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Álvaro
de Campos
A
produção poética atribuída a Álvaro de Campos, o terceiro poeta-personagem da
“coterie” poética inventada por Fernando Pessoa, apresenta tendências diversas,
que se alternam e se cruzam continuamente, impedindo, por um lado, uma divisão
em fases definidas, por outro, uma classificação estilística ou ideológica unívoca.
No
entanto, é possível apontar diferenças significativas entre os poemas anteriores
e posteriores ao seu “encontro” com Alberto Caeiro, caracterizando-se os primeiros
por uma linguagem de acento decadentista, obediente a convenções estilísticas e
formas poéticas pré-fixadas. Para exemplificar, cito o soneto abaixo:
Quando
olho para mim não me percebo.
Tenho
tanto a mania de sentir.
Que
me extravio às vezes ao sair
Das
próprias sensações que eu recebo.
O
ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem
ao meu modo de existir,
E
eu nunca sei como hei de concluir
As
sensações que a meu pesar concebo.
Nem
nunca, propriamente reparei,
Se
na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei
tal qual pareço em mim? Serei
Tal
qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo
ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem
sei bem se sou eu quem em mim sente.
Ressalta-se,
neste soneto, datado de 191358,
a unidade temática, o metro em decassílabos, as rimas
obedientes a um esquema predefinido: nos dois quartetos, o modelo seguido é
ABBA, sendo as rimas emparelhadas agudas, toantes e constituídas por verbos no
infinitivo (sentir e sair; existir e concluir) e as interpoladas, por
contraste, graves, consoantes e constituídas por verbos na primeira pessoa do
singular do presente do indicativo (percebo e recebo;
bebo e concebo); nos dois tercetos, os modelos são, respectivamente, CDC e EDE.
O “enjambement”, que liga os dois últimos versos do primeiro terceto ao
primeiro verso do segundo, cria tensão interpretativa, na medida em que confere
maior realce às duas interrogações que aí se formulam.
*
A
partir da suposta influência do “Mestre” Alberto Caeiro, os poemas-Campos
sofrem uma mudança notória não só no que se fere à explosão sensorialista que neles
se verifica, mas também no que diz respeito à ruptura com as formas
pré-fixadas: adota, então, a assimetria, o verso livre, o ritmo imprevisível,
como princípios poéticos privilegiados. Nesse sentido, pode-se qualificá-lo
como o protótipo do poeta “não aristotélico”59, que tudo converte “... em substância
de sensibilidade...”, recusando contenções de qualquer ordem, racional ou
convencional, de modo a tornar-se um “... foco emissor abstrato sensível ...”,
capaz de desenvolver em si mesmo todas as espécies de sensações e alcançar
comunicabilidade universal.
Em
consonância com esse ideal programático, ganha relevo a faceta talvez mais
conhecida de Álvaro de Campos, que é a de poeta “futurista”. Sobre a
propriedade ou impropriedade desse epíteto, muito já se discutiu, e inclusive o
próprio Campos já se manifestou em sentido de franca desaprovação62. Todavia,
sendo uma qualificação ainda recorrente na literatura crítica sobre esse
poeta-personagem, é pertinente dizer alguma coisa a respeito.
Dentre as produções poéticas que motivam a
qualificação de Álvaro de Campos como heterônimo “futurista”, está a “Ode Triunfal”. Por ser uma composição muito
longa, transcrevo apenas as cinco estrofes iniciais, que passo, em seguida a comentar:
À
dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho
febre e escrevo.
Escrevo
rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para
a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó
rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte
espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em
fúria fora e dentro de mim,
Por
todos os meus nervos dissecados fora
Por
todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho
os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De
vos ouvir demasiadamente de perto,
E
arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De
expressão de todas as minhas sensações,
Com
um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em
febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —
Grandes
trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto,
e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque
o presente é todo o passado e todo o futuro
E
há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
Só
porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E
pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinqüenta,
Átomos
que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam
por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes, Rugindo,
rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me
um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah,
poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser
completo como uma máquina!
