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A Escrava Isaura
Isaura,
filha natural de
Miguel e de
uma escrava do Comendador
Almeida, é a protagonista. Criada como se fosse filha da
casa, aos dezessete anos Isaura vê-se cortejada por todos
os homens que
dela se aproximam. Entre a
galeria de seus
admiradores encontramos, inicialmente,
Leôncio, filho do comendador, e Belchior,
jardineiro dos Almeida,
figura de aspecto disforme. Ao assédio de ambos, Isaura
responde sempre negativamente. Ao primeiro, porque, além de casado, é uma pessoa para a
qual o que vale é apenas a satisfação dos desejos carnais. O segundo Isaura rejeita pelo fato de
não ter com ele afinidade de qualquer espécie.
A situação complica-se quando, morto o pai de
Leôncio, este, desobedecendo mais
uma vez a última vontade da mãe, recusa-se a alforriar a bela escrava. Vendo-se
senhor absoluto da situação, Leôncio
investe toda a sua ambição em cima da indefesa moça. Quando tudo parece
perdido, o pai de Isaura
vem em seu socorro.
Aproveitando-se da ausência
de Leôncio, Miguel leva a filha
para longe do tirano.
Com a fuga,
inicia-se uma segunda fase na vida de
Isaura. Em Recife, protegida pelo
nome falso de Elvira, conhece o belo e
voluntarioso Álvaro. A paixão
entre os
dois é imediata. Perdidamente apaixonados, o jovem
recifense resolve apresentar Elvira / Isaura para a
sociedade pernambucana. No
baile em
que se dá
a apresentação, a vida
da infeliz jovem complica-se outra
vez. Entre os presentes, encontra-se Martinho, que, através do Jornal
do Comércio, soubera da fuga de Elvira / Isaura. Movido pela ambição,
resolve reencaminhar a escrava a seu
dono, a fim de fazer jus à régia recompensa prometida. Entretanto Álvaro impede
que tal fato ocorra ao se dispor a tutelar a fugitiva, enquanto a justiça
decide seu destino. Mais uma vez a
maldade de Leôncio atinge Isaura. Este, ao saber que sua escrava estava em Recife, vai até lá, para levá-la de volta ao
cativeiro.
Tem início,
então, ao terceiro momento da narrativa. De volta à propriedade dos Almeida, vemos Leôncio, que, diante da recusa
constante de Isaura, está pronto a desferir seu golpe
mortal contra aquela
que ousou repudiá-lo.Ele se
mostra desejoso de dar
liberdade à escrava, mas
sob a condição de que
ela se case
com Belchior. Convencida pelo pai, Isaura aceita o sacrifício. Miguel mostra-lhe uma
carta na qual Álvaro dizia ter-se casado. Mais uma trama sórdida de Leôncio.
Porém, no
momento em que todos, na
sala principal da
casa-grande, esperam a chegada do padre e do tabelião para que o
casamento seja realizado, ocorre a grande surpresa: Álvaro, munido de documentação que o torna
proprietário de todos os
bens de Leôncio, enfrenta a desfaçatez do tirano.
Frente ao inesperado, Leôncio desnorteado, sai da sala, apanha uma arma e se mata.
Os diferentes
conflitos da narrativa
são colocados à semelhança
do que ocorre num livro de ópera: a ação é o dado mais
importante a ser considerado pelo autor. O narrador exerce
mais a função de
ponto que de relator
propriamente dito. As personagens, após uma breve
apresentação, são colocadas em cena representando o papel que lhes cabe.
O enredo
tem início com a descrição da magnífica fazenda dos Almeida, protagonistas da
história, no município de
Campus de Goitacases, à
margem do Paraíba, estado do Rio
de Janeiro.
Longe da
fazenda, a natureza “ostentava-se ainda em toda a sua primitiva e selvática
rudeza”; próximo a ela, “a mão do homem tinha convertido a bronca selva”.61 Essa descrição é própria das obras românticas,
herança do neoclassicismo (arcadismo), com suas cenas bucólicas, campestres, idealizadas.
