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Guerra justa
E é precisamente
esta consciência que força a pessoa a justificar suas ações; em se tratando de
guerras e violência o indivíduo mais do que nunca viu a necessidade de se
justificar, de não se sentir culpado.
“O
desenvolvimento da inteligência e da força física é igualmente necessária para
ambos os animais e os humanos; porém o que é característico do homem é o
desenvolvimento de sua consciência, que gradualmente se intensifica e
amplifica”.
A ordem pública
se revelou um problema de uma urgência particular na Alta Idade Média. A
necessidade de regular a violência se provou indispensável para a manutenção da
funcionalidade da sociedade. De certa forma, as guerras desempenhavam um papel
ambíguo e, paralelamente, duplo na sustentação da ordem pública. De um lado, os
entraves bélicos eram sintomáticos da deficiência existente na
ordem pública, de outro, as guerras eram instrumentos não só para a
restauração, como também para a manutenção da ordem pública. Sabe-se que de
acordo com os preceitos cristãos, a guerra tinha o poder da purificação, isto
se esta fosse executada dentro dos moldes que a classificava como justa. Assim
sendo, tornou-se imprescindível, no momento da declaração da guerra, o domínio
e a inserção de guerra dentro dos critérios de guerra justa.
As diretrizes
para a qualificação de uma guerra justa foram extraídas dos princípios
laicos, os quais tinham como base o direito civil. A guerra então se torna uma
extensão das leis através de meios extraordinários; um ato de violência
legalizado e legitimado. No entanto, em momento algum, durante a Idade Média,
houve um consenso sobre quais seriam os critérios a justificar uma guerra,
fazendo com que a ambigüidade prevalecesse. Nas fontes estudadas, as
imprecisões dos critérios ficam evidentes. Contudo, é importante destacar
quatro critérios que se mostraram bastante recorrentes e citados nos documentos
bélicos. Ainda que ambíguos esses critérios, que foram extraídos principalmente
das obras de Santo Agostinho e Graciano, foram bastante referenciados pelos
juristas cânones. Os critérios são: 1) auctoritas; 2) res; 3)
causa e 4) animus. Sendo de importante nota que suas
influências podem ser observadas em autores medievais portugueses
como Álvaro Pais, que a respeito dos critérios para uma guerra justa escreve:
Ora, para ficar bem claro no que respeita à guerra,
nota que se requerem cinco coisas para ela ser justa: pessoa, coisa, causa,
ânimo e autoridade.
A pessoa, essa deve ser hábil para combater,
importando, pois, que seja pessoa secular, à qual é licito derramar sangue, e
não clérigo, ao qual não é lícito (C. XXIII, q. VIII, cap. Clerici e
cap. Iis a quibus; Dec., tit, De vuoto, cap. Ex multa §
final), a não ser em necessidade inevitável (Clementinas, tit. De
homicidio, cap. Furiosus).
A coisa, para que a guerra seja para reaver as coisas
ou defender a pátria (C. XXIII. q. II, cap. Iustum, q. III, Cap Fortitudo,
e q. VIII, cap. Si nulla).
A causa, para que se combata por necessidade e para
fazer a paz (C. XXIII, q. I, cap. Noli).
O ânimo, para que não se faça por ódio, cobiça, ou
vingança, mas para correção e por caridade, justiça e obediência (C. XXIII, q.
I, cap. Quid culpatur, e cap. Militare, que diz: “Militar
não é delito, mas fazê-lo para obter presas é pecado”).
A autoridade, para que se faça com a autorização da
Igreja, principalmente quando se combate pela fé, ou com a autorização do
príncipe (C. XXIII, q. I, cap. Quid culpatur, e q. II, cap. I).
Com efeito, a importância
desses critério teria alcance abrangente e duradouro na memória coletiva dos
europeus, sendo, portanto, prudente, uma análise um tanto quanto mais detalhada
sobre o significado de cada um.
Auctoritas – somente o príncipe
pode declarar guerra.
