão,
Qual nos estepes o corcel fogoso
Relincha e parte turbulento, estoso,
Solta a crina ao
tufão.
Vem! Nós iremos na floresta densa,
Onde na arcada gótica e suspensa
Reza o vento fetal.
Enorme sombra cai da enorme rama...
É o Pagode fantástico de Brama
Ou velha catedral.
Irei contigo pelos ermos — lento —
Cismando, ao pôr do sol, num pensamento
Do nosso velho Hugo.
— Mestre do mundo!
Sol da eternidade!...
Para ter por planeta a humanidade,
Deus num cerro o
fixou.
Ao longe, na quebrada da colina,
Enlaça a trepadeira purpurina
O negro mangueira!!...
Como no Dante a pálida Francesca
Mostra o sorriso rubro e a face fresca
Na estrofe
sepulcral.
O povo das formosas amarílis
Embala-se nas balsas, como as Willis
Que o Norte imaginou.
O antro — fala... o ninho s'estremece...
A dríade entre as folhas aparece...
Pã na flauta
soprou!...
Mundo estranho e bizarro da quimera,
A fantasia desvairada gera
Um paganismo aqui.
Melhor eu compreendo então Virgílio...
E vendo os Faunos lhe dançar no idílio,
Murmuro crente: —
eu vi! —
Quando penetro na floresta triste,
Qual pela ogiva gótica o antiste,
Que procura o Senhor,
Como bebem as aves peregrinas
Nas ânforas de orvalho das boninas,
Eu bebo crença e amor!...
E à tarde, quando o sol — condor sangrento —
No ocidente se aninha sonolento,
Como a abelha na flor...
E a luz da estrela trêmula se irmana
Co'a fogueira noturna da cabana,
Que acendera o pastor,
A lua — traz um raio para os mares...
A abelha — traz o mel... um treno aos lares
Traz a rola a carpir...
Também deixa o poeta a selva escura
E traz alguma estrofe, que fulgura,
P'ra legar ao porvir!...
Vem! Do mundo leremos o problema
Nas folhas da floresta, ou do poema,
Nas trevas ou na luz...
Não vês?... Do céu a cúpula azulada,
Como uma taça sobre nós voltada,
Lança a poesia a flux!...
O poema é dedicado a Melo Morais
(1844-1919), cultor do nacionalismo, de quem Castro Alves deve ter se tornado
amigo ainda em Salvador, quando teve contato com estudantes que moravam em
repúblicas.
Nas epígrafes "Dieu parle
dans le calme plus haut que dans la têmpete." e "Deus nobis haec otia
fecit" (Um deus nos fez estas tranqüilidades), podemos vislumbrar uma
iniciação ao assunto do poema. No primeiro caso, o escritor brasileiro cita
Adam Mickiewikcz (1798-1855), poeta e patriota polonês, responsável pela
criação de um ideal nacional, no momento em que a Polônia estava dividida entre
três potências- Rússia, Prússia e Austria- sendo privada, desse modo, de sua
independência.
No segundo caso, o poeta
brasileiro reitera o nome de Virgílio, apropria-se de um trecho das Bucólicas
no título do poema, bem como utiliza outro como epígrafe. Na primeira bucólica
há um colóquio entre dois pastores (Meliboevs e Tityrus): Meliboevs é obrigado
a deixar sua terra e seu rebanho, aludindo os interlocutores a elementos da
natureza, do campo e também à tristeza em ter de deixar a região querida:
"nos patriae finiset dulcia linquimus arua" (RIBEIRO, 2006, p. 34)15,
(nós deixamos as fronteiras da pátria e os agradáveis campos) "En unquam
patrios longo post tempore finis, pauperis et tuguri congestum caespite
culmen," (Idem, p. 35) (Acaso, algum dia, depois de longo tempo, admirarei
as terras pátrias e o teto da minha pobre choupana, coberto de colmo).