A apresentação da protagonista, a escrava
Isaura é paradoxal. Primeiro descreve sua voz como sendo melodiosa, suave,
apaixonada e de timbre mais puro e fresco que se pode imaginar. Depois, lembrando o leitor que
Isaura é escrava, acrescenta na descrição de sua voz um tom velado e melancólico de uma cantiga que
parece sufocar uma alma solitária e sofredoa:
Desd’o berço respirando
Os ares da escravidão,
Como semente lançada
Em terra de maldição,
A vida passo chorando
Minha triste condição.
Os meus braços estão presos,
A ninguém posso abraçar,
Nem meus lábios, nem meus olhos
Não podem de amor falar;
Deu-me Deus um coração
Somente para penar.
A descrição
física de Isaura foge aos padrões estéticos que se pressupõe a uma es“A tez é como o marfim do teclado, alva que
não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que
não saberíeis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. O colo donoso e
do mais puro lavor sustenta com graça
inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente ondulados se
despenham caracolando pelos ombros em espessos e luzidos rolos, e
como franjas negras escondiam quase completamente o dorso da cadeira, a que se achava recostada”.
Ao dizer
que o vestido de Isaura “parecia uma nuvem, do seio da qual se erguia a cantora
como Vênus nascendo da espuma do mar, ou como um anjo surgindo dentre brumas vaporosas”, o narrador compara a imagem
da heroína a Vênus, a deusa grega da Beleza, acentuando a formosura e
perfeição das formas de Isaura. Ao mesmo tempo, as associações à “espuma do mar” e a “anjos surgindo dentre
brumas vaporosas” acentuam a idéia de alvura, brancura que é inerente ou se
irradia do corpo de Isaura.
“Os
encantos da gentil cantora eram ainda realçados pela singeleza, e diremos quase pobreza do modesto trajar. Um vestido de
chita ordinária azul-clara desenhava-lhe perfeitamente com encantadora
simplicidade o porte esbelto e a cintura delicada... Uma pequena cruz de azeviche presa ao pescoço por uma fita
preta constituía o seu único ornamento”. Porém, voltando a lembrar o
leitor que Isaura é uma escrava, o narrador descreve-a usando vestido de chita
ordinário e uma pequena cruz de azeviche presa ao pescoço por uma fita preta.
Observa-se uma nítida marca da religião oficial do período monárquico, o
catolicismo, o qual fazia parte também do poder estatal. Isaura é escrava, porém
é branca e católica, assimilou a cultura branca, branqueou-se. O canto de
Isaura é um canto de “profundo recolhimento”. O autor compara sua voz ao canto de uma sereia
e caso não seja, ao de um anjo.
Ainda no
início da obra, no capítulo I, Malvina diz que Isaura deve ter-se apaixonado
por alguém: “Vamos lá, confessa; tens um amante, e é por isso que lamentas não
teres nascido livre para poder amar
aquele que te agradou, e a quem caíste em graça, não é assim?... – Perdoe-me,
Sinhá Malvina; - replicou a escrava com um cândido sorriso. – Está muito enganada;
estou tão longe de pensar nisso! ...e és mui linda e bem prendada para te
inclinares a um escravo, só se fosse um
escravo, como tu és, o que duvido que haja no mundo”.
Esse fato ocorre em virtude de Isaura estar pensativa
e melancólica. Isaura diz que não, porém
Malvina a rebate e diz que é natural se apaixonar, mas não por um escravo, só se
for um escravo prendado como ela. Percebe-se nessa introdução que o modelo de
escravo (negro, cabelo pixainho, sem a instrução do branco) não condiz
com a descrição da nossa heroína.
Isaura
recebeu aquilo em que consistia a educação feminina da época, dirigida a casa e aos salões, e destinada às moças de
famílias ricas: aprendizado da leitura e da escrita; trabalhos de agulha; fundamentos religiosos;
aprendizado de música e de línguas estrangeiras, noções de arte, como o
desenho. “Posto que criada na sala, e empregada quase sempre em trabalhos delicados, todavia ela era hábil em
todos os gêneros de serviço doméstico: sabia fiar, tecer, lavar, engomar, e cozinhar tão
bem ou melhor do que qualquer outra.”