“Todos devem se
submeter à governança das autoridades, pois não há autoridade, exceto aquela
que Deus tenha estabelecido. As autoridades que existem foram estabelecidas por
Deus. Conseqüentemente, aquele que se rebelar contra as autoridades estarão se
rebelando contra o aquilo que foi instituído por Deus, e aqueles que assim o fizerem estarão se
colocando a julgamento” . No medievo, a questão da “autoridade” foi de vasta
importância, com a própria sociedade sendo um reflexo disto quando se organizou
de forma extremamente hierárquica. A Bíblia, por sua vez, foi bem explícita, ao
afirmar que as autoridades colocadas no poder, só assumiram tal encargo com o
aval divino. Em outras palavras, era o próprio Deus quem escolhera as
autoridades. Estes homens, por serem divinamente ordenados, foram considerados
superiores e mais especiais do que os demais, iluminados, por assim dizer. E
foi com base nesta suposta superioridade que os teólogos e juristas cânones
depositaram suas esperanças de que estas “autoridades” fossem capazes de tomare
m sempre as melhores e mais sábias decisões.
Nos degraus da
hierarquia, os príncipes ocupavam um lugar de destaque, e por esta razão foram
considerados os mais aptos a decidir se uma guerra deveria ou não ser travada.
Neste caso, o primeiro critério a qualificar uma guerra como uma guerra
justa seria o de ter a guerra declarada por uma autoridade do nível de um
príncipe ou rei. Somente o príncipe poderia ter discernimento suficiente para
saber se aquela guerra deveria ou não acontecer. Este discernimento seria uma
dádiva que Deus presenteara ao príncipe, não só através de sua nobre linhagem
como também no instante de sua coroação como uma autoridade suprema. Seria
difícil, fútil e claramente contra os planos divinos duvidar as justificações
reais. Os príncipes eram os únicos a possuir capacidade para se justamente
declarar guerra.
Res – o
objetivo do conflito teria sempre de ser o de recuperação de posses e
propriedades ou da defesa da patria
Novamente, o uso
da violência na autodefesa, defesa da patria e defesa da fé foram
consideradas um dos direitos mais básico. Por isso, a parte majoritária dos teólogos e juristas chegou à
conclusão, embora não explicitamente, que o único e aceitável objetivo de uma
empreitada bélica para que esta fosse considerada “justa”, teria de ser o da
recuperação do que tinha sido injustamente tomado, uma prática da autodefesa ou
então em defesa da patria ou fé.
Embora este
critério da res favorecesse as guerras defensivas, não significou que as
guerras ofensivas fossem marginalizadas pelas leis, até porque as guerras
poderiam ser estrategicamente ofensivas, mas consideradas legalmente
defensivas. Se os cristãos quisessem atacar um vilarejo muçulmano, por exemplo,
eles poderiam assim atacar sem prévia agressão, bastava justificar clamando
estar atacando em benefício da defesa da Santa Igreja Católica. Usando estas
estratégias legais, ficou extremamente fácil o enquadramento das guerras dentro
do pré-requisito res. De uma forma ou de outra, os cristãos da Idade
Média sempre conseguiram guerrear bradando o direito da defesa ou da
recuperação daquilo que, segundo eles, tinha sido injustamente furtado.
Causa – somente a necessidade extrema poderia
justificar uma guerra
Este critério
foi baseado no princípio de que a violência, se possível, deveria ser evitada a
todo custo. Somente quando se torna impossível a preservação da paz, ou a
obtenção de justiça de qualquer outra forma poder-se-ia então fazer uso da
força. Ou seja, violência só em ultimo caso, em última instância. Citando São
Luís (1226-1270), o historiador francês Jacques LeGoff informa que na Idade
Média, “a guerra deve ser o último recurso da diplomacia. Não se deve fazê-la
senão depois que todos os meios pacíficos para reparar uma injustiça se
mostrarem vãos”.
Animus – nunca deve o ódio ou a avareza inspirar um
conflito.
Animus era compreendido como a intenção ou a disposição com a qual o
guerreiro deveria se engajar em um conflito. Como previamente referenciado, o
homem medieval acreditava que a guerra poderia ser benevolente em seu propósito,
portanto, se a motivação por trás de uma guerra fosse a da reparação de alguma
injustiça ou de alguma violação, seu propósito conseqüentemente seria o de
fazer justiça, ou seja, a guerra teria um propósito justo. Contudo, para os
guerreiros não bastava apenas estar no direito de legitima defesa, era preciso
também estar com o coração envolto pelas mais afáveis das intenções. O coração
do belicoso não poderia estar amargo à procura de vingança, mas ao contrário,
seu coração deveria estar em paz, cheio de amor e caridade para com o inimigo,
procurando sempre fazer justiça e o bem. Recaí-se aqui
novamente sobre os princípios da guerra como ato de caridade e amor.
