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Formação Acadêmica no Colégio da Bahia e vida como missionário Jesuíta
Em Portugal, especialmente, a instauração da Companhia
de Jesus foi proveitosa, tanto para a própria ordem, quanto para os propósitos
expansionistas de D. João III, que encontrou nos jesuítas homens dispostos ao
trabalho de conversão. Tanto que em 1549, menos de uma década após os primeiros
jesuítas terem chegados à capital lisboeta, a Companhia de Jesus fundava sua
primeira “Província administrativa” em terras lusitanas, aliás, a
“primeiríssima em todo o mundo”.
Essas casas, com certeza, ajudaram na sedimentação e
organização da ordem no reino, promovendo a partir dali sua diáspora para
diversas regiões do império português. De fato, no mesmo ano de sua fundação,
no ano de 1549, já os primeiros jesuítas chegam ao Brasil. Subsidiados pelo
rei, este grupo, liderado pelo Padre Manuel da Nóbrega, fundaria quatro anos
mais tarde, em 1553, a primeira província jesuítica da América portuguesa.
Porém, antes mesmo da fundação oficial desta instituição na Nova Lusitânia, os
jesuítas já tinham dado início ao seu ímpeto missionário, fundando o Colégio da
Bahia, logo após sua chegada às Terras de Santa Cruz.
Os colégios inacianos
da América, de entre os quais o Colégio da Bahia foi o primeiro, foram
fundamentais para atingir os objetivos doutrinários da Companhia de Jesus,
principalmente o projeto de catolização universal. Essas instituições de ensino
atuavam não só no campo pedagógico, mas também eram essenciais como fonte de
renda para os membros da ordem. Nesta sua vertente econômica, que será
importantíssima para validar argumentações para ambos os lados da disputa
colono-jesuítica, eram os colégios que sustentavam e mantinham materialmente a
ordem inaciana. Este quadro se dava na medida em que “as condições da terra com sua riqueza natural”
ajudavam a favorecer a consolidação destas instituições. Isto porque, “Nesta
terra”, como Pe. Manoel da Nóbrega escreveu ao Pe. Simão Rodrigues, “custa
muito pouco fazer-se um colégio e sustentar-se porque há terra é muito
farta e os meninos da terra sustentam-se com muito pouco, e os moradores muito
afeiçoados a isso, e as terras não custam dinheiro”.
Outra condição que favoreceu a multiplicação dos
colégios jesuíticos pela costa brasileira, foram as várias concessões não só
feitas por D. João III, mas também por diversos monarcas que o sucederam. Esses
privilégios eram fundamentados e justificados com base nas atuações catequizadoras
dos inacianos. Já que,
O serviço prestimoso quanto à conversão do gentio e os
relatórios e cartas enviadas a Portugal dando conta dos ataques dos inimigos
hereges que ameaçavam as conquistas ultramarinas portuguesas, bem como o temor
da propagação do ideário protestante, reforçava a necessidade da presença
religiosa dos jesuítas e o seu favorecimento, visando confirmar a presença
portuguesa no Novo Mundo.
Neste sentido, o Colégio da Bahia, o qual António
Vieira veio a freqüentar, era sem dúvida “uma das fundações mais prósperas”,
ainda mais depois que passou a contar com as doações de D. Sebastião.
No entanto, foram os propósitos religiosos por detrás
dos colégios jesuíticos que deram destaque à Companhia de Jesus nos primeiros
anos de sua atuação no Brasil. Ao se fazer uma análise de seus currículos
escolares, tornam-se nítidas as suas metodologias doutrinárias. Aliás, como uma ordem organizada hierarquicamente, a
Companhia de Jesus apresentou um plano pedagógico uno altamente
desenvolvido e de aplicação consistente nos diversos colégios espalhados pelo
globo durante as primeiras décadas da modernidade. Essa homogeneidade,
incorporada na Ratio Studiorum, facilita a compreensão do método
pedagógico, pois estar diante da Ratio Studiorum de 1599, é estar diante
de um currículo bastante consistente com aquele que, por exemplo, o jovem
António Vieira teria sido submetido em 1615, quando ingressou no Colégio da
Bahia. Se Vieira foi mestre e pregador da língua portuguesa, em muito isso se
deve à educação e ao eruditismo que adquiriu no Colégio da Bahia. Os conteúdos
formativos do Colégio, a sua organização, o ensino, a metodologia colocaram-no
no mais alto nível pedagógico e cultural, com o perfil de exigência de uma
Universidade.
