27/03/2016

Sermão XIV, com o santíssimo sacramento exposto, do Padre Antônio Vieira

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Guerra justa
  
E é precisamente esta consciência que força a pessoa a justificar suas ações; em se tratando de guerras e violência o indivíduo mais do que nunca viu a necessidade de se justificar, de não se sentir culpado.

“O desenvolvimento da inteligência e da força física é igualmente necessária para ambos os animais e os humanos; porém o que é característico do homem é o desenvolvimento de sua consciência, que gradualmente se intensifica e amplifica”.

A ordem pública se revelou um problema de uma urgência particular na Alta Idade Média. A necessidade de regular a violência se provou indispensável para a manutenção da funcionalidade da sociedade. De certa forma, as guerras desempenhavam um papel ambíguo e, paralelamente, duplo na sustentação da ordem pública. De um lado, os entraves bélicos eram sintomáticos da deficiência existente na ordem pública, de outro, as guerras eram instrumentos não só para a restauração, como também para a manutenção da ordem pública. Sabe-se que de acordo com os preceitos cristãos, a guerra tinha o poder da purificação, isto se esta fosse executada dentro dos moldes que a classificava como justa. Assim sendo, tornou-se imprescindível, no momento da declaração da guerra, o domínio e a inserção de guerra dentro dos critérios de guerra justa.

As diretrizes para a qualificação de uma guerra justa foram extraídas dos princípios laicos, os quais tinham como base o direito civil. A guerra então se torna uma extensão das leis através de meios extraordinários; um ato de violência legalizado e legitimado. No entanto, em momento algum, durante a Idade Média, houve um consenso sobre quais seriam os critérios a justificar uma guerra, fazendo com que a ambigüidade prevalecesse. Nas fontes estudadas, as imprecisões dos critérios ficam evidentes. Contudo, é importante destacar quatro critérios que se mostraram bastante recorrentes e citados nos documentos bélicos. Ainda que ambíguos esses critérios, que foram extraídos principalmente das obras de Santo Agostinho e Graciano, foram bastante referenciados pelos juristas cânones. Os critérios são: 1) auctoritas; 2) res; 3) causa e 4) animus. Sendo de importante nota que suas influências podem ser observadas em autores medievais portugueses como Álvaro Pais, que a respeito dos critérios para uma guerra justa escreve:

Ora, para ficar bem claro no que respeita à guerra, nota que se requerem cinco coisas para ela ser justa: pessoa, coisa, causa, ânimo e autoridade.

A pessoa, essa deve ser hábil para combater, importando, pois, que seja pessoa secular, à qual é licito derramar sangue, e não clérigo, ao qual não é lícito (C. XXIII, q. VIII, cap. Clerici e cap. Iis a quibus; Dec., tit, De vuoto, cap. Ex multa § final), a não ser em necessidade inevitável (Clementinas, tit. De homicidio, cap. Furiosus).

A coisa, para que a guerra seja para reaver as coisas ou defender a pátria (C. XXIII. q. II, cap. Iustum, q. III, Cap Fortitudo, e q. VIII, cap. Si nulla).

A causa, para que se combata por necessidade e para fazer a paz (C. XXIII, q. I, cap. Noli).

O ânimo, para que não se faça por ódio, cobiça, ou vingança, mas para correção e por caridade, justiça e obediência (C. XXIII, q. I, cap. Quid culpatur, e cap. Militare, que diz:Militar não é delito, mas fazê-lo para obter presas é pecado).

A autoridade, para que se faça com a autorização da Igreja, principalmente quando se combate pela fé, ou com a autorização do príncipe (C. XXIII, q. I, cap. Quid culpatur, e q. II, cap. I).

Com efeito, a importância desses critério teria alcance abrangente e duradouro na memória coletiva dos europeus, sendo, portanto, prudente, uma análise um tanto quanto mais detalhada sobre o significado de cada um.

Auctoritas somente o príncipe pode declarar guerra.