O mais
impactante aspecto deste critério, no entanto, era aquele que isentava os
guerreiros da culpa. A lógica era de que os combatentes que apresentavam o animus
correto e pio estavam livres de se sentirem culpados. Estes guerreiros gozavam
do direito de matar sem ter de responder por isso, não só civilmente, como
também religiosamente. O sentimento da culpa ocupava um lugar de extrema
importância na sociedade cristã medieval. O rito do confessionário e da
penitência são exemplos disto. A culpa era, pois, a conseqüência imediata do
pecado. Conseqüentemente, o guerreiro que trazia consigo para o campo de
batalha o coração puro, benevolente e envaidecido poderia matar sem se
preocupar em estar cometendo um pecado, sem ter de se sentir mal por isso. Ao
contrário, ele deveria se sentir orgulhoso de si mesmo.
Por outro lado,
acreditava-se que as conseqüências do ato violento inspirado no ódio poderiam
ser drásticas e prejudiciais, capazes até mesmo de afetar o resultado da
batalha em si. E, não raro foi o número de vezes em que o animus dos
guerreiros foi responsabilizado pelo fracasso do combate. Ora, se Deus, que
através da divina providência regia todos os acontecimentos estava sempre do
lado dos cristãos, porque então permitir que estes guerreiros, que afinal
lutavam em Seu nome, perdessem qualquer batalha que fosse? A resposta dada pela
Igreja recaiu sobre o animus dos guerreiros. Deus permitiu ou concedeu a
derrota porque algo que os cristãos tinham feito foi muito de Seu desagrado.
Pois, como Deus em sua infinita sapienza não poderia ser culpado, os
únicos responsáveis pela derrota só poderiam ser os cristãos. Uma vez que a
guerra já tinha sido considerada justa, pois foi dada prévia autorização pelas
autoridades para que esta fosse travada, só restava então colocar a
responsabilidade sobre os guerreiros. A derrota na batalha ou guerra só poderia
ser resultado direto do animus com o qual os guerreiros lutaram. A
derrota era uma conseqüência ou o castigo pelos guerreiros terem entrado no
campo de batalha pelas motivações e razões erradas. Movidos pela ambição,
ganância ou ódio, os guerreiros colocaram em perigo o resultado da batalha, o
fracasso da expedição conseqüência disto.
Devido a estas
razões, o animus dos guerreiros passou a ser de grande preocupação e
cuidado por parte dos lideres militares e religiosos, enfim daqueles
responsáveis pela organização das expedições militares. Encarregados do
extremamente subjetivo e dificultoso trabalho de determinar e mesurar o animus
dos guerreiros, as “autoridades”
das campanhas bélicas encontraram-se prostradas, pois, na prática, estavam
desprovidas da habilidade de executar tal tarefa. Afinal, a confirmação do animus
só poderia ser revelada em sua integridade no pós-guerra, quando então se teria
o resultado da batalha para indicar, através da derrota ou vitória, se Deus estaria
ou não contente com o espírito que preenchera o coração dos guerreiros.
Pontua-se aqui a dubiedade deste critério, por um lado o animus correto
era um pré-requisito para o enquadramento da guerra como justa, e do outro o animus
correto só seria revelado no pós-guerra. A incompatibilidade de se exigir na
pré-guerra aquilo que de fato só ficará manifesto no pós-guerra fica evidente
no caso da chamada Segunda Cruzada.
Esta magnânime
expedição bélica foi consensualmente denominada de justa, chegando a obter o
aval papal como guerra santa. No entanto, os cristãos que embarcaram
rumo ao Oriente retornariam para casa derrotados e moralmente destruídos ao
serem responsabilizados pelo desastroso desempenho das forças cristãs frente às
armas islâmicas. A acusação contra esses guerreiros não tinha como base o
improdutivo desempenho tático-militar. Ao contrário, as alegações eram as de
que os guerreiros partiram para esta campanha com o coração pecaminoso e
impuro, e teriam sido estas disposições tendenciosas e malévolas a provocar a
sanha divina, rancor que, por conseguinte, resultou no fracasso militar da
Segunda Cruzada. Ora, se a benevolência do animus era um dos critérios a
conferir à guerra sua retidão, então, logicamente, a iniqüidade do animus,
neste caso comprovada pela derrota da segunda expedição cruzadística, deveria,
neste caso, ratificar sua impropriedade. No entanto, esta lógica não procedeu,
e apesar desta discrepância e incoerência, em momento algum foram invalidadas
as classificações da Segunda Cruzada como uma guerra justa.