O ofício que mais o celebrizou foi, sem dúvida, o de
pregador. Ele que foi contestado em grande parte das atuações noutros setores,
teve a opinião de todos rendida à excelência e genialidade dos seus dotes
oratórios. O Colégio da Bahia funcionou como um centro de influência de poder e
funcionou como a expressão máxima do projeto educativo da Companhia de Jesus,
uma instituição de ensino pluridimensional. O ensino no Colégio teve ainda em
conta o projeto educativo e pedagógico dos Jesuítas.
A pedagogia da Companhia de Jesus conheceu uma expansão a nível mundial, não só
graças ao perfil missionário da Ordem, como graças a um ideário comum nos
colégios que implementou, através de uma obra que orientará toda a metodologia
de ensino dos Jesuítas: a Ratio Studiorum.
Portanto, este documento, que se trata do regimento escolar
e curriculum de estudos da Companhia de Jesus, oferece pistas importantes
sobre as heranças culturais/acadêmicas que Vieira teria recebido dentro
do colégio. Assim, quando o regimento escolar jesuítico determina que os
estudantes devem estudar sobre tudo as teses tomistas, existe grande
possibilidade que Vieira teria tido um contato muito aprofundado das teorias
medievais de São Tomás, principalmente, já que a memorização de textos eram
requisitos expressos no curriculum de 1599. Para além disso, o conteúdo
da Ratio Studiorum transparece um método de ensino
bastante compatível com a metodologia desenvolvida durante a Escolástica
Medieval, corroborando com a tese de uma longa Idade Média.
Basta o trecho
abaixo para demostrar seu conhecimento interdisciplinar do trivium e quadrivium.
No “Sermão Quarto” da série do Rosário, Vieira se propõe a provar que Deus é o
Autor das orações do “Pai Nosso” e da “Ave Maria”, ao fazer isto, ele enfatiza
a importância do conceito de auctoritas, síntese altamente valorizada
pela sociedade medieval.
Não basta que as
cousas que se dizem sejam grandes, se quem as diz não é grande. Por isso os
ditos que alegamos se chamam autoridades, porque o autor é o que lhes dá o
crédito, e lhes concilia o respeito. As proposições filosóficas, para serem
axiomas, hão-de-ser de Aristóteles: as médicas, para serem aforismos, hão-de
ser de Hipócrates: as geométricas, para serem teoremas, hão-de ser de Euclides.
Tanto depende o que se diz da autoridade de quem o diz. Dizer-se que a pintura
é de Apeles, ou a estátua de Fídias, basta para que a estátua seja imortal, e a
pintura não tenha preço. Mas esse valor e essa imoratalidade a quem se deve?
Mais ao nome que ao pincel de Apeles; mais à fama, que à lima de Fídias. E o
mesmo que sucede ao pincel, e à lima, é o que experimental igualmente a voz e a
pena. Se o que diz é Demóstenes, tudo é eloqüência: se o que escreve é Tácito,
tudo é política: se o que discorre é Seneca, tudo é sentença.