“Todos devem se submeter à governança das autoridades, pois não há autoridade, exceto aquela que Deus tenha estabelecido. As autoridades que existem foram estabelecidas por Deus. Conseqüentemente, aquele que se rebelar contra as autoridades estarão se rebelando contra o aquilo que foi instituído por Deus, e aqueles que assim o fizerem estarão se colocando a julgamento” . No medievo, a questão da “autoridade” foi de vasta importância, com a própria sociedade sendo um reflexo disto quando se organizou de forma extremamente hierárquica. A Bíblia, por sua vez, foi bem explícita, ao afirmar que as autoridades colocadas no poder, só assumiram tal encargo com o aval divino. Em outras palavras, era o próprio Deus quem escolhera as autoridades. Estes homens, por serem divinamente ordenados, foram considerados superiores e mais especiais do que os demais, iluminados, por assim dizer. E foi com base nesta suposta superioridade que os teólogos e juristas cânones depositaram suas esperanças de que estas “autoridades” fossem capazes de tomare m sempre as melhores e mais sábias decisões.

Nos degraus da hierarquia, os príncipes ocupavam um lugar de destaque, e por esta razão foram considerados os mais aptos a decidir se uma guerra deveria ou não ser travada. Neste caso, o primeiro critério a qualificar uma guerra como uma guerra justa seria o de ter a guerra declarada por uma autoridade do nível de um príncipe ou rei. Somente o príncipe poderia ter discernimento suficiente para saber se aquela guerra deveria ou não acontecer. Este discernimento seria uma dádiva que Deus presenteara ao príncipe, não só através de sua nobre linhagem como também no instante de sua coroação como uma autoridade suprema. Seria difícil, fútil e claramente contra os planos divinos duvidar as justificações reais. Os príncipes eram os únicos a possuir capacidade para se justamente declarar guerra.

Res o objetivo do conflito teria sempre de ser o de recuperação de posses e propriedades ou da defesa da patria

Novamente, o uso da violência na autodefesa, defesa da patria e defesa da fé foram consideradas um dos direitos mais básico. Por isso, a parte majoritária dos teólogos e juristas chegou à conclusão, embora não explicitamente, que o único e aceitável objetivo de uma empreitada bélica para que esta fosse considerada “justa”, teria de ser o da recuperação do que tinha sido injustamente tomado, uma prática da autodefesa ou então em defesa da patria ou fé.

Embora este critério da res favorecesse as guerras defensivas, não significou que as guerras ofensivas fossem marginalizadas pelas leis, até porque as guerras poderiam ser estrategicamente ofensivas, mas consideradas legalmente defensivas. Se os cristãos quisessem atacar um vilarejo muçulmano, por exemplo, eles poderiam assim atacar sem prévia agressão, bastava justificar clamando estar atacando em benefício da defesa da Santa Igreja Católica. Usando estas estratégias legais, ficou extremamente fácil o enquadramento das guerras dentro do pré-requisito res. De uma forma ou de outra, os cristãos da Idade Média sempre conseguiram guerrear bradando o direito da defesa ou da recuperação daquilo que, segundo eles, tinha sido injustamente furtado.

Causa somente a necessidade extrema poderia justificar uma guerra

Este critério foi baseado no princípio de que a violência, se possível, deveria ser evitada a todo custo. Somente quando se torna impossível a preservação da paz, ou a obtenção de justiça de qualquer outra forma poder-se-ia então fazer uso da força. Ou seja, violência só em ultimo caso, em última instância. Citando São Luís (1226-1270), o historiador francês Jacques LeGoff informa que na Idade Média, “a guerra deve ser o último recurso da diplomacia. Não se deve fazê-la senão depois que todos os meios pacíficos para reparar uma injustiça se mostrarem vãos”.

Animus nunca deve o ódio ou a avareza inspirar um conflito.

Animus era compreendido como a intenção ou a disposição com a qual o guerreiro deveria se engajar em um conflito. Como previamente referenciado, o homem medieval acreditava que a guerra poderia ser benevolente em seu propósito, portanto, se a motivação por trás de uma guerra fosse a da reparação de alguma injustiça ou de alguma violação, seu propósito conseqüentemente seria o de fazer justiça, ou seja, a guerra teria um propósito justo. Contudo, para os guerreiros não bastava apenas estar no direito de legitima defesa, era preciso também estar com o coração envolto pelas mais afáveis das intenções. O coração do belicoso não poderia estar amargo à procura de vingança, mas ao contrário, seu coração deveria estar em paz, cheio de amor e caridade para com o inimigo, procurando sempre fazer justiça e o bem. Recaí-se aqui novamente sobre os princípios da guerra como ato de caridade e amor.