Voltemos à obra brasileira. O
segundo verso da primeira estrofe reitera a epígrafe de Mickiewicz, na qual
existe a idéia de tranquilidade e silêncio. Na poesia, por sua vez, tal
tese exposta a partir de “quando a turba
está quieta” e “Espera que os convivas
saiam”. Assim sendo, a natureza o meio
pelo qual poderia estruturar-se o contato direto com a obra divina, pois Deus
fala “às Campinas em flor”, contudo, só “quando a tuba está quieta” e o amor
acontece quando os convivas partem. Em suma, a natureza, o silêncio e a
tranqüilidade (como a manifestada pelo poeta mantuano), são, nesse contexto,
animadas por Deus, “animador fecundante da própria obra” (PEIXOTO, 1942, p.
251).
Na segunda estrofe, a metáfora: “a
poesia uma luz... e a alma uma ave”
resulta em uma “antítese consubstancial a essa poesia” (GOMES, 1966, p. 29). Em
outras palavras, essa estrofe d lume id
ia central do poema. A poesia uma
“luz/pirilampo” e precisa, portanto, de “trevas/sombra” para sobressair.
A oitava estrofe apresenta-se
como primordial ao processo investigativo:
Irei contigo pelos ermos, lento,
Cismando, ao pôr do sol, num
pensamento
Do nosso velho Hugo.
— Mestre do mundo! Sol da
eternidade!...
Para ter por planeta a humanidade,
Deus num cerro o fixou.
A figura hugoana aparece como uma
lembrança, fruto de um pensamento. Em seguida, o poeta francês é identificado
com o sol. Se considerarmos o planeta Terra um corpo celeste sem luz própria, a
comparação efetivada nesta estrofe parece sugerir a depend ncia intr nseca do
pensamento hugoano para “iluminar” o mundo. Diante disso, Deus como força
onipotente fixou o sol (Victor Hugo) em um cerro17.
Em termos gerais, os vocábulos
utilizados evidenciam que o planeta só seria iluminado – tanto no sentido de
enxergar quanto no de dependência da luz – com a fixação de Hugo (= sol) em uma
colina. O vate francês é, portanto, a fonte de luz para que o mundo sobreviva e
se constitua como tal. Desse modo, a importância que esse nome evoca neste
poema é avultada. O exílio não teria emudecido a voz hugoana. Também curioso observar a utilização do possessivo
“nosso velho Hugo”. Ele representa a idéia de que o mestre francês, nesse
momento, já pertencia ao patrimônio cultural da humanidade.
Mesmo exilado, o escritor francês
continuava produtivo e continuava a ser lido18: em 1862, lançou Les Misérables, causando um grande
impacto mundial. Dois anos depois, publicou o polêmico William Shakespeare. Em
1865, Les Chansons des Rues et des Bois e, no ano seguinte, Les Travailleurs de
la Mer, concluindo o decênio com a publicação de L'Homme qui rit. Em 1867,
Claude Gueux e Le Dernier Jour d’um Condamné foram relançados, reacendendo a
discussão a respeito da pena de morte. O escritor de Les Châtiments era visto
como uma vítima de um despotismo, um protetor dos oprimidos, um revolucionário.
O fato de circunstâncias
aparentemente nefastas criarem situações positivas, como ficou patente na
estrofe em que Hugo, apesar do exílio, continua exercendo seu métier, foi
enfatizado na seqüência pela nona estrofe
Ao longe na quebrada da colina,
Enlaça a trepadeira purpurina
O negro mangueiral!...
Como no Dante a pálida Francesca
Mostra o sorriso rubro e a face
fresca
Na estrofe sepulcral
O “mangueiral” cujo adjetivo
“negro” anteposto sugere um estado mórbido contrasta com “trepadeira
purpurina”, já que, apesar da imagem expressa, aquele serve de suporte para a
sobrevivência desta. Nessa direção, o inferno dantesco que deveria realçar a
palidez de Francesca, vitima da literatura, de modo contrário, fornece-lhe um
“sorriso rubro” e uma “face fresca”.
