17/11/2013

A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães

 Bernardo Guimaraes - A Escrava Isaura - Iba Mendes
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 A Escrava Isaura 


Isaura, filha  natural  de  Miguel  e  de  uma  escrava  do Comendador  Almeida, é  a  protagonista. Criada como se fosse filha da casa, aos dezessete anos Isaura vê-se cortejada por  todos  os  homens  que  dela  se  aproximam. Entre  a  galeria  de  seus  admiradores  encontramos, inicialmente, Leôncio, filho do comendador,  e  Belchior,  jardineiro dos  Almeida, figura  de  aspecto disforme. Ao assédio de ambos, Isaura responde sempre negativamente. Ao primeiro,  porque, além de casado, é uma pessoa para a qual o que vale é apenas a satisfação dos desejos  carnais. O segundo Isaura rejeita pelo fato de não ter com ele afinidade de qualquer espécie.

A  situação complica-se  quando, morto o pai  de  Leôncio, este, desobedecendo  mais uma vez a última vontade da mãe, recusa-se a alforriar a bela escrava. Vendo-se senhor  absoluto da situação, Leôncio investe toda a sua ambição em cima da indefesa moça. Quando  tudo parece  perdido, o pai  de  Isaura  vem  em  seu socorro.  Aproveitando-se  da  ausência  de  Leôncio, Miguel leva a filha para longe do tirano.

Com a fuga, inicia-se uma segunda fase na vida de  Isaura. Em Recife, protegida  pelo nome  falso de  Elvira, conhece  o belo e  voluntarioso Álvaro. A  paixão entre  os  dois  é  imediata. Perdidamente apaixonados, o jovem recifense resolve apresentar Elvira / Isaura para  a  sociedade  pernambucana. No baile  em  que  se  dá  a  apresentação, a  vida  da  infeliz  jovem  complica-se  outra  vez. Entre  os  presentes, encontra-se  Martinho, que, através  do Jornal  do Comércio, soubera da fuga de Elvira / Isaura. Movido pela ambição, resolve reencaminhar a  escrava a seu dono, a fim de fazer jus à régia recompensa prometida. Entretanto Álvaro impede que tal fato ocorra ao se dispor a tutelar a fugitiva, enquanto a justiça decide seu destino.  Mais uma vez a maldade de Leôncio atinge Isaura. Este, ao saber que sua escrava estava em  Recife, vai até lá, para levá-la de volta ao cativeiro. 

Tem início, então, ao terceiro momento da narrativa. De volta à propriedade dos  Almeida, vemos Leôncio, que, diante da recusa constante de Isaura, está pronto a desferir seu  golpe  mortal  contra  aquela  que  ousou repudiá-lo.Ele  se  mostra  desejoso de  dar  liberdade  à  escrava, mas  sob a  condição de  que  ela  se  case  com  Belchior. Convencida  pelo pai, Isaura  aceita o sacrifício. Miguel mostra-lhe uma carta na qual Álvaro dizia ter-se casado. Mais uma  trama sórdida de Leôncio.

Porém, no momento em  que  todos, na  sala  principal  da  casa-grande, esperam  a  chegada do padre e do tabelião para que o casamento seja realizado, ocorre a grande surpresa:  Álvaro, munido de  documentação que  o torna  proprietário de  todos  os  bens  de  Leôncio, enfrenta a desfaçatez do tirano. Frente ao inesperado, Leôncio desnorteado, sai da sala, apanha  uma arma e se mata.

Os  diferentes  conflitos  da  narrativa  são colocados  à  semelhança  do que  ocorre  num livro de ópera: a ação é o dado mais importante a ser considerado pelo autor. O narrador  exerce  mais  a  função de  ponto que  de  relator  propriamente  dito. As  personagens, após  uma  breve apresentação, são colocadas em cena representando o papel que lhes cabe.       

O enredo tem início com a descrição da magnífica fazenda dos Almeida, protagonistas  da  história, no município de  Campus  de  Goitacases, à  margem  do Paraíba, estado do Rio de Janeiro.