Poder
ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder
ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me
todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A
todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta
flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade
com todas as dinâmicas!
Promíscua
fúria de ser parte-agente
Do
rodar férreo e cosmopolita
Dos
comboios estrênuos,
Da
faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do
giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do
tumulto disciplinado das fábricas,
E
do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
(...)
Embora
alguns estudiosos vejam, nos dois versos de abertura, uma exalta-ção futurista
da civilização industrial, chamo a atenção para o adjetivo “dolorosa” e para a
sensação de “febre”, mencionada no segundo verso, elementos que já antecipam uma
disposição bem distante de uma apologia do futurismo.
É
bem verdade que, na seqüência das estrofes, o leitor vai se deparar com um
discurso que evoca imagens, ruídos, ritmos e cheiros próprios do cotidiano de
um porto marítimo dentro de uma sociedade industrial, e, além disso, com
realces tipográficos bem típicos da poética futurista: “Ó rodas, ó engrenagens,
r-r-r-r-r-r eterno!”; “Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!/ Hé-lá! He-hô
Ho-o-o-o-o!/ Z-z-z-z-z-z-z- z-z-z-z-z!”.
Mas,
a bem se ver, a afinidade com o Futurismo não vai muito adiante, des tacando-se
elementos de fato incompatíveis com as posições desse movimento.
Não
se percebe, por exemplo, aquela hostilidade em relação ao passado, à tradição
cultural da humanidade, tão característica dos postulados defendidos por Marinetti.
O
próprio título, “Ode Triunfal” se mostra como um dispositivo intertextual, na
medida em que resgata uma forma poética característica da Antigüidade, sinalizando,
de per si, uma disposição acolhedora em relação ao passado. Na seqüência das
estrofes, vai se salientando uma verdadeira fusão dos momentos culturais
diversos em sínteses sucessivas através da história. Veja-se, por exemplo, este
trecho extraído da terceira estrofe, já citada acima:
(...)
Canto,
e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque
o presente é todo o passado e todo o futuro,
E
há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
Só
porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E
pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinqüenta,
Átomos
que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam
por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes
(...)
Como
se pode notar, o que aqui se salienta não é apenas a presença, no momento
presente, dos germes dos séculos futuros, mas a inserção desse presente numa longa
tradição, num saber cultural acumulado por séculos e séculos. Esse enfoque, permeado
de sugestões hegelianas, confirma-se mais para o final da ode, nos dois versos que
reiteram: “Eia todo o passado dentro do presente! / Eia todo o futuro dentro de
nós! Eia!”.
Além
dessa valorização do histórico, é de se notar a emotividade que domina esse
discurso, cujo foco, afinal, não são os maquinismos, mas os sentimentos excessivos
e as sensações exacerbadas que os mesmos provocam. O eu poético não simplesmente
descreve suas sensações, mas dialoga com elas, em certos momentos.
Personaliza-as
através de uma respeitosa segunda pessoa do plural (“Tenho os lábios secos, ó
grandes ruídos modernos, / De vos ouvir demasiadamente de perto”); fala do seu
transpassamento por todas elas (“Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
/ Em fúria fora e dentro de mim ...”) e enfatiza tudo isso, através de recursos
estilísticos como as longas seqüências de anáforas — “Por todos os ... / Por
todas as ...”; “Promíscua fúria de ser parte-agente / Do rodar férreo e
cosmopolita / Dos comboios estrênuos, / Da faina transportadora-de-cargas dos
navios, / Do giro lúbrico e lento dos guindastes, / Do tumulto disciplinado das
fábricas, / E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de
transmissão!”.
Por
si sós, os aspectos acima ressaltados são bastantes para sinalizar o distanciamento
da “Ode Triunfal” em relação à tônica objetivista da poética futurista, permitindo
mesmo qualificar o seu autor, não como “... o cantor da Máquina, da Electricidade
...”, mas, mais precisamente, como “... o seu descantor ...”.