O exemplo que a
Segunda Cruzada oferece serve para demonstrar a flexibilidade e ambigüidade dos
critérios usados para classificar a guerra como justa. A maleabilidade
promovida por esta elasticidade dos critérios se mostrou de relevante
importância no teatro bélico onde a Igreja foi protagonista. A extensa
sermonária bélica erguida pela Igreja no decorrer da Idade Média comprova e evidencia
claramente a articulação e o engendro dos critérios em sua retórica persuasiva.
Portanto, o que
se intenciona aqui não é expor definições conclusivas ou concisas dos conceitos
de auctoritas, res, causa ou animus, e sim mostrar
seus limites, suas falhas, suas qualidades do maleável, para que desta
imprecisão se possa pensar os discursos de guerra que visavam, acima de
tudo, conceder aos guerreiros paz de espírito como intuito de continuarem a
praticar a violência direcionada.
Também é válido
ressaltar que as diretrizes para uma guerra justa não se limitavam a
esses critérios. Existiam inúmeros outros pré-requisitos, como por exemplo, o
critério personae, que restringia as pessoas que poderiam entrar no
conflito armado, excluindo principalmente mulheres, crianças e clérigos da
participação ativa no campo de batalha. O destaque atribuído à somente esses
quatro conceitos (auctoritas, res, causa, animus) é
que estes foram os mais comuns e os que com mais freqüência apareceram nos
sermões analisados. Além disso, o entendimento dessas expressões e suas
compreensões serão fundamentais para o diálogo que mais adiante se pretende
fazer com as fontes discursivas. Pode-se dizer que esses quatro conceitos
formam o pilar de sustentação para a coleção de sermões de guerra que
a Igreja desenvolveu ao longo de sua participação na esfera militar ao
longo da Idade Média.
Como foi no caso
relatado pela Crónicas (D. Duarte) de Rui de Pina, onde o décimo
primeiro rei portugês, o Rei D. Duarte (1433-38) busca determinar se é justo ou
não declarar guerra à Tânger no norte da África. A campanha militar condizia
com as inspirações e aspirações expansionistas que Portugal há algum tempo
tendia. Pressionado por seus quatro irmãos à aderir a causa, D. Duarte, ainda no
início do seu breve reinado, buscou saber seus direitos civis e canônicos junto
a suma autoridade papal, afinal estava ciente dos ganhos que uma bem sucedida
guerra poderia oferecer aos cofres da coroa e, também, da importância para um
novo rei provar seu valor militar.
Como resposta às
suas indagações, D. Duarte recebe uma carta de parecer positivo do pontífice,
detalhando os argumentos que o levaram a chegar à esta conclusão. O teor da
carta, cujo acesso o cronista possívelmente teria tido nas chancelarias reais é
então, supostamente, reproduzida. Nela, observam-se claramente os quatro
critérios primordiais de classificação bélica (a res, a auctoritas,
a animus e a causa) que servem como base de análise.
Por exemplo, em
virtude da res que delimita o objetivo do conflito como tendo sempre de
ser voltado para a recuperação de bens, propriedade e defesa da patria,
vê-se prontamente descrito na carta papal as injúrias que, no caso de um ataque
à Tanger, estariam sendo cobradas. Afinal estavam os “Infiees que ocupam as
terras que foram de Christaaõs, em abatimento da Religiom Christaã,
tornando-o as Sanctas Igrejas em malditas Mizquitas, e fazendo outras abominaçoões”. Tratava-se de um claro desrespeito à
ordem natural estabelecida e prevista pela Divina Providência. No
entendimento do sumo pontífice, as terras em Tânger seriam uma herança legítima
dos cristãos por parte do Império Bizantino, que nos séculos VI e VII dominaram
a região. O direito jurídico às heranças bizantinas foram mais do que
suficientes para que legitimamente se movesse guerra contra os árabes. As
conclusões papais eram inquestionáveis e não deixavam dúvidas de que “com
auctoridade do Papa, poder-se e dever-se fazer guerra”. Contudo, a carta
faz ainda mais uma ressalva, ainda que “as terras que nunqua foram de
Chrstaaõs”, ainda assim “licitamente lhe podiam fazer guerra”
bastava provar que “que ou elles faziam dano e nojo aos Christaaõs”.