O mais impactante aspecto deste critério, no entanto, era aquele que isentava os guerreiros da culpa. A lógica era de que os combatentes que apresentavam o animus correto e pio estavam livres de se sentirem culpados. Estes guerreiros gozavam do direito de matar sem ter de responder por isso, não só civilmente, como também religiosamente. O sentimento da culpa ocupava um lugar de extrema importância na sociedade cristã medieval. O rito do confessionário e da penitência são exemplos disto. A culpa era, pois, a conseqüência imediata do pecado. Conseqüentemente, o guerreiro que trazia consigo para o campo de batalha o coração puro, benevolente e envaidecido poderia matar sem se preocupar em estar cometendo um pecado, sem ter de se sentir mal por isso. Ao contrário, ele deveria se sentir orgulhoso de si mesmo.

Por outro lado, acreditava-se que as conseqüências do ato violento inspirado no ódio poderiam ser drásticas e prejudiciais, capazes até mesmo de afetar o resultado da batalha em si. E, não raro foi o número de vezes em que o animus dos guerreiros foi responsabilizado pelo fracasso do combate. Ora, se Deus, que através da divina providência regia todos os acontecimentos estava sempre do lado dos cristãos, porque então permitir que estes guerreiros, que afinal lutavam em Seu nome, perdessem qualquer batalha que fosse? A resposta dada pela Igreja recaiu sobre o animus dos guerreiros. Deus permitiu ou concedeu a derrota porque algo que os cristãos tinham feito foi muito de Seu desagrado. Pois, como Deus em sua infinita sapienza não poderia ser culpado, os únicos responsáveis pela derrota só poderiam ser os cristãos. Uma vez que a guerra já tinha sido considerada justa, pois foi dada prévia autorização pelas autoridades para que esta fosse travada, só restava então colocar a responsabilidade sobre os guerreiros. A derrota na batalha ou guerra só poderia ser resultado direto do animus com o qual os guerreiros lutaram. A derrota era uma conseqüência ou o castigo pelos guerreiros terem entrado no campo de batalha pelas motivações e razões erradas. Movidos pela ambição, ganância ou ódio, os guerreiros colocaram em perigo o resultado da batalha, o fracasso da expedição conseqüência disto.

Devido a estas razões, o animus dos guerreiros passou a ser de grande preocupação e cuidado por parte dos lideres militares e religiosos, enfim daqueles responsáveis pela organização das expedições militares. Encarregados do extremamente subjetivo e dificultoso trabalho de determinar e mesurar o animus dos guerreiros, as “autoridades” das campanhas bélicas encontraram-se prostradas, pois, na prática, estavam desprovidas da habilidade de executar tal tarefa. Afinal, a confirmação do animus só poderia ser revelada em sua integridade no pós-guerra, quando então se teria o resultado da batalha para indicar, através da derrota ou vitória, se Deus estaria ou não contente com o espírito que preenchera o coração dos guerreiros. Pontua-se aqui a dubiedade deste critério, por um lado o animus correto era um pré-requisito para o enquadramento da guerra como justa, e do outro o animus correto só seria revelado no pós-guerra. A incompatibilidade de se exigir na pré-guerra aquilo que de fato só ficará manifesto no pós-guerra fica evidente no caso da chamada Segunda Cruzada.

Esta magnânime expedição bélica foi consensualmente denominada de justa, chegando a obter o aval papal como guerra santa. No entanto, os cristãos que embarcaram rumo ao Oriente retornariam para casa derrotados e moralmente destruídos ao serem responsabilizados pelo desastroso desempenho das forças cristãs frente às armas islâmicas. A acusação contra esses guerreiros não tinha como base o improdutivo desempenho tático-militar. Ao contrário, as alegações eram as de que os guerreiros partiram para esta campanha com o coração pecaminoso e impuro, e teriam sido estas disposições tendenciosas e malévolas a provocar a sanha divina, rancor que, por conseguinte, resultou no fracasso militar da Segunda Cruzada. Ora, se a benevolência do animus era um dos critérios a conferir à guerra sua retidão, então, logicamente, a iniqüidade do animus, neste caso comprovada pela derrota da segunda expedição cruzadística, deveria, neste caso, ratificar sua impropriedade. No entanto, esta lógica não procedeu, e apesar desta discrepância e incoerência, em momento algum foram invalidadas as classificações da Segunda Cruzada como uma guerra justa.