Prosseguindo, a décima estrofe
reitera a referência à natureza aludindo a flores, fadas, ninfas e, até mesmo,
citando Pã. Em termos gerais, o poeta brasileiro refere-se, nessa estrofe, à
antiga poesia pastoral, ou seja, todos os elementos uniram-se em um único
sentido, a saber, o bucolismo. A utilização do vocábulo “Amarílis” pode
explicitar a planta amarilllys belladona, bem como referir-se à pastora citada
em Virgilio, sendo que em nenhum dos casos existe a negação do bucolismo
mencionado. Termos como: "Willis, dríade, Pã19", reafirmam o sentido
misterioso recôndito na natureza, “A natureza torna-se triste ou alegre,
melancólica ou serena, às vezes misteriosa” (VAN TIEGHEN, 1969, p. 233). Todas
as belezas, encantos e magias que ela possui, e que foram tão veementemente
valorizados outrora são novamente trazidos à baila, acolhendo o poeta e
revelando-lhe mundos desconhecidos.
A natureza em “Sub tegmine fagi”
possui índole própria: "o antro - fala... o ninho s' estremece
(...)". Trata-se de uma dança perene e natural que se desnuda somente ao
olhar atento, desinteressado e desmedido, afirmado por uma relação íntima e
direta com o campo. Na estrofe seguinte – décima primeira- onda alude à poesia
pastoral, "faunos dançando no idílio [poema lírico de tema
bucólico]"; "Virgílio",
de maneira geral, o vate justifica a compreensão do poeta mantuano
através do paganismo criado pelo "mundo estranho e bizarro da quimera"
e do idílio, ou seja, a floresta possui uma força avassaladora sobre o homem,
que, por sua vez, cria essa ligação com a terra.
O eu poético busca algo, uma
resposta, uma inspiração. A convivência com a floresta propicia, então, os
melhores sentimentos humanos, isso porque “A natureza romântica é expressiva.
Ao contrário da natureza árcade, decorativa. Ela significa e revela"
(BOSI, 2001, p. 93).
Prosseguindo, vislumbramos, na
décima terceira estrofe, outra imagem translúcida: o pôr do sol é comparado ao
pouso da abelha na flor.
E a tarde, quando o sol – condor
sangrento-- ,
No ocidente se aninha sonolento,
como abelha na flor...
E a luz da estrela trêmula se
irmana
Co´a fogueira noturna da cabana,
Que acendera o pastor, (ALVES,
Op. Cit, p. 102).
Pode-se afirmar, não sem
referências, que o soleil couchant é, sem dúvida, um tema do século XIX por
excelência, bastando citar, entre outros, o “Soleils couchants III et VI”, de
Hugo das Feuilles d’automne (1829), “Harmonie du soir”, das Fleurs du Mal
(1857) e “Le coucher du soleil romantique” de Les Epaves (1866) ambos de
Baudelaire. Neles, tal idéia é geralmente assimilada à fugacidade do tempo. O
sol de Castro Alves é o “condor sangrento”, isto é, o poeta aproveita-se de um
tema corriqueiro já que esse astro representa para muitos povos imortalidade,
inteligência, fugacidade do tempo, e o qualifica de um modo peculiar, aludindo
ao condor, pássaro que deu nome ao estilo do qual o bardo brasileiro é um dos
principais ícones. Ademais, importa sublinhar que para a “mitologia da
cordilheira dos Andes o condor intervém como avatar do sol” (CHEVALIER, 1988,
p.836). Nesse sentido, essa poesia se insere no quadro geral de temas abordados
no século XIX e, ao mesmo tempo, marca esse símbolo maior com características
alvesianas.
Na décima quarta estrofe vê-se
que a natureza é a nascente de toda vida, e como a poesia é luz, precisa de
escuridão para sobressair. O poeta, por seu turno, é a criatura iluminada por
Deus, única capaz de decifrar as mensagens divinas.
(...)
Também deixa o poeta a selva
escura
E traz alguma estrofe que
fulgura,
Pr´a legar ao porvir!...
A “selva escura” alude
diretamente obra de Dante:
Nel mezzo del cammin di nostra
vita
Mi retrovai per uma selva oscura
Che la diritta via era smarrita.
A figura de Virgílio, poeta e
guia de Dante, representa a razão humana, a qual se mostrará necessária no
momento em que este encontrar-se “perdido em uma selva escura”. No entanto, a
luz solar funciona como mais um motivador. Desse modo, o sol representa, nesse
canto, o esclarecimento, ao passo que a escuridão vincula-se à ignorância.