Pois, se, “ha terra e abondança della he do Senhor” e a “a Ley da
natureza manda adorar huũ soo Deos” então aqueles que “fossem ydolatras
ou pecassem contra natura, ca entom poderiam ser punidos”. Este fato podia
ser comprovado pelos “Livros dos Sanctos Canones” ou pela auctoritas
bíblica que revela que Deus “que assy punio Sodoma e as outras Cidades posto
que fossem gentios”.
À estes
critérios de auctoritas, que define como necessário que seja um
príncipe, ou neste caso, um equivalente a príncipe que declare a guerra, têm-se
ainda adicionado à auctoritas e sabedoria dos “Doutores Theologuos,
por mais segura cautella”. No texto, segundo os teólogos da corte,
era imprescindível que às causes bellum sejam incluídos os motivos de
ordem espirituais. No entender dos desses doutores, antes de recorrer ao uso da
força “os imygos devyam pelos Christaãos primeiro ser amoestados e,
se podesse seer, convertidos per preegaçooens”. Ou seja, os
portugueses deviam ser movidos a guerrear pela correta disposição do animus,
e que antes de se chegar à guerra, os guerreiros deveriam, através de “exempros
de boa vida”, potencializar nos maometanos o desejo da conversão ao
Cristianismo, tarefa que priorizava a pregação como veículo transmissor da
mensagem divina. Porém “quando em suas contumacias as palavras Sanctas os
nom commovessem, com armas os poderiam forçar, ou guerrear” ao
ponto de morte ou conversão.
Houve, ainda,
outra advertência à respeito do critério causa, a de que “em qualquer
caso que ho Principe possa fazer guerra aos Infiees, devee ser com
piedade e discripçom, e que nom desponha o povoo Christaaõ
a manifesto perigo, sem evidente necessidade”. Isto porque somente a
extrema necessidade poderia, de acordo com o código jurídico regente, justifcar
uma empreitada bélica. Se o rei fosse movido à guerrear “per sua sobeja
audacia ou maa providencia”, e desta impetuosidade “se seguissem mortes
e dãnos”, neste caso o rei “gravemente pecaria”. Mas, nos casos onde
“ho Principe fezesse o que devia”, ou seja, agisse dentro da lei,
ainda que “perecesse muyta gente”, ainda assim o rei não estaria
pecando pois “em guerra justa, nom pecaria”.
D. Duarte
apresentou uma outra dúvida aos teólogos, a questão era “se ho Princepe
podia lançar pedido a seu povoo, pera fazer guerra justa a Infiees”,
ao que os teólogos explanaram a diferença jurídica entre guerra
defensiva e ofensiva e suas repercursões práticas. De acordo, “ho Principe,
segundo derecto, pode em duas maneyras fazer guerra justa”.
O primeiro tipo
de guerra seria a guerra justa defensiva ou o que o teólogos chamam de “justa
necessária”, consistindo das incursões bélicas “que se faz para defensom
da terra”, a outra seria a guerra justa ofensiva, reconhecida pelos
acadêmicos como “justa voluntária”, travada geralmente “para conquistar
terra de Infiees”. Na eventualidade de uma guerra justa necessaria “podia
ho Principe fazer aa custa de seu povoo”. Porém no caso de uma “guerra
voluntaria naõ podia, nem devia fazer, salvo aa sua propia despesa”.
A preocupação
acerca da legitimação bélica é condizente com o cognome de O Rei Filósofo que
D. Duarte mereceu. Neste texto, observa-se um nítido receio, por parte do Papa
e seus conselheiros teólogos em providenciar fundamento teórico aos seus
pareceres. O apreço na construção deste argumento bélico evidencia uma
sociedade altamente preocupada em seguir os ditames da justiça.
Esse gosto pela
execução da justiça foi herdado pela sociedade colonial que em suas leis,
também viria a categorizar e diferênciar as guerras justas das demais. Padre
António Vieira igualmente faz a distinção da guerra justa, isto é, da
guerra que tem como finalidade aplicar a justiça e restaurar a paz.