No
capítulo II, para explicar a origem de Isaura, o narrador descreve que a protagonista
era “filha de uma linda mulata, que fora por muito tempo a mucama favorita e a
criada fiel da esposa do comendador”. Uma referência à sensualidade e a lascividade
da mulata. Ela não é apenas uma mulata, ela é uma “linda mulata”. A mulata que
irá dar à luz à Isaura, luta no início aos caprichos do comendador Almeida,
esposo de Malvina, e proprietário das terras,
da fazenda e dos escravos. A mulata foge aos caprichos lascivos, além de ser
descrita, mais uma vez, como linda mulata.
O pai de
Isaura também foge do padrão de feitor, aquele que tortura, maltrata os escravos. Sua descrição é totalmente amenizada
pelo autor: “O feitor porém, que era um bom português ainda no vigor dos anos, e que não
tinha as entranhas tão empedernidas como o seu patrão, seduzido pelos encantos
da mulata, em vez de trabalho e surras, só lhe dava carícias e presentes, de maneira que daí a algum tempo a
mulata deu à luz da vida a gentil escravinha...”
Observa-se
que os pais biológicos de Isaura divergem das mulatas e dos feitores da época, para não dizer dos demais
personagens mulatos e feitores da obra. Em tese, são bons como a filha. Isaura,
porém, herdara do pai que fora expulso da fazenda, os traços finos e delicados, e não os traços da mãe, mulata.
A submissão
feminina da mulher branca, assim como a submissão da mulher mulata, esta por
sua condição muitas vezes de escrava, e em outros casos como alforriada, estão presentes
na obra. A esposa do comendador Almeida, quando viva, tendo condições para alforriar
Isaura, não o fez, esperou a iniciativa de seu esposo, pois dizia ter Isaura
como uma filha que não teve em seu
casamento. O comendador, por sua vez, não gostava do capricho que sua esposa
tinha para com a escrava Isaura: “Está aí se esmerando em criar uma formidável
tafulona, que lá pelo tempo adiante há de lhe dar água pela barba”.
Só depois
do casamento é que Leôncio começa a observar com atenção a beleza de Isaura: “Só depois de casado Leôncio, que
antes disso poucas e breves estadas fizera na casa paterna, começou a prestar atenção à
extrema beleza e às graças incomparáveis de Isaura”. Para
manter os dispositivos morais, que embora incapazes de vencer sua vontade pessoal,
eram necessários à ordem social vigente, além de serem necessários à reputação
de chefe de família, o senhor branco
soube recorrer ao argumento da irresistibilidade e à amoralidade da mulher de cor, principalmente a mulata,
como elementos eficazes a justificar os impulsos extraconjugais masculinos, sem maiores
problemas morais por parte do conquistador. Conhecido dito popular afirma: 76 “branca para casar, mulata para f..., negra
para trabalhar”. Casou-se com Malvina, estereótipo da mulher branca; Isaura
mesmo sendo de cor branca, exala o cheiro da mulata, de forma mais suave do que
nas obras naturalistas, é o puro desejo; e as demais negras da fazenda como tia Joaquina que
servem para o trabalho, somente como força de labuta.
Além disso,
a voz de Leôncio confirma que se casara com Malvina não por amor, mas por
especulação: “... sentira apenas por ela essa paixão, que se leva no gozo dos
prazeres sexuais, e com eles se extingue”.
Leôncio que
é “dono” de Isaura fará tudo para tê-la, mesmo que para isso empregue a
violência. É o desejo, a volúpia falando mais alto. Percebe-se o encanto, a
sedução que a mulata provoca no
branco.Isto porque a mulata reunia peculiaridades físicas da branca e da negra, constituindo-se num tipo de beleza
própria.