Como era de se
esperar, as altas exigências da Ratio Studiorum pesavam sobre os alunos,
ainda mais ao se considerar as obrigações mnêmicas ditada pelo currículo
escolar. Para o jovem Vieira, este requisito o sobregarregava de tal forma que
“nos primeiros tempos, apesar da natural vivacidade que desde os mais
tenros anos manifestara”, Vieira “não pudera fazer grandes
progressos, pelo não ajudar a memória, rude e pesada, e
como toldada de espessa nuvem”. Sucedeu, pois, segundo o viés
místico que acompanhou algumas das primeiras biografias sobre pregador, que as
dificuldades de memorização das lições teria fornecido o combustível para a
primeira experiência espiritual de Vieira:
Era o estudante
grande devoto da virgem; e um dia que, ajoelhado ante a sua imagem, e cheio de
pesar e abatimento que lhe causava aquela natural incapacidade, a implorava em
fervorosa oração para que o ajudasse a vencer semelhante obstáculo, de repente
sentiu como um estalo e dor aguda na cabeça, que lhe pareceu que ali acabaria a
vida. Era a virgem que sem dúvida escutara e deferia à súplica ardente e
generosa; e era o véu espesso que trazia em tão indigna escuridade aquele
juvenil engenho, que num momento se rasgava e desfazia para sempre. Guiou dali
Vieira para a escola com grande alvoroço, e sentiu-se tão outro do que fora até
então, que logo animosamente pediu para argumentar com os mais sabedores e
adiantados. E a todos venceu e desbancou, com entranhável assombro do mestre,
que bem conheceu andava naquilo grande novidade
Sem dúvida que este relato místico, a parte de sua veridicidade,
ou falta de, oferece pistas importante quanto a legitimação do intelecto e
desenvoltura que catapultaria Vieira para os mais importantes púlpitos da
Europa. Seguindo as tradições medievais, as legitimações e justificações, da
baixa e alta modernidade, com freqüência remetiam à intervenções divina. É este
o sentido que João Francisco Lisboa o atribui quando esclarece “[a]ssim o
referem pelo menos as crônicas da ordem; e se a anedota não é
verdadeira, é pelo menos calculada para dar uma cor romanesca e maravilhosa aos
primeiros lampejos deste engenho novel, que mais tarde havia de deslumbrar o
mundo pelo seu extraordinário fulgor”.
Na verdade, este tipo de legitimação, ou relato, já
fora visto antes no seio da própria Companhia de Jesus, afinal, consta na
autobiografia de Santo Inácio de Loyola, o seguinte relato:
Por isso regressando a Barcelona, começou a estudar
com muita diligência. Mas impedia-o muito uma coisa, e era quando começava a
decorar, como é necessário nos princípios da gramática, vinham-lhe novas
inteligências de coisas espirituais e novos gostos, e isto de tal maneira que
não podia decorar, nem por muito que se esforçasse as podia afastar.E pensando
muitas vezes sobre isto, dizia consigo: – Nem quando estou na oração e na missa,
me vêm estas inteligências tão vivas – . E assim a pouco e pouco veio a
conhecer que aquilo era tentação. E depois de feita oração, foi a Santa Maria
del Mar, perto da casa do mestre, tendo-lhe pedido que o quisesse ouvir um
pouco naquela igreja. E assim, sentados, declarou-lhe fielmente tudo o que lhe
passava pela alma, e quão pouco proveito tinha tido até então, por aquela
causa, mas que fazia ao mestre esta promessa: – Eu vos prometo nunca faltar às
vossas aulas estes dois anos, enquanto em Barcelona encontrar pão e água com
que possa manter-me –. Fez esta promessa com tal eficácia, que nunca mais teve
aquelas tentações.
As semelhanças
entre os relatos são evidentes, e atestam que este tipo de narração não se
restringiu ao período medieval. Com efeito, as autenticações feitas por
supostos intermédios de intervenção divina continuaram presentes no
pós-medievo, e não só nos relatos biográficos, como também em outros campos de
legitimação
A despeito de
sua origem ser providencialista ou não, a verdade é que Vieira, inegavelmente,
dispôs de um intelecto privilegiado. Assim, pode ele aos 18 anos iniciar sua
carreira na magistratura, lecionando a disciplina de Retórica no Colégio de
Olinda. Ora, para ter se tornado professor com tão pouca idade, Vieira teria
mostrado, sem dúvidas, capacidades acima da média, já que, como informa a Ratio
Studiorum na sessão I Regras para o Provincial, subitem 4, Como Nomear
Professores, “[o] provincial deverá, prever com bastante antecedência,
que professores poderá ter para cada faculdade. Observe aqueles que
parecerem mais aptos para cada matéria, mais doutos, mais diligentes e
assíduos, e mais capazes de garantir o progresso dos estudantes, tanto nas
lições como nas restantes actividades literárias”.