Mas
há ainda outros aspectos que debilitam o seu suposto “futurismo” e justificam
perfeitamente a ponderação de que se trata, mais propriamente de uma “Ode Triunfal”
às avessas, ou melhor, de uma “pseudo-Ode Triunfal.”
Em
particular, quero observar que, sendo Álvaro de Campos, de um lado, um
engenheiro naval, imerso na atmosfera inóspita da sua vida profissional, e do
outro, um poeta do tipo “não-aristotélico”, cujo princípio programático
precípuo é a experiência de todas as espécies de sensações, sobre coisas
diversas e sobre a mesma coisa, sua saída não poderia ser outra: dispor-se a
“... sentir a cidade como sente o campo, o normal como o anormal, o que é mau
como o que é bom, o mórbido como o saudável”
Naturalmente,
o impacto desse procedimento é bem outro que a tranqüilid de singela pregada
pelo Mestre Alberto Caeiro, em seu elogio constante das coisas naturais e da
vida campesina: para Álvaro de Campos, não resta senão sentir a paisagem citadina
como se fosse uma paisagem campesina, olha-la “... como uma Natureza tropical”.
Ora, isto implica entrar em relação íntima com “rodas”, “engrenagens”, “correias
de transmissão”, “êmbolos”, “volantes”, “guindastes”, “motores”, “maquinismos
em fúria”, enfim, com coisas que só podem gerar um sentimento mórbido de transpassamento
maquinizante: “Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! / Ser completo
como uma máquina!”. A impossibilidade desse desejo, já realçada pela
interjeição inicial, é enfatizada pelo uso do verbo “poder” no modo infinitivo
e pela anáfora que o repete no início dois versos subsequentes: “Poder ir ...”
/ “Poder ao menos ...”.
Outro
traço que torna problemática a designação de Álvaro de Campos como “futurista”,
e que se torna bem perceptível, quando se passa à leitura de outras odes e
poemas de sua autoria, é a recorrência de alusões de cunho metafísico. Se bem
que seus versos exibam, quase sempre, um acento marcantemente anti-metafísico e
antisimbolista — “Tirem-me daqui a metafísica! / Não me apregoem sistemas
completos ...” [450]; “Símbolos? Estou farto de símbolos.../ [...] Símbolos?
Não quero símbolos...” [498]; “Símbolos. Tudo símbolos... / Se calhar, tudo é
símbolos... / Serás tu um símbolo também? [485] — são encontráveis passagens
indicativas de uma preocupação metafísica, sob vários aspectos, coincidente com
a de Fernando Pessoa ortônimo. Penso especialmente na sintonia das metáforas
centrais de “Ode Marítima” — “Grande Cais Anterior”, “Cais Absoluto”, “...
outra espécie de porto”, “... fora do Espaço e do Tempo” [442] — com as usadas
por Fernando Pessoa ortônimo em versos como os que se
seguem: “O porto sempre por achar” [22]; “Atravessa esta paisagem o meu sonho dum
porto infinito...”; “O porto que sonho é sombrio e pálido”, “Mas no meu
espírito o sol deste dia é porto sombrio”, “E a sombra duma nau mais antiga que
o porto que passa”, “Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem”
[59.1]; “Para o Porto todos os portos”, “A Enseada todas as enseadas”, “Do
convés do Barco todos os barcos...” [62]).
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Fonte:
Fonte:
Sandra
Neves Abdo: “Fernando Pessoa: poeta cético?” (Tese apresentada ao Programa
de Doutorado em Literatura Portuguesa da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, como
requesito parcial à obtenção do título
de Doutor em Literatura Portuguesa. Área
de concentração: Literatura Portuguesa. Orientadora: Profa. Dra. Maria Helena
Nery Garcez Universidade de São Paulo).
São Paulo, 2002
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