O exemplo que a Segunda Cruzada oferece serve para demonstrar a flexibilidade e ambigüidade dos critérios usados para classificar a guerra como justa. A maleabilidade promovida por esta elasticidade dos critérios se mostrou de relevante importância no teatro bélico onde a Igreja foi protagonista. A extensa sermonária bélica erguida pela Igreja no decorrer da Idade Média comprova e evidencia claramente a articulação e o engendro dos critérios em sua retórica persuasiva.

Portanto, o que se intenciona aqui não é expor definições conclusivas ou concisas dos conceitos de auctoritas, res, causa ou animus, e sim mostrar seus limites, suas falhas, suas qualidades do maleável, para que desta imprecisão se possa pensar os discursos de guerra que visavam, acima de tudo, conceder aos guerreiros paz de espírito como intuito de continuarem a praticar a violência direcionada.

Também é válido ressaltar que as diretrizes para uma guerra justa não se limitavam a esses critérios. Existiam inúmeros outros pré-requisitos, como por exemplo, o critério personae, que restringia as pessoas que poderiam entrar no conflito armado, excluindo principalmente mulheres, crianças e clérigos da participação ativa no campo de batalha. O destaque atribuído à somente esses quatro conceitos (auctoritas, res, causa, animus) é que estes foram os mais comuns e os que com mais freqüência apareceram nos sermões analisados. Além disso, o entendimento dessas expressões e suas compreensões serão fundamentais para o diálogo que mais adiante se pretende fazer com as fontes discursivas. Pode-se dizer que esses quatro conceitos formam o pilar de sustentação para a coleção de sermões de guerra que a Igreja desenvolveu ao longo de sua participação na esfera militar ao longo da Idade Média.

Como foi no caso relatado pela Crónicas (D. Duarte) de Rui de Pina, onde o décimo primeiro rei portugês, o Rei D. Duarte (1433-38) busca determinar se é justo ou não declarar guerra à Tânger no norte da África. A campanha militar condizia com as inspirações e aspirações expansionistas que Portugal há algum tempo tendia. Pressionado por seus quatro irmãos à aderir a causa, D. Duarte, ainda no início do seu breve reinado, buscou saber seus direitos civis e canônicos junto a suma autoridade papal, afinal estava ciente dos ganhos que uma bem sucedida guerra poderia oferecer aos cofres da coroa e, também, da importância para um novo rei provar seu valor militar.

Como resposta às suas indagações, D. Duarte recebe uma carta de parecer positivo do pontífice, detalhando os argumentos que o levaram a chegar à esta conclusão. O teor da carta, cujo acesso o cronista possívelmente teria tido nas chancelarias reais é então, supostamente, reproduzida. Nela, observam-se claramente os quatro critérios primordiais de classificação bélica (a res, a auctoritas, a animus e a causa) que servem como base de análise.

Por exemplo, em virtude da res que delimita o objetivo do conflito como tendo sempre de ser voltado para a recuperação de bens, propriedade e defesa da patria, vê-se prontamente descrito na carta papal as injúrias que, no caso de um ataque à Tanger, estariam sendo cobradas. Afinal estavam os “Infiees que ocupam as terras que foram de Christaaõs, em abatimento da Religiom Christaã, tornando-o as Sanctas Igrejas em malditas Mizquitas, e fazendo outras abominaçoões”. Tratava-se de um claro desrespeito à ordem natural estabelecida e prevista pela Divina Providência. No entendimento do sumo pontífice, as terras em Tânger seriam uma herança legítima dos cristãos por parte do Império Bizantino, que nos séculos VI e VII dominaram a região. O direito jurídico às heranças bizantinas foram mais do que suficientes para que legitimamente se movesse guerra contra os árabes. As conclusões papais eram inquestionáveis e não deixavam dúvidas de que “com auctoridade do Papa, poder-se e dever-se fazer guerra”. Contudo, a carta faz ainda mais uma ressalva, ainda que “as terras que nunqua foram de Chrstaaõs”, ainda assim “licitamente lhe podiam fazer guerra” bastava provar que “que ou elles faziam dano e nojo aos Christaaõs”. Pois, se, “ha terra e abondança della he do Senhor” e a “a Ley da natureza manda adorar huũ soo Deos” então aqueles que “fossem ydolatras ou pecassem contra natura, ca entom poderiam ser punidos”. Este fato podia ser comprovado pelos “Livros dos Sanctos Canones” ou pela auctoritas bíblica que revela que Deus “que assy punio Sodoma e as outras Cidades posto que fossem gentios”.

