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Guerra como ato de caridade e
amor
Segundo os
teólogos medievais, o espírito a preencher os corações dos guerreiros e os
levarem ao combate deveria se inspirar no mesmo amor que Deus, em sua infinita
bondade, demonstrava a humanidade. O mote então se transforma em “ame ao seu
inimigo” com suas mortes e destruições sendo vistas como atos de caridade e
amor. “a Igreja não perseguia, mas ao contrário, expressava amor quando ela
castigava o pecado.” Basicamente, a guerra se torna um ato de caridade
ao inimigo. Observa-se que, em uma estranha reviravolta, a mesma caridade que
inspirou São Francisco, agora inspirava o soldado a matar. Esta tipologia
bélica da guerra como um ato de amor e caridade reforçava a “preocupação
medieval de viver uma vita apostólica e expressar os ideais Cristãos
ativamente através de trabalhos de caridade".
Isto é, amor
deveria guiar os corações dos guerreiros cristãos. Quando estes usavam força
contra o inimigo era para os castigarem, para puni-los, não só com a finalidade
de lhes causarem dano, mas também com o intuito de lhes mostrarem o caminho do
bem, o caminho correto. Ao castigá-los usando contra eles a violência, os
guerreiros dispunham-se a desviar os inimigos do caminho do mal, salvando-os de
uma vida de pecados. Às vezes, para cumprir esse ato de caridade, fazia-se
necessário matá-los, pois na morte o inimigo não mais pecará, não mais causará
injúrias a Deus.
Quando a morte
do inimigo não procedia, a caridade também poderia tomar a forma da conversão.
Usando as cruzadas como exemplo, “enquanto Deus e os cruzados poderiam
se beneficiar do trabalho dos Cristãos, também seus inimigos, pois uma vez que
o objetivo das cruzadas tinha sido legitimamente retornado às mãos dos
Cristãos, a conversão estava aberta como um caminho para eles” . Nesta lógica,
a guerra se torna um encargo missionário impulsionado pelo
amor e a caridade. Agindo com benevolência, os guerreiros poderiam oferecer a
seus inimigos de fé a oportunidade de se arrependerem e de buscarem a “Verdade”
através da conversão. Em um exemplo claro deste conceito de amor e caridade
medieval para com o inimigo, temos a Crónica dos Sete Primeiros Reis,
que durante os relatos da monarquía de D. Afonso II traz um excerto sobre o
tema.
O texto relata os eventos logo após a redenção das
tropas mouras em 1217. Tratava-se do combate decisivo sobre o domínio do
Castelo de Alcácer do Sal, onde os portugueses saíriam definitivamente
vitoriosos. Neste conflito, os portugueses clamavam o direito sobre o Castelo,
que desde o reinado de D. Sancho I (1185-1211) tinha sido perdido às forças
Almoádas. Segundo o cronista, os portugueses tinham lutado fervorosamente para
reconquistar o Castelo e, após um cerco exaustivo de dois meses, os “infiéis”
finalmente se renderam.
Logo após a batalha, existe um detalhe curioso no qual
o autor da crônica informa que “tres dias da tomada” do lugar, o “acayde”
que tinha sido feito prisioneiro foi “bautisado e feyto Christão”. Esse
pormenor, registrado em algumas poucas linhas de texto, é de extrema
importância, pois indica diretamente a conversão pós-guerra, um ato claro de
amor e caridade para com o inimigo. No entanto, alguns pontos devem ser
ressaltados. Primeiro, não se pode afirmar ao certo se de fato existiu uma
conversão do alcaide muçulmano. Porém, para fins desta tese a veracidade deste
registro como fato histórico importa pouco. O mero fato do cronista ter
incluído em sua crônica um relato sobre uma conversão pós-guerra é bastante
simbólico. O conteúdo da narrativa se reduz ao que o cronista, conforme dos
ditames da sociedade em que vivía, quis legar como história oficial do reino.