Observa-se
que Leôncio conversa com seu cunhado Henrique, sobre Isaura, exaltando-lhe a
beleza, transparecendo certo cinismo e lascivas interiores. Henrique, por sua
vez, fica rubro, pois sendo uma personagem “digna e de nobre alma” não vê a escrava da mesma maneira que seu cunhado. Para ele, Henrique,
Isaura por ser branca, não o seduz. Para Leôncio, sim, pois é a personagem que
representa o poder escravocrata. Leôncio encarna o amor-desejo.
Outra
descrição da beleza ímpar de Isaura, que destoa do padrão da mulata, ocorre quando Leôncio e Henrique chegam às oito horas
da manhã para tomar café e encontram Isaura bordando. Leôncio diz a Henrique: “Então,
que te parece? Segredava Leôncio a seu cunhado. – Uma escrava desta ordem não é
um tesouro inapreciável? Quem não diria, que é uma andaluza da Cádis, ou uma Napolitana?...” Isaura é comparada, pelo seu porte e beleza,
a uma égua da raça Andaluzia. Henrique, nesta mesma passagem, diz que Isaura é
coisa melhor, respondendo que é uma perfeita brasileira (observa-se um paradoxo
na análise: se ela, Isaura, é branca como o teclado de marfim do piano,
descrição do início da obra, como pode ser a perfeita brasileira, lembrando que a
brasileira seria mulata?). Leôncio vai resolver esse impasse dizendo o
contrário, que ela é superior à brasileira, fazendo uma alusão à mulher da Europa,
subjetivamente. Lembrando que no Brasil, naquela época, havia muitos brasileiros,
esses sim, eram os brasileiros, era o
pensamento da época.
Isaura, em
algumas cenas, é comparada a utensílios e jóias: “Isaura é como um traste de
luxo, que deve estar sempre exposto no salão. Querias que eu mandasse para a
cozinha os meus espelhos de Veneza?...” “Eu morreria de dor, se me visse
forçado a largar mão da jóia inestimável, que o céu parece ter me destinado...”. Em outra, como descrita no parágrafo anterior,
é comparada a um animal (uma égua): “Quem não diria, que é uma andaluza da Cádis, ou uma Napolitana?”.
Henrique,
por vezes, faz esquecer que Isaura é uma escrava, pois ela é branca. Ao mesmo
tempo em que fica extasiado diante dela, por razão de sua beleza, logo se
lembra que faz papel ridículo, pois se
trata de uma escrava.
Porém,
Henrique como se estivesse enfeitiçado, volta a cortejar a escrava: “-Não; ainda não vi nenhuma que te iguale, Isaura, eu
te juro. Olha, Isaura; ninguém mais do que eu está nas circunstâncias de
conseguir a tua liberdade... Além da liberdade terás tudo o que desejares...”
Isaura, com toda a sua beleza, fica horrorizada com tudo que Henrique lhe propõe:
“- Meu Deus! – exclamou Isaura com um ligeiro tom de mofa;...”
Observa-se
nessas duas passagens, que Isaura por ter a pele branca, clara, é comparada a
uma dama da corte por Henrique, que promete “os céus”, em troca de seu amor. Se
fosse verdadeiramente mulata, isso não
aconteceria, muito menos se fosse negra.
A voz de
Henrique, pedindo-lhe “um beijo, Isaura!... Por piedade” é a prova que Isaura foge completamente dos padrões
estéticos da escrava negra e da escrava mulata, no que diz respeito à pele, e
também no que diz respeito aos serviços domésticos e aos prazeres sexuais.
Tanto
Leôncio quanto Henrique disputam Isaura. Ela se vê como uma presa a ser devorada por dois tigres.
[...]
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Fonte:
Fonte:
Felisberto Augusto Da Fonseca : “Matizes e (Pre) Conceitos da Mulata bas
Obras”: “A Escrava Isaura” e “O Cortiço”.
(Dissertação apresentada ao
Curso de Mestrado em Ciências da
Linguagem como requisito parcial
à obtenção do grau de Mestre em Ciências da Linguagem. Universidade do Sul de
Santa Catarina. Orientadora: Profª.
Doutora Jussara Bittencourt de Sá. Tubarão, 2006
Obrigada.
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