Longe da fazenda, a natureza “ostentava-se ainda em toda a sua primitiva e selvática rudeza”; próximo a ela, “a mão do homem tinha convertido a bronca selva”.61 Essa descrição é própria das obras românticas, herança do neoclassicismo (arcadismo), com suas cenas  bucólicas, campestres, idealizadas.

A  apresentação da  protagonista, a  escrava  Isaura  é  paradoxal. Primeiro descreve  sua voz como sendo melodiosa, suave, apaixonada e de timbre mais puro e fresco que se pode  imaginar. Depois, lembrando o leitor que Isaura é escrava, acrescenta na descrição de sua voz  um tom velado e melancólico de uma cantiga que parece sufocar uma alma solitária e sofredoa:

Desd’o berço respirando
Os ares da escravidão,
Como semente lançada
Em terra de maldição,
A vida passo chorando
Minha triste condição.

Os meus braços estão presos,
A ninguém posso abraçar,
Nem meus lábios, nem meus olhos
Não podem de amor falar;
Deu-me Deus um coração
Somente para penar.

A descrição física de Isaura foge aos padrões estéticos que se pressupõe a uma es“A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada,  que não saberíeis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. O colo donoso e do mais puro lavor sustenta  com graça inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente ondulados se despenham caracolando pelos ombros em espessos e luzidos rolos, e como franjas negras escondiam quase completamente o dorso da  cadeira, a que se achava recostada”.

Ao dizer que o vestido de Isaura “parecia uma nuvem, do seio da qual se erguia a cantora como Vênus nascendo da espuma do mar, ou como um anjo surgindo dentre brumas  vaporosas”, o narrador compara a imagem da heroína a Vênus, a deusa grega da Beleza, acentuando a formosura e perfeição das formas de Isaura. Ao mesmo tempo, as associações à  “espuma do mar” e a “anjos surgindo dentre brumas vaporosas” acentuam a idéia de alvura, brancura que é inerente ou se irradia do corpo de Isaura.

“Os encantos da gentil cantora eram ainda realçados pela singeleza, e diremos  quase pobreza do modesto trajar. Um vestido de chita ordinária azul-clara desenhava-lhe perfeitamente com encantadora simplicidade o porte esbelto e a cintura delicada... Uma pequena  cruz de azeviche presa ao pescoço por uma fita preta constituía o seu único ornamento”. Porém, voltando a lembrar o leitor que Isaura é uma escrava, o narrador descreve-a usando vestido de chita ordinário e uma pequena cruz de azeviche presa ao pescoço por uma fita preta. Observa-se uma nítida marca da religião oficial do período monárquico, o catolicismo, o qual fazia parte também do poder estatal. Isaura é escrava, porém é branca e católica, assimilou a cultura branca, branqueou-se. O canto de Isaura é um canto de “profundo recolhimento”.  O autor compara sua voz ao canto de uma sereia e caso não seja, ao de um anjo. 

Ainda no início da obra, no capítulo I, Malvina diz que Isaura deve ter-se apaixonado por alguém: “Vamos lá, confessa; tens um amante, e é por isso que lamentas não teres  nascido livre para poder amar aquele que te agradou, e a quem caíste em graça, não é assim?... – Perdoe-me, Sinhá Malvina; - replicou a escrava com um cândido sorriso. – Está muito enganada; estou tão longe de pensar nisso! ...e és mui linda e bem prendada para te inclinares a  um escravo, só se fosse um escravo, como tu és, o que duvido que haja no mundo”.

Esse fato ocorre em virtude de Isaura estar pensativa e melancólica. Isaura diz  que não, porém Malvina a rebate e diz que é natural se apaixonar, mas não por um escravo, só se for um escravo prendado como ela. Percebe-se nessa introdução que o modelo de escravo (negro, cabelo pixainho, sem a instrução do branco) não condiz com a descrição da nossa heroína.