À estes critérios de auctoritas, que define como necessário que seja um príncipe, ou neste caso, um equivalente a príncipe que declare a guerra, têm-se ainda adicionado à auctoritas e sabedoria dos “Doutores Theologuos, por mais segura cautella”. No texto, segundo os teólogos da corte, era imprescindível que às causes bellum sejam incluídos os motivos de ordem espirituais. No entender dos desses doutores, antes de recorrer ao uso da força “os imygos devyam pelos Christaãos primeiro ser amoestados e, se podesse seer, convertidos per preegaçooens”. Ou seja, os portugueses deviam ser movidos a guerrear pela correta disposição do animus, e que antes de se chegar à guerra, os guerreiros deveriam, através de “exempros de boa vida”, potencializar nos maometanos o desejo da conversão ao Cristianismo, tarefa que priorizava a pregação como veículo transmissor da mensagem divina. Porém “quando em suas contumacias as palavras Sanctas os nom commovessem, com armas os poderiam forçar, ou guerrear ao ponto de morte ou conversão.

Houve, ainda, outra advertência à respeito do critério causa, a de que “em qualquer caso que ho Principe possa fazer guerra aos Infiees, devee ser com piedade e discripçom, e que nom desponha o povoo Christaaõ a manifesto perigo, sem evidente necessidade”. Isto porque somente a extrema necessidade poderia, de acordo com o código jurídico regente, justifcar uma empreitada bélica. Se o rei fosse movido à guerrear “per sua sobeja audacia ou maa providencia”, e desta impetuosidade “se seguissem mortes e dãnos”, neste caso o rei “gravemente pecaria”. Mas, nos casos onde “ho Principe fezesse o que devia”, ou seja, agisse dentro da lei, ainda que “perecesse muyta gente”, ainda assim o rei não estaria pecando pois “em guerra justa, nom pecaria”.

D. Duarte apresentou uma outra dúvida aos teólogos, a questão era “se ho Princepe podia lançar pedido a seu povoo, pera fazer guerra justa a Infiees”, ao que os teólogos explanaram a diferença jurídica entre guerra defensiva e ofensiva e suas repercursões práticas. De acordo, “ho Principe, segundo derecto, pode em duas maneyras fazer guerra justa”.

O primeiro tipo de guerra seria a guerra justa defensiva ou o que o teólogos chamam de “justa necessária”, consistindo das incursões bélicas “que se faz para defensom da terra”, a outra seria a guerra justa ofensiva, reconhecida pelos acadêmicos como “justa voluntária”, travada geralmente “para conquistar terra de Infiees”. Na eventualidade de uma guerra justa necessaria “podia ho Principe fazer aa custa de seu povoo”. Porém no caso de uma “guerra voluntaria naõ podia, nem devia fazer, salvo aa sua propia despesa”.

A preocupação acerca da legitimação bélica é condizente com o cognome de O Rei Filósofo que D. Duarte mereceu. Neste texto, observa-se um nítido receio, por parte do Papa e seus conselheiros teólogos em providenciar fundamento teórico aos seus pareceres. O apreço na construção deste argumento bélico evidencia uma sociedade altamente preocupada em seguir os ditames da justiça.

Esse gosto pela execução da justiça foi herdado pela sociedade colonial que em suas leis, também viria a categorizar e diferênciar as guerras justas das demais. Padre António Vieira igualmente faz a distinção da guerra justa, isto é, da guerra que tem como finalidade aplicar a justiça e restaurar a paz.