Neste sentido, a escolha de se registrar uma ato de caridade e amor tão cristão
quanto a oferta de conversão é revelador, pois demonstra que um dos beneficios
que poderia advir de algo tão brutal como uma guerra seria a conversão.
Segundo, presumindo que a conversão de fato tenha acontecido, não se pode
desconsiderar a possibilidade de a conversão ser mais consequência da extrema
pressão pela qual o alcaide, enquanto prisioneiro de guerra, deveria estar passando,
sendo esta oferecida como uma possível alternativa à sua morte.
Ainda lembrando desses dois ressalves, essa passagem é
bastante indicativa e rara. Dentre toda a produção da crônística medieval
analisada, esta narrativa foi a única a apresentar um relato de uma conversão pós-guerra de forma prática. Muitas das outras
passagens que abordam o tema da conversão são relacionadas à justificativa e
legitimação bélica pré-batalha. Trata-se, portanto, de um caso raro e único
que, na sua singularidade, demonstra o quanto a conversão servia como pretexto
e fator legitimador de guerras, mas que excepcionalmente era apresentado como
fato concretizado. Por isso, este pequeno registro, que poderia passar
despercebido, torna-se tão importante. O conceito da violência como um ato de
caridade e amor transgrediu a medievalidade, e se tornaria um dos mais
importantes e impactantes conceitos na história da modernidade. A esperança de
que uma guerra, conduzida com o espírito da caridade e do amor, poderia levar
Deus aos não crentes multiplicando o rebanho cristão.
Explica Vieira sobre os princípios que regem o amor bélico que,
“Não chamar
inimigos aos inimigos, está no império da vontade, e na obediência da
língua; mas não ter os inimigos por inimigos parece que está fora da jurisdição
do entendimento”. Este tipo de amor exprime o que há de mais sublime
nas doutrinas cristã, “Serem inimigos, e conhecê-los por inimigos, e
não os ter por inimigos? Sim: a tanto chega a fineza da filosofia cristã”,
afirmou. Isto porque “Na virtude da caridade cristã, tomada em toda a
largueza de sua perfeição”, existem “três graus” de amor ao
próximo, e são eles, “amar os amigos, como a amigos; amar os nimigos,
como inimigos; amar os inimigos, como a amigos”, este último exprime “o
grau altíssimo de caridade”, facto já compreendido e
confirmado pela auctoritas dos maiores teólogos da cristandade, “Santo
Agostinho, S. João Crisóstomo, S. Gregório Papa, e comummente todos os
Padres, entre os quais S. Bernardo”, todos estão em concórdia que “o
amor dos inimigos é o mais alto, o mais sublime, o mais heróico, o mais
divino acto da caridade”.
Em um outro
sermão, Vieira se justifica, “posto que a matéria do amor dos
inimigos seja tão pregada”. Para o pregador existia ainda uma outra
consideração a ser avaliada sobre o amor ao inimigo. Se “as pessoas
soberanas são superiores a toda a lei”, se ainda assim “são obrigados
também os reis a amar seus inimigos?”. Sim, é a conclusão que
chega Vieira, pois “por mais altas e soberanas que sejam (…) todas igualmente, como os outros cristãos, sem nenhuma excepção nem
privilégio, estão sujeitas ao preceito de Cristo, e obrigadas a amar seus
inimigos, e a lhes fazer bem”.
Contudo, Vieira
é cuidadoso em fazer a distinção entre os inimigos próprios e os inimigos de
Deus e, por exemplo bíblico, descreve como deverá ser a postura do rei perante
cada um. “Porque David era soldado de Deus, e capitão-general de seus
exércitos; e aqueles a quem chamvam seus inimigos, eram os inimigos de Deus”,
esclarece Padre António, “observando tal diferença e distinção entre
uns e outros, que aos inimigos seus amava e fazia bem, e só aos de Deus
perseguia e fazia cruel guerra; tão insigne vingador das injúrias divinas, como
perdoador das próprias”.
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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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