Isaura recebeu aquilo em que consistia a educação feminina da época, dirigida a  casa e aos salões, e destinada às moças de famílias ricas: aprendizado da leitura e da escrita;  trabalhos de agulha; fundamentos religiosos; aprendizado de música e de línguas estrangeiras, noções de arte, como o desenho. “Posto que criada na sala, e empregada quase sempre em  trabalhos delicados, todavia ela era hábil em todos os gêneros de serviço doméstico: sabia  fiar, tecer, lavar, engomar, e cozinhar tão bem ou melhor do que qualquer outra.”

No capítulo II, para explicar a origem de Isaura, o narrador descreve que a protagonista era “filha de uma linda mulata, que fora por muito tempo a mucama favorita e a criada  fiel da esposa do comendador”. Uma referência à sensualidade e a lascividade da mulata. Ela não é apenas uma mulata, ela é uma “linda mulata”. A mulata que irá dar à luz à Isaura, luta no início aos caprichos do comendador Almeida, esposo de Malvina, e proprietário das  terras, da fazenda e dos escravos. A mulata foge aos caprichos lascivos, além de ser descrita, mais uma vez, como linda mulata.

O pai de Isaura também foge do padrão de feitor, aquele que tortura, maltrata os  escravos. Sua descrição é totalmente amenizada pelo autor: “O feitor porém, que era um bom  português ainda no vigor dos anos, e que não tinha as entranhas tão empedernidas como o seu patrão, seduzido pelos encantos da mulata, em vez de trabalho e surras, só lhe dava carícias e  presentes, de maneira que daí a algum tempo a mulata deu à luz da vida a gentil escravinha...”

Observa-se que os pais biológicos de Isaura divergem das mulatas e dos feitores  da época, para não dizer dos demais personagens mulatos e feitores da obra. Em tese, são bons como a filha. Isaura, porém, herdara do pai que fora expulso da fazenda, os traços finos e  delicados, e não os traços da mãe, mulata.

A submissão feminina da mulher branca, assim como a submissão da mulher mulata, esta por sua condição muitas vezes de escrava, e em outros casos como alforriada, estão presentes na obra. A esposa do comendador Almeida, quando viva, tendo condições para alforriar Isaura, não o fez, esperou a iniciativa de seu esposo, pois dizia ter Isaura como uma  filha que não teve em seu casamento. O comendador, por sua vez, não gostava do capricho que sua esposa tinha para com a escrava Isaura: “Está aí se esmerando em criar uma formidável tafulona, que lá pelo tempo adiante há de lhe dar água pela barba”.

Só depois do casamento é que Leôncio começa a observar com atenção a beleza  de Isaura: “Só depois de casado Leôncio, que antes disso poucas e breves estadas fizera na  casa paterna, começou a prestar atenção à extrema beleza e às graças incomparáveis de Isaura”. Para manter os dispositivos morais, que embora incapazes de vencer sua vontade pessoal, eram necessários à ordem social vigente, além de serem necessários à reputação de chefe  de família, o senhor branco soube recorrer ao argumento da irresistibilidade e à amoralidade  da mulher de cor, principalmente a mulata, como elementos eficazes a justificar os impulsos  extraconjugais masculinos, sem maiores problemas morais por parte do conquistador. Conhecido dito popular afirma: 76 “branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar”. Casou-se com Malvina, estereótipo da mulher branca; Isaura mesmo sendo de cor branca, exala o cheiro da mulata, de forma mais suave do que nas obras naturalistas, é o puro desejo; e as  demais negras da fazenda como tia Joaquina que servem para o trabalho, somente como força  de labuta.

Além disso, a voz de Leôncio confirma que se casara com Malvina não por amor, mas por especulação: “... sentira apenas por ela essa paixão, que se leva no gozo dos prazeres  sexuais, e com eles se extingue”.

Leôncio que é “dono” de Isaura fará tudo para tê-la, mesmo que para isso empregue a violência. É o desejo, a volúpia falando mais alto. Percebe-se o encanto, a sedução que a  mulata provoca no branco.Isto porque a mulata reunia peculiaridades físicas da branca e da  negra, constituindo-se num tipo de beleza própria.

