29/12/2013

Poemas de Álvaro de Campos, por Fernando Pessoa

 Fernando Pessoa- Poemas de Alvaro de Campos - Iba Mendes
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Álvaro de Campos

A produção poética atribuída a Álvaro de Campos, o terceiro poeta-personagem da “coterie” poética inventada por Fernando Pessoa, apresenta tendências diversas, que se alternam e se cruzam continuamente, impedindo, por um lado, uma divisão em fases definidas, por outro, uma classificação estilística ou ideológica unívoca.

No entanto, é possível apontar diferenças significativas entre os poemas anteriores e posteriores ao seu “encontro” com Alberto Caeiro, caracterizando-se os primeiros por uma linguagem de acento decadentista, obediente a convenções estilísticas e formas poéticas pré-fixadas. Para exemplificar, cito o soneto abaixo:

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir.
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Ressalta-se, neste soneto, datado de 191358, a unidade temática, o metro em decassílabos, as rimas obedientes a um esquema predefinido: nos dois quartetos, o modelo seguido é ABBA, sendo as rimas emparelhadas agudas, toantes e constituídas por verbos no infinitivo (sentir      e sair;      existir e concluir) e as interpoladas, por contraste, graves, consoantes e constituídas por verbos na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (percebo e                recebo; bebo e concebo); nos dois tercetos, os modelos são, respectivamente, CDC e EDE. O “enjambement”, que liga os dois últimos versos do primeiro terceto ao primeiro verso do segundo, cria tensão interpretativa, na medida em que confere maior realce às duas interrogações que aí se formulam.
*
A partir da suposta influência do “Mestre” Alberto Caeiro, os poemas-Campos sofrem uma mudança notória não só no que se fere à explosão sensorialista que neles se verifica, mas também no que diz respeito à ruptura com as formas pré-fixadas: adota, então, a assimetria, o verso livre, o ritmo imprevisível, como princípios poéticos privilegiados. Nesse sentido, pode-se qualificá-lo como o protótipo do poeta “não aristotélico”59, que tudo converte “... em substância de sensibilidade...”, recusando contenções de qualquer ordem, racional ou convencional, de modo a tornar-se um “... foco emissor abstrato sensível ...”, capaz de desenvolver em si mesmo todas as espécies de sensações e alcançar comunicabilidade universal.

Em consonância com esse ideal programático, ganha relevo a faceta talvez mais conhecida de Álvaro de Campos, que é a de poeta “futurista”. Sobre a propriedade ou impropriedade desse epíteto, muito já se discutiu, e inclusive o próprio Campos já se manifestou em sentido de franca desaprovação62. Todavia, sendo uma qualificação ainda recorrente na literatura crítica sobre esse poeta-personagem, é pertinente dizer alguma coisa a respeito.

Dentre as produções poéticas que motivam a qualificação de Álvaro de Campos como heterônimo “futurista”, está a       “Ode Triunfal”. Por ser uma composição muito longa, transcrevo apenas as cinco estrofes iniciais, que passo, em seguida a comentar:

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinqüenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes, Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrênuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

(...) 

Embora alguns estudiosos vejam, nos dois versos de abertura, uma exalta-ção futurista da civilização industrial, chamo a atenção para o adjetivo “dolorosa” e para a sensação de “febre”, mencionada no segundo verso, elementos que já antecipam uma disposição bem distante de uma apologia do futurismo.

É bem verdade que, na seqüência das estrofes, o leitor vai se deparar com um discurso que evoca imagens, ruídos, ritmos e cheiros próprios do cotidiano de um porto marítimo dentro de uma sociedade industrial, e, além disso, com realces tipográficos bem típicos da poética futurista: “Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!”; “Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!/ Hé-lá! He-hô Ho-o-o-o-o!/ Z-z-z-z-z-z-z- z-z-z-z-z!”.

Mas, a bem se ver, a afinidade com o Futurismo não vai muito adiante, des tacando-se elementos de fato incompatíveis com as posições desse movimento.


Não se percebe, por exemplo, aquela hostilidade em relação ao passado, à tradição cultural da humanidade, tão característica dos postulados defendidos por Marinetti.

O próprio título, “Ode Triunfal” se mostra como um dispositivo intertextual, na medida em que resgata uma forma poética característica da Antigüidade, sinalizando, de per si, uma disposição acolhedora em relação ao passado. Na seqüência das estrofes, vai se salientando uma verdadeira fusão dos momentos culturais diversos em sínteses sucessivas através da história. Veja-se, por exemplo, este trecho extraído da terceira estrofe, já citada acima:

(...)

Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro,
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinqüenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes

(...)

Como se pode notar, o que aqui se salienta não é apenas a presença, no momento presente, dos germes dos séculos futuros, mas a inserção desse presente numa longa tradição, num saber cultural acumulado por séculos e séculos. Esse enfoque, permeado de sugestões hegelianas, confirma-se mais para o final da ode, nos dois versos que reiteram: “Eia todo o passado dentro do presente! / Eia todo o futuro dentro de nós! Eia!”.