A partir de então a ascensão de Vieira foi meteórica,
já que, no final de 1634, António Vieira é ordenado presbítero, realizando sua
primeira missa no mesmo ano. Aos 30 anos, em 1638, Vieira mostra ao mundo sua
destreza retórica, ao proferir seu célebre “Sermão Pelo Bom Sucesso das Armas
de Portugal Contra as da Holanda”, o seu primeiro sermão bélico. Com efeito, no
tocante aos sermões de guerra e dos seus conceitos de violência, é
impossível não correlacionar a relação entre Inácio de Loyola, fundador, e
Vieira discípulo. Como filho religioso de Santo Inácio, Vieira teria herdado e
tomado para si este dever de combatente, principalmente o combate contra os,
por ele considerado, hereges.
“Herdeiros” foi o termo usado pelo próprio
pregador ao exaltar Santo Inácio e o dever jesuítico de missionação. “E que
fogo de línguas é este?”, pergunta Vieira retoricamente em um de
seus sermões, “é o zelo e fervor ardente que têm e sempre tiveram os
herdeiros do espírito apostólico, de saber, estudar, e aprender as línguas
estranhas, para com elas pregar o Evangelho, propagar a fé, e amplificar a
Igreja”.
Santo Inácio, segundo Vieira, foi benemérito desta herança,
por isso enfatiza, “[e] senão vejamos quanto se acendeu este fogo das
línguas naquele grande homem ou gigante de Fo*go, por isso chamado
Inácio”. E mais adiante
no sermão, mostrando conhecimento dos regimentos da Companhia,
“Nossa vocação (diz S.to Inácio no princípio de seu Instituto)
é para discorrer e fazer vida em qualquer parte do mundo,
onde se espera maior serviço de Deus, e ajuda das almas. E para ajudar essas
almas, que meios ou que instrumento nos deu e nos ensinou a providência do
mesmo Santo e sapientíssimo patriarca? A sua Regra o diz. Para maior ajuda dos
naturais da terra em que residem, todos aprendam a língua dela. Reparemos bem
naquelas duas cláusulas universais: todos e em qualquer parte, ou partes do
mundo: e que terra ou terras são essas onde residem? O Japão, a China, o
Malavar, o Morgor, o México, o Peru, o Brasil, o Maranhão, e se se descobrir a
terra icógnita, também essa. E quem são os que hão-de aprender as línguas?
Todos, diz, sem exepcção de pessoa”.
Tratava-se para
o orador de um desígnio divino, a Providência Divina teria elegido a Companhia
de Jesus por intermédio de Inácio, não só para propagar a fé católica “em
qualquer parte ou partes do mundo”, como também contra Lutero e Calvino. O
Protestantismo que se espalhava rapidamente pela Europa e suas conquistas
posavam empecilhos de ordem prática às aspirações de conversão universal. Daí,
a queixa do Padre António Vieira em carta:
Vingavam os
tobajaras a morte do seu pastor. Entram os holandeses em Pernambuco: reduzem a
seu partido os índios, que com esta comunicação se corrompem mais nos seus
costumes: “Com a comunicação e exemplo e doutrina destes hereges, não
pode crer a miséria a que chegaram os pobres tobajaras, porque dantes,ainda que
não havia neles a verdadeira fé, tinham contudo o conhecimento e estima dela, a
qual agora não só perderam mas em seu lugar foram bebendo com a heresia um
grande desprezo e aborrecimento das verdades e ritos católicos, e louvando e
abraçando em tudo a largueza da vida dos holandeses, tão semelhante à sua, que
nem o herege se distinguia do gentio, nem o gentio do herege”.