No poema brasileiro o poeta
seria, então, o único capaz de deixar a “selva escura”- ignorância. Assim como
nos demais poemas, “Sub tegmine fagi” versa sobre a missão crucial do bardo na
terra: a de esclarecer a humanidade. Resumindo, a poesia é luz, o sol é luz,
Victor Hugo é luz, enfim, todo o poema explicita o jogo antitético claro/
escuro, que, de uma maneira geral, aponta para a idéia do trabalho do poeta
como exercício capaz de iluminar o mundo:
E que, altivo, incompreendido e
distante, o poeta romântico impõe-se, intimado pela inspiração que o visita, a
tarefa universal de legislador do reino dos fins espirituais inatingíveis,
onde, imune à lei da causalidade e às
mutáveis circunstâncias do mundo exterior, ocupa, como o viu Lamartine, um
lugar firme e elevado em relação à humanidade: Assis sur le base immuable/ de
l´éternelle vérité/ tu vois d´un oeil inalterable/ les phrases de l´humanité.
(Méditations, XXII, “Le gênie”) (NUNES, Op. Cit., pg. 62).
Outro aspecto interessante é a
equiparação do escritor francês a Dante e Virgílio. Castro Alves ousou colocar
no mesmo patamar escritores clássicos e um poeta seu contemporâneo, assim como
o faria Machado de Assis na poesia 1802-188522 na qual diz: "um dia
celebrando o gênio e a eterna vida / Victor Hugo escreve numa página forte /
Estes nomes que vão galgando a eterna
morte...Isaias...Homero...Virgílio....Para continuar a série interrompida /
escreve o nome delle [sic] e dá-lhe eterna vida." O poeta francês não é
apenas equiparado aos escritores clássicos: a comparação com estes avulta, em
contornos mais nítidos, a figura do bardo francês.
A análise desse poema mostrou,
portanto, que o nome de Victor Hugo, assim como todas as demais referências
mencionadas, auxiliam na composição do texto. Assim, percebe-se que o trabalho
do poeta consiste em trazer para a obra de arte significados existentes no
“conhecimento de mundo”. Nesse sentido, Hugo, Melo Morais, Virgílio, a religião
hindu, Dante, Mickiewikcz e todo o campo semântico ligado a esses vocábulos
são, de fato, componentes que, em conjunto, constroem a poesia. Prova disso é,
como já mencionado anteriormente, o fato de a noção de liberdade ou a ausência
dela estar presente em cada um deles de forma direta ou indireta: os animais
são livres (ave, pirilampo, corcel); o amor de Francesca da Rimini não foi
concretizado por falta de liberdade; o grande poeta francês é expatriado, assim
como a personagem de Virgílio que é privado do direito de ir e vir; a religião
hindu prega a libertação da alma do corpo. Enfim, a poesia é livre.
Pode-se concluir, assim, que o
escritor francês foi cerne da produção castroalvina já que as inúmeras
referências à liberdade e a falta dela, expressas por meio de grandes figuras
da história, por imagens e por metáforas, fazem prever ou pensar em Hugo. Mesmo
na antítese criada a respeito da poesia ser luz, aparece a referência hugoana,
pois o escritor de Les Misérables é identificado com o sol, fonte suprema de
luz, sendo ele, portanto, também poesia.
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Fonte:
Cleonice Ferreira de Sousa: “Projeções do Romantismo pelas asas de um condor: a presença hugoana em poemas da obra de Castro Alves”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento deLetras Modernas da Universidade de São Paulo. Área de concentração: Estudos lingüísticos, literários e tradutológicos em Francês. Orientador: Profº Drº. Gilberto Pinheiro Passos). São Paulo, 2011
Cleonice Ferreira de Sousa: “Projeções do Romantismo pelas asas de um condor: a presença hugoana em poemas da obra de Castro Alves”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento deLetras Modernas da Universidade de São Paulo. Área de concentração: Estudos lingüísticos, literários e tradutológicos em Francês. Orientador: Profº Drº. Gilberto Pinheiro Passos). São Paulo, 2011
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