Quando os holandeses preparavam um assalto à Salvador em 1637, Padre António Vieira recitou o “Sermão ao Enterro dos Ossos dos Enforcados”435. A ocasião permitiu ao orador discursar sobre a justiça e a paz no âmbito da guerra. “Abraçaram-se a justiça e a paz e foi a justiça a primeira que concorreu para este abraço: Justitia et pax”, ponderou Vieira. Para o jovem António Vieira, que ainda não completara trinta anos de idade, “a justiça não é a que depende da paz (como alguns tomam por escusa) senão a paz da justiça”. Por isso ele incita `à resistência, “Faça a justiça aquela justa guerra, de que estes ossos são os despojos, e deles e dela nascerá a suspirada paz, cuja falta padecemos há tantos anos”. Como “a paz são frutos da justiça”, ou seja, como a justiça antecede a paz, daí que a aplicação da justiça, quer por meio de guerras, resultam em paz. “Vedes aqueles ossos desenterrados?” pergunta Vieira, “Pois aquela é a semente de que nasce a paz”, afinal são “debaixo dos grandes e exemplares castigos, cresce e reverdece a paz”.

Exemplificando, o pregador fala aos presentes de Absalão que tentou usurpar o reino de seu pai, o rei David. “Vivo fez-lhe cruel guerra, enforcado deu-lhe a paz de todo o reino. Se houvera justiça que enforcara Absalões, eu vos prometo que dentro e fora não houvera tantas guerras”. Tanto era este o caso, de que existe dobrada união entre essas duas virtudes que são a justiça e a paz que “o maior exemplo de justiça, que viu o mundo, foi o do dilúvio: e que se seguiu depois dele? A paz, que trouxe a pomba a Noé no ramo da oliveira”. Aliás, Vieira se corrige, “Para mim”, diz ele, “o primeiro sinal dela, não foi o da pomba, senão o do corvo. Saído o corvo da arca pôs-se a comer e cevar nos corpos afogados do dilúvio; e quando se dá carne de justiçados aos corvos, segura está a paz do mundo”.

Para o jesuíta, é preciso sair ao campo, às colinas e aplicar a justiça. É necessário dar represálias aos injustos, castigar os que são merecedores do castigo, fazer justa guerra aos injusto, é preciso semear justiça. “Oh como veríamos esses montes coroados de paz, se se vissem estes outeiros semeados de justiça! Mas nós esquecidos desta regra (que também é militar) todos nos ocupamos em fortificar e presidiar outeiros e montes”.

Exposta essa teorização da guerra, ou melhor, da paz e da justiça, com claras fundamentações agostinianas, cabe aqui, também, uma segunda teorização, que visa a guerra justa através das definições de guerras injustas proposta pelo Padre António Vieira. Essas, se encontram já no contexto do Novo Mundo, e tem base no argumento tomista do Padre Manuel da Nóbrega. São aplicações teóricas sobre as guerras praticadas contra os índigenas das Américas. Como uma guerra justa deve, necessariamente ser “movida com a finalidade de reparação de uma ofensa anteriormente sofrida”, a definição não era aplicável no caso das guerras contra os ameríndios. "A fonte de autoridade legal do princípio defendido por Nóbrega era a ius gentium (leis das nações), da forma como foi originalmente compilada pelos juristas do Digesto romano”. De acordo com esse regimento, segundo Eisenberg, “à parte vencedora em uma guerra justa cabia o direito de matar os inimigos vencidos. Ao vencedor cabia também a escolha de uma punição menos drásticas que a morte, na forma da escavização dos derrotados. A vitória em uma guerra justa conferia ao vencedor dominium sobre a vida dos vencidos”.


Com efeito, argumentou Vieira, em defesa dos índios, tendo em conta os mesmos princípios, os povos indígenas não eram “escravos não, porque não são tomados em guerra justa”, e muito menos vassalos porque assim como espanhol ou o genovês, cativo em Argel, é contudo vassalo do seu rei e da sua república, assim o não deixa de ser o índio, posto que forçado e cativo, como membro que é do corpo e da cabeça política da sua nação, importando igualmente para a soberania da liberdade tanto a coroa de penas como a de ouro, e tanto o arco como o ceptro”. Ficando, portanto, conclusivamente argumentado pelo orador que, para se fazer justa guerra aos índios há a necessidade de uma agressão prévia.


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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.

Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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