Situações como
essa permitia que Vieira pregasse com veemência e convicção as obrigações de
sua Ordem e o dever que esta tinha em continuar os trabalhos de Santo Inácio e
de São Francisco Xavier. “Com igual propriedade e energia”,
enfatiza o pregador, “sendo um heresiarca clérigo, como Calvino, e outro
heresiarca religioso, como Lutero, levantou Deus um patriarca e uma companhia
que fosse de clérigos e religiosos juntamente”. Designou a Providência esta
Ordem,
“não só para desafrontar com eles o estado clerical
e religioso, mas para que um e outro estado unidos formasse a Igreja
militante um novo subsídio fiel e forte, com que fortificada os
resistisse, e mais gloriosa os debelasse”.
Assim, Vieira fez parte de um grupo, o qual acredita
ter sido erguido por Deus para combater a heresia em diversas frontes. Uma
delas são os combates teológicos nos quais, através de teses e contra-teses, as
chamadas disputationes, tão populares nas universidades medievais. Destas
um exemplo sublimar é um sermão pregado em defesa do Santíssimo Sacramento,
nesse Vieira desafia, “Saírão para argumentar contra a verdade deste
mistério não só os inimigos declarados dela, mas todos os que, por qualquer
via, a podem dificultar” e procede a computar “e serão sete: Um judeu,
um gentio, um herege, um filósofo, um político, um devoto, e o mesmo Demónio”,
afirmando com total segurança “todos estes porão suas dúvidas, e a todos
satisfará a razão”. Acrescentando, “e para que a vitória seja mais
gloriosa, vencendo a cada um com as suas próprias armas, ao judeu responderá a
razão com as Escrituras do Testamento Velho: ao gentio com as suas fábulas: ao
herege com o Evangelho: ao filósofo com a natureza: ao político com a
conveniência: ao devoto com os seus afectos: e ao Demónio com as suas tentações”.
À esta fronte de combate, acrescenta-se outra, já que,
se preciso fosse, alguns inacianos estavam dispostos a intervir pessoalmente em
guerras assim como fez o próprio Vieira em Maio de 1638, quando este “auxilia a
população, no cerco
da Baía, contra
os Holandeses”.
Apesar de não haver registros exactos sobre a forma
com que Vieira interveio na guerra contra os holandeses, como veremos adiante,
existem relatos de outros religiosos que pegaram em armas e não se detiveram na
aplição física da violência contra inimigos. Ainda que assim seja, mesmo
considerando apenas as intervenções bélicas por meio da oratória, são bastante
expressivas as influências que Vieira exerceu sobre as investidas lusas contra
os inimigos da fé.
Porém, é verdade, não foram os hereges, ou os que
estavam fora do domínio do Catolicismo, os únicos a dificultar os objetivos da
Companhia. Nesta altura, Portugal não mais desfrutava das exabundâncias que
marcaram os anos áureos da Expansão portuguesa, mas pelo contrário, durante os
anos que Vieira passou no Colégio da Bahia, o reino português passou por
dificuldades econômicas e políticas incontornáveis. Antes mesmo do nascimento
do Padre António Vieira, Portugal já dera seus primeiros sinais de declínio,
que culminariam na perda da independência portuguesa e conseqüente União
Ibérica.
De modo geral, é possível afirmar que tão logo
encerrou-se a era dos Descobrimentos, Portugal começou a demonstrar sérias
dificuldades administrativas, devida a vastidão de seu território ultramarino.
Houve vários fatores que colaboraram para esta decadência. Por um lado, a
“falta de mão-de-obra qualificada começou a apresentar um perigo real pela
segunda metade do século XVI”, enquanto por outro, a quase não-existência de
uma classe média capaz de dar continuidade ao impulso luso-expansionista
resultava numa clara dependência das classes superiores portuguesas na máquina
estatal do império. Aliado
à esses dois fatores, figurava ainda uma política
interna baseada “no privilégio e na renda, que permitia à nobreza e ao clero
sugar melhor parte dos lucros em proveito próprio”. Igualmente, os dissabores
de um mau gerenciamento, falta de disciplina e uma corrupção ostensiva nos vários
setores administrativos, também contabilizaram-se no declínio lusitano.