Além dessa valorização do histórico, é de se notar a emotividade que domina esse discurso, cujo foco, afinal, não são os maquinismos, mas os sentimentos excessivos e as sensações exacerbadas que os mesmos provocam. O eu poético não simplesmente descreve suas sensações, mas dialoga com elas, em certos momentos.

Personaliza-as através de uma respeitosa segunda pessoa do plural (“Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, / De vos ouvir demasiadamente de perto”); fala do seu transpassamento por todas elas (“Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! / Em fúria fora e dentro de mim ...”) e enfatiza tudo isso, através de recursos estilísticos como as longas seqüências de anáforas — “Por todos os ... / Por todas as ...”; “Promíscua fúria de ser parte-agente / Do rodar férreo e cosmopolita / Dos comboios estrênuos, / Da faina transportadora-de-cargas dos navios, / Do giro lúbrico e lento dos guindastes, / Do tumulto disciplinado das fábricas, / E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!”.

Por si sós, os aspectos acima ressaltados são bastantes para sinalizar o distanciamento da “Ode Triunfal” em relação à tônica objetivista da poética futurista, permitindo mesmo qualificar o seu autor, não como “... o cantor da Máquina, da Electricidade ...”, mas, mais precisamente, como “... o seu descantor ...”.

Mas há ainda outros aspectos que debilitam o seu suposto “futurismo” e justificam perfeitamente a ponderação de que se trata, mais propriamente de uma “Ode Triunfal” às avessas, ou melhor, de uma “pseudo-Ode Triunfal.”

Em particular, quero observar que, sendo Álvaro de Campos, de um lado, um engenheiro naval, imerso na atmosfera inóspita da sua vida profissional, e do outro, um poeta do tipo “não-aristotélico”, cujo princípio programático precípuo é a experiência de todas as espécies de sensações, sobre coisas diversas e sobre a mesma coisa, sua saída não poderia ser outra: dispor-se a “... sentir a cidade como sente o campo, o normal como o anormal, o que é mau como o que é bom, o mórbido como o saudável”

Naturalmente, o impacto desse procedimento é bem outro que a tranqüilid de singela pregada pelo Mestre Alberto Caeiro, em seu elogio constante das coisas naturais e da vida campesina: para Álvaro de Campos, não resta senão sentir a paisagem citadina como se fosse uma paisagem campesina, olha-la “... como uma Natureza tropical”. Ora, isto implica entrar em relação íntima com “rodas”, “engrenagens”, “correias de transmissão”, “êmbolos”, “volantes”, “guindastes”, “motores”, “maquinismos em fúria”, enfim, com coisas que só podem gerar um sentimento mórbido de transpassamento maquinizante: “Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! / Ser completo como uma máquina!”. A impossibilidade desse desejo, já realçada pela interjeição inicial, é enfatizada pelo uso do verbo “poder” no modo infinitivo e pela anáfora que o repete no início dois versos subsequentes: “Poder ir ...” / “Poder ao menos ...”.

Outro traço que torna problemática a designação de Álvaro de Campos como “futurista”, e que se torna bem perceptível, quando se passa à leitura de outras odes e poemas de sua autoria, é a recorrência de alusões de cunho metafísico. Se bem que seus versos exibam, quase sempre, um acento marcantemente anti-metafísico e antisimbolista — “Tirem-me daqui a metafísica! / Não me apregoem sistemas completos ...” [450]; “Símbolos? Estou farto de símbolos.../ [...] Símbolos? Não quero símbolos...” [498]; “Símbolos. Tudo símbolos... / Se calhar, tudo é símbolos... / Serás tu um símbolo também? [485] — são encontráveis passagens indicativas de uma preocupação metafísica, sob vários aspectos, coincidente com a de Fernando Pessoa ortônimo. Penso especialmente na sintonia das metáforas centrais de “Ode Marítima” — “Grande Cais Anterior”, “Cais Absoluto”, “... outra espécie de porto”, “... fora do Espaço e do Tempo” [442] — com as usadas por Fernando Pessoa ortônimo em versos como os que se seguem: “O porto sempre por achar” [22]; “Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito...”; “O porto que sonho é sombrio e pálido”, “Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio”, “E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa”, “Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem” [59.1]; “Para o Porto todos os portos”, “A Enseada todas as enseadas”, “Do convés do Barco todos os barcos...” [62]).


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Fonte:
Sandra Neves Abdo: “Fernando Pessoa:   poeta cético?” (Tese apresentada ao Programa de Doutorado em Literatura  Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências  Humanas da Universidade de São Paulo, como requesito parcial  à obtenção do título de Doutor em Literatura Portuguesa.  Área de concentração: Literatura Portuguesa. Orientadora: Profa. Dra. Maria Helena Nery Garcez  Universidade de São Paulo). São Paulo, 2002

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