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Primeiro Fausto em Fluxo
Postulamos, então, a ideia de um Fausto em fluxo, em
processo, inacabável, o qual, lido após a narrativa Fluxo , torna-se o texto
precursor desta; o Fausto pessoano como texto original de um palimpsesto cuja última
camada exposta a narrativa Fluxo .
Fernando
Pessoa tinha a intenção de escrever três Faustos. Projeto que nunca chegou
a terminar, ficando apenas poemas dispersos, incompletos, que só podem ser organizados
a partir dos temas comuns.
Apesar de ser uma obra inacabada, fragmentada, o Primeiro
Fausto além de permitir a compreensão da gênese heteronímia, traz
esboçado como tema central o mistério do mundo. O projeto faustiano
repercutiria, portanto, as ressonâncias filosóficas (ontológicas e metafísicas)
que ecoam por toda a poesia de Pessoa, em antinomias múltiplas e sucessivas (...)
(SEABRA, opus cit. p. 24). O poeta abortou o projeto do drama,
disseminando nas obras dos heterônimos os vários pontos de vista nele
presentes.
Segundo Seabra, foi o próprio excesso de racionalização do
projeto que o levou à impotência da passagem da concepção ao ato criador.
Podemos observar essa dificuldade já na complexidade da explicação do poeta:
O conjunto
do drama representa a luta entre a Inteligência e a Vida, em que a Inteligência
é sempre vencida. A Inteligência é representada por Fausto, e a Vida
diversamente, segundo as circunstâncias acidentais do drama. // No 1° ato, a
luta consiste em a Inteligência querer compreender a vida, sendo derrotada, e
compreendendo só que não podemos compreender a vida. Assim este ato é todo
[disquisições] intelectuais e abstratas, em que o mistério do Mundo (tema
geral, aliás, uma obra inteira, pois que é o tema central da Inteligência) é
repetidamente tratado. (PESSOA, 1976, p.49)
Devido à incompletude da obra pessoana, esta análise
limita-se à apreciação crítica da primeira parte, Mistério do mundo , e da segunda,
O horror de conhecer . Mesmo porque, nos poemas destas, já encontramos toda a concepção
do Fausto pessoano. O poeta português propôs ainda uma outra maneira de compreensão
de seu drama as oposições constantes:
Oposição entre a Inteligência e a Vida, em que a Inteligência busca
compreender; Oposição entre o Desejo e a Realidade, em que o Desejo busca possuir
(compreender de perto); Oposição entre Não-Ser e Ser , em que o Não-Ser busca
ser.
Essas oposições, artisticamente representadas pelo mito
faústico, consistem numa espécie de figuração do transgressor: com o auxílio do
demônio, o homem vai além dos limites impostos por Deus ao saber que as
criaturas humanas podem alcançar sobre o sentido das coisas da existência que
tanto o angustiam. Angústia traduzida poeticamente assim:
Quero fugir
ao mistério
Para onde
fugirei?
Ele é a vida
e a morte
Ó Dor, aonde
me irei? (PESSOA, idem, p.51)
A leitura da narrativa fluxo de Hilda revela muito sobre esse projeto fáustico
pessoano à medida que desenvolve seus principais temas, ou seja, a escritora
levaria a cabo aquilo que Pessoa deixou inconcluso; ela teria conseguido
adequar a forma de expressão ao conteúdo. Mais justo, porém, seria dizer que
aquilo que em Pessoa se apresenta na forma de especulação retórica e, portanto,
abstrata, em Hilda vê-se na prática, pois em sua narrativa ela torna possíveis
e concretas as cenas de um drama cujos verdadeiros protagonistas são as ideias.:
(...) como é
possível que esses que se fazem em mim, que se fizeram e que se farão, não
compreendam a impossibilidade de responder coisas impossíveis. Ora
vejam só, existo apenas há alguns minutos, essa ninharia de tempo e é claro que
não posso responder o que sou. Porque não sei. Até gostaria de dizer, por
exemplo, olha, meu amigo é tão simples responder o que sou, sou eu. (HILT, 2003:
p.25) [grifo nosso]
Em Fluxo o mistério do mundo se enuncia como o
incognoscível, que desencadeia um dilaceramento angustiante. No Primeiro
Fausto, esse dilaceramento também reside na consciência de se saber vivo e
com a única certeza que é a morte esta o
próprio mistério: o mistério ruiu sobre minha alma / E soterrou-a... Morro
consciente . Nesse desenrolar do mistério o grande segredo da busca é que não
se encontra resposta alguma, nem mesmo se entende a si:
O segredo da
Busca é que não se acha.
Eternos mundos
infinitamente,
Uns dentro
de outros, sem cessar decorrem
Inúteis:
Sóis, Deuses, Deus dos Deuses
Neles
intercalados e perdidos
Nem a nós
encontramos no infinito. (...) (PESSOA, 1976: p.53)
Embora nada se encontre, é através dessa busca que se
reconhece a própria limitação humana do não ser outros, o que acentua mais o
desespero e o desamparo:
Devo parar
aqui e pensar que se todos fossem Ruiska, se o meu pararia de rodar. Se
todos fossem, se o meu ser fosse o ser de todos, ah se
o meu ser fosse o ser de todos, uma garra de amor, a tua garra, gavião,
em cada peito, cravada para sempre, carregada como um amuleto (...)
(HILST, idem, p..60) [grifos nossos]
Aqui percebemos como se encontram os escritores na
consciência da multiplicidade falida do eu:
Paro à beira
de mim e me debruço...
Abismo... E
nesse abismo o Universo.