Quando os holandeses
preparavam um assalto à Salvador em 1637, Padre António Vieira recitou o
“Sermão ao Enterro dos Ossos dos Enforcados”435. A ocasião permitiu ao orador discursar sobre a justiça e a paz no âmbito da guerra. “Abraçaram-se a justiça e a paz e
foi a justiça a primeira que concorreu para este abraço: Justitia et pax”,
ponderou Vieira. Para o jovem António Vieira, que ainda não completara trinta
anos de idade, “a justiça não é a que depende da paz (como alguns tomam
por escusa) senão a paz da justiça”. Por isso ele incita `à resistência,
“Faça a justiça aquela justa guerra, de que estes ossos são os
despojos, e deles e dela nascerá a suspirada paz, cuja falta padecemos há
tantos anos”. Como “a paz são frutos da justiça”, ou seja,
como a justiça antecede a paz, daí que a aplicação da justiça, quer por
meio de guerras, resultam em paz. “Vedes aqueles ossos desenterrados?”
pergunta Vieira, “Pois aquela é a semente de que nasce a paz”, afinal
são “debaixo dos grandes e exemplares castigos, cresce e reverdece a paz”.
Exemplificando,
o pregador fala aos presentes de Absalão que tentou usurpar o reino de seu pai,
o rei David. “Vivo fez-lhe cruel guerra, enforcado deu-lhe a paz de
todo o reino. Se houvera justiça que enforcara Absalões, eu vos prometo que
dentro e fora não houvera tantas guerras”. Tanto era este o caso, de que
existe dobrada união entre essas duas virtudes que são a justiça e a paz
que “o maior exemplo de justiça, que viu o mundo, foi o do dilúvio: e
que se seguiu depois dele? A paz, que trouxe a pomba a Noé no ramo da oliveira”.
Aliás, Vieira se corrige, “Para mim”, diz ele, “o primeiro
sinal dela, não foi o da pomba, senão o do corvo. Saído o corvo da arca
pôs-se a comer e cevar nos corpos afogados do dilúvio; e quando se dá carne de
justiçados aos corvos, segura está a paz do mundo”.
Para o jesuíta, é preciso sair ao campo, às colinas e
aplicar a justiça. É necessário dar represálias aos injustos, castigar os que
são merecedores do castigo, fazer justa guerra aos injusto, é preciso semear
justiça. “Oh como veríamos esses montes coroados de paz, se se vissem estes
outeiros semeados de justiça! Mas nós esquecidos desta regra (que também é
militar) todos nos ocupamos em fortificar e presidiar outeiros e montes”.
Exposta essa
teorização da guerra, ou melhor, da paz e da justiça, com claras fundamentações
agostinianas, cabe aqui, também, uma segunda teorização,
que visa a guerra justa através das definições de guerras injustas proposta
pelo Padre António Vieira. Essas, se encontram já no contexto do Novo
Mundo, e tem base no argumento tomista do Padre Manuel da Nóbrega. São
aplicações teóricas sobre as guerras praticadas contra os índigenas das
Américas. Como uma guerra justa deve, necessariamente ser “movida
com a finalidade de reparação de uma ofensa anteriormente sofrida”, a
definição não era aplicável no caso das guerras contra os ameríndios. "A
fonte de autoridade legal do princípio defendido por Nóbrega era a ius
gentium (leis das nações), da forma como foi originalmente compilada pelos
juristas do Digesto romano”. De acordo com esse regimento, segundo Eisenberg,
“à parte vencedora em uma guerra justa cabia o direito de matar os
inimigos vencidos. Ao vencedor cabia também a escolha de uma punição menos
drásticas que a morte, na forma da escavização dos derrotados. A vitória em uma
guerra justa conferia ao vencedor dominium sobre a vida dos vencidos”.
Com efeito,
argumentou Vieira, em defesa dos índios, tendo em conta os mesmos princípios,
os povos indígenas não eram “escravos não, porque não são tomados em
guerra justa”, e muito menos vassalos “porque assim como espanhol
ou o genovês, cativo em Argel, é contudo vassalo do seu rei e da sua
república, assim o não deixa de ser o índio, posto que forçado e cativo, como
membro que é do corpo e da cabeça política da sua nação, importando igualmente
para a soberania da liberdade tanto a coroa de penas como a de ouro, e tanto o
arco como o ceptro”. Ficando, portanto, conclusivamente argumentado pelo
orador que, para se fazer justa guerra aos índios há a necessidade de
uma agressão prévia.
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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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