Observa-se que Leôncio conversa com seu cunhado Henrique, sobre Isaura, exaltando-lhe a beleza, transparecendo certo cinismo e lascivas interiores. Henrique, por sua vez, fica rubro, pois sendo uma personagem “digna e de nobre alma”  não vê a escrava da mesma  maneira que seu cunhado. Para ele, Henrique, Isaura por ser branca, não o seduz. Para Leôncio, sim, pois é a personagem que representa o poder escravocrata. Leôncio encarna o amor-desejo.

Outra descrição da beleza ímpar de Isaura, que destoa do padrão da mulata, ocorre  quando Leôncio e Henrique chegam às oito horas da manhã para tomar café e encontram Isaura bordando. Leôncio diz a Henrique: “Então, que te parece? Segredava Leôncio a seu cunhado. – Uma escrava desta ordem não é um tesouro inapreciável? Quem não diria, que é uma  andaluza da Cádis, ou uma Napolitana?...”  Isaura é comparada, pelo seu porte e beleza, a uma égua da raça Andaluzia. Henrique, nesta mesma passagem, diz que Isaura é coisa melhor, respondendo que é uma perfeita brasileira (observa-se um paradoxo na análise: se ela, Isaura, é branca como o teclado de marfim do piano, descrição do início da obra, como pode ser a  perfeita brasileira, lembrando que a brasileira seria mulata?). Leôncio vai resolver esse impasse dizendo o contrário, que ela é superior à brasileira, fazendo uma alusão à mulher da Europa, subjetivamente. Lembrando que no Brasil, naquela época, havia muitos brasileiros, esses  sim, eram os brasileiros, era o pensamento da época.

Isaura, em algumas cenas, é comparada a utensílios e jóias: “Isaura é como um traste de luxo, que deve estar sempre exposto no salão. Querias que eu mandasse para a cozinha os meus espelhos de Veneza?...” “Eu morreria de dor, se me visse forçado a largar mão da jóia inestimável, que o céu parece ter me destinado...”. Em outra, como descrita no parágrafo anterior, é comparada a um animal (uma égua): “Quem não diria, que é uma andaluza  da Cádis, ou uma Napolitana?”. 

Henrique, por vezes, faz esquecer que Isaura é uma escrava, pois ela é branca. Ao mesmo tempo em que fica extasiado diante dela, por razão de sua beleza, logo se lembra que  faz papel ridículo, pois se trata de uma escrava.

Porém, Henrique como se estivesse enfeitiçado, volta a cortejar a escrava: “-Não;  ainda não vi nenhuma que te iguale, Isaura, eu te juro. Olha, Isaura; ninguém mais do que eu está nas circunstâncias de conseguir a tua liberdade... Além da liberdade terás tudo o que desejares...” Isaura, com toda a sua beleza, fica horrorizada com tudo que Henrique lhe propõe: “- Meu Deus! – exclamou Isaura com um ligeiro tom de mofa;...” 

Observa-se nessas duas passagens, que Isaura por ter a pele branca, clara, é comparada a uma dama da corte por Henrique, que promete “os céus”, em troca de seu amor. Se  fosse verdadeiramente mulata, isso não aconteceria, muito menos se fosse negra.  

A voz de Henrique, pedindo-lhe “um beijo, Isaura!... Por piedade” é a prova que  Isaura foge completamente dos padrões estéticos da escrava negra e da escrava mulata, no que diz respeito à pele, e também no que diz respeito aos serviços domésticos e aos prazeres  sexuais.

Tanto Leôncio quanto Henrique disputam Isaura. Ela se vê como uma presa a ser  devorada por dois tigres.

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Fonte:
Felisberto Augusto Da Fonseca : “Matizes e (Pre) Conceitos da Mulata bas Obras”:  “A Escrava Isaura” e “O Cortiço”. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em  Ciências  da  Linguagem  como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Ciências da Linguagem. Universidade do Sul de Santa Catarina. Orientadora:  Profª. Doutora  Jussara  Bittencourt de Sá. Tubarão, 2006

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