Com seu
tempo e seu spaço, um astro, e nesse
Alguns há,
outros universos, outras
Formas do
Ser com outros tempos, spaços
E outras
vidas diversas desta vida... (PESSOA, 1976, p.56)[grifo nosso]
Pessoa tinha consciência da limitação da própria linguagem -
único caminho de expressão e este parece
ter sido o motivo de não concluir a produção da obra. Ele aborta o projeto por
saber da impossibilidade de expressar com precisão a tensão entre as ideias em versos
de maneira retórica, ou seja, o projeto é malogrado na passagem da abstração
para prática:
Mundo,
confranges-me por existir.
Tenho-te
horror porque te sinto ser
E compreendo
que te sinto ser
Até às fezes
da compreensão
Bebi a taça
[...] do pensamento
Até ao fim;
reconheci-a pois
Vazia, e
achei horror. Mas eu bebi-a.
Raciocinei
até achar verdade,
Achei-a e
não a entendo. Já se esvai
Neste desejo
de compreensão,
Inalteravelmente,
Neste lidar
com seres e absolutos,
O que em
mim, por sentir, me liga à vida
E pelo
pensamento me faz homem. (PESSOA, idem, p.52)
Se, para Pessoa, a criação dessa obra obsessivamente
perseguida esbarra na dificuldade da própria emergência da dramaticidade
intrínseca à linguagem poética, em Hilst a
exploração dessa dramatização (diríamos melhor tragicidade) da linguagem que
move a criação:
Meu Deus,
quem é essa que assim fala? Ruiska, meu nome é Palavrarara. Palavrarara! (...) O
poder de dizer sem ninguém entender. Compreendo muito bem senhora. O poder de
calar. A oferenda. O altar. (HILST, 2003, p.55)
Os recursos linguísticos que permitem criar novos vocábulos,
como a justaposição em palavrarara, são simultaneamente a marca da transgressão
e do domínio sobre a linguagem, que distingue aqueles que t m o poder de dizer
sem ninguém entender . Contudo, por mais hábil que seja o escritor ele esbarra sempre
na impossibilidade da plenitude do domínio, porque a linguagem, por mais que seja
esteticamente trabalhada, nunca será suficiente para dar conta da atualização
permanente e infinda da existência.
Leyla Perrone-Moisés explica que a literatura nasce de uma
dupla falta. A primeira é experimentada por todos os seres humanos, pois o
mundo em que vivemos não nos é
satisfatório. A
segunda, sentem-na os artistas que buscam na literatura uma alternativa, seja positiva
ou negativa, de reconstrução do real.
Na sua gênese
e na sua realização, a literatura aponta sempre para o que falta, no mundo e em
nós. Ela empreende dizer as coisas como são, faltantes, ou como deveriam ser,
completas. Trágica ou epifânica, negativa ou positiva, ela está sempre dizendo
o que o real não satisfaz. (PERRONE- MOÍSES, 2006, p.104)
a substituição da falta
pela escrita . Posto que, para a criação literária, os escritores se valham da linguagem,
e esta nunca seja plenamente suficiente, a linguagem também será sentida como
falta.
No texto Fluxo , como em todos os registros emocionais
hilstianos, toda essa impossibilidade culmina numa reflexão metalinguística na maioria das vezes sarcástica:
Escuta,
anão, estou pensando. Em quê? Na coexistência, nesse ser dos outros. Vai
falando. Me ouves? Claro, mas vou fritando esses peixes, nem imaginas como foi duro
pescar este aqui, todo prateado, olha (..) vê, é dificílimo, acalma-te, come
peixe, agora sim está frito,
estás frito também, pois
coexistes. (HILST, opus, cit, p.72) (grifo nosso)
Como se angústia do nome e da coisa refletisse a obsessão
por sentidos que resultam numa fissura linguística dada pela ambiguidade sarcástica
( frito , em seu sentido literal, de assado, em tensão com frito , em sentido
figurado, com sérios problemas). Consideração que nos remete, novamente, ao
pensamento de Foucault:
A ideia de
que, destruindo as palavras, não são nem ruídos nem puros elementos arbitrários
que se reencontram, mas outras palavras que, pulverizadas por sua vez, liberam
outras essa ideia é ao mesmo tempo o negativo de toda a ciência moderna das línguas
e o mito no qual transcrevemos os mais obscuros poderes da linguagem, e os mais
reais. (FOUCAULT, idem, 123)
A consciência de que criar pela palavra significa, de certo
modo, destruí-la em seus sentidos originais ou convencionais move a literatura
de Hilda Hilst. Tem-se a dramatização da linguagem e a teatralização da escritura:
as palavras, enquanto jogos sonoro-verbais tornam-se ecos de resposta para o
nada que se encontra na busca. Para Hilst, a tragédia da condição humana se resolve
na transgressão da linguagem lugar obscuro de refúgio do ser que se especula
metafisicamente. E resolve-se porque se aceita que não há saída a não ser rir-se
da ironia por estar vivo.
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Fonte:
Sherry Morgana Justino de Almeida: “Do drama estático de Fernando Pessoa à prosa do êxtase de Hilda Hilst: Uma escritura teatral”. (Tese apresentada como requisito complementar para obtenção do grau de Doutor em Letras, área de concentração em Teoria da Literatura, do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Orientador: Prof.ª Dr.ª Ermelinda Maria de Araujo Ferreira) Recife, 2013
Sherry Morgana Justino de Almeida: “Do drama estático de Fernando Pessoa à prosa do êxtase de Hilda Hilst: Uma escritura teatral”. (Tese apresentada como requisito complementar para obtenção do grau de Doutor em Letras, área de concentração em Teoria da Literatura, do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Orientador: Prof.ª Dr.ª Ermelinda Maria de Araujo Ferreira) Recife, 2013
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