Claramente, vê-se que, a prática das graças e mercês,
concessões tão populares na Idade Média, continuou a ser fundamental na virada
para a sociedade moderna. Porém este fator de longa duração, nos domínios portugueses, provou trazer conseqüências drásticas.
Persistindo para muito além do medievo, ou até mesmo além do século XVI, e
mesmo colaborando para a perda da independência lusa, esta prática não deixou
de existir. Pelo contrário, mesmo após a Restauração e já no ano de 1670,
Vieira continua pregando contra as importunações dos pretendentes aos cargos
públicos e os malefícios das concessões desenfreadas das mercês. Em sermão na
Capela Real Padre Vieira afirma “nenhuma cousa ainda mais mal entendida e
pior praticada nas cortes que a distinção entre a justiça e a graça,
donde se segue que apenas há mercê das que se chamam graça, que não seja
injustiça, e contenha muitas injustiças, ou seja, para o pregador, haviam
muitas mercês concedidas injustamente, simplesmente porque existe uma
dificuldade em dizer “não”, em negar algo à alguém. Vieira, é claro, esclarece,
"não nego que os reis podem fazer graças, e que o fazê-las é muito
próprio da beneficiência e magnificência real; mais isso há-de ser depois de
satisfeitas as obrigações de justiça”. Portanto, Padre António
Vieira não estava alheio aos fracassos portugueses, e soube reconhecer no
passado as falhas que conduziram Portugal à perda de sua independência.
Inclusive, para
ele, as digressões portuguesas eram tanto mais deploráveis diante das
grandiosas missões que ele acreditava estar incumbida à Portugal. Os colonos em
específico, e o Estado de um modo geral, estavam sendo um estorvo às
incumbências de propagação da Fé e catolização universal. Por isso Vieira
lamenta em carta o tratamento de ambos para com os índios:
“sucedendo
muitas vezes, que estando os ditos missionários com os Índios dispostos para
confessarem e comungarem, e com os catecúmenos instruídos para receberem o
baptismo, e com os desposados apregoados e aparelhados para se receberem, no
meio de tudo isto chegava um sargento ou cabo de esquadra, com ordem do
capitão-mor aos principais, ameaçando-os com prisões e outros castigos, e
dando-lhes muita pancada, sendo necessário (e sem o ser), para que os Índios
fôssem a uma parte, e as Índias a outra, e assim se executavam com lágrimas e
clamores dos miseráveis, ficando frustrado o trabalho dos
missionários, e o que mais é, o sangue de Cristo, e a graça de seus
sacramentos.
Da violência
deste trato se seguiam dois gravíssimos danos aos temporal do Estado, e ao
espiritual dos Índios, porque uns se saíam das Aldeias, e se iam meter entre os
escravos dos Portugueses, vivendo e casando-se com êles, tendo por menor êste
cativeiro seu, e de tôda sua descendência, que o falso nome de liberdade que
tinham nas Aldeias, e outros, em que havia mais brio e valor, se metiam pelos
matos e se voltavam para as suas terras, com que êles se perdiam entre os Gentios,
e com as novas que lhes levavam, os retiravam da fé, e os confirmavam na vida
que tinham e na resolução de se não quererem sujeitar nunca aos Portuguêses.
Mas é claro, não foram somente as conjunturas
intestinas do império que levaram à perda da soberania lusitana, e não eram
estas que única e exclusivamente ameaçavam seu trabalho de missionação, e
António Vieira estava ciente. Haviam diversos fatores externos que somavam às
dificuldades do Império, antes e depois da Restauração.
De 1545 à 1552, houve “o encerramento da feitoria
régia de Antuérpia”, com isso a “Antuérpia deixou de figurar como entreposto
final e decisivo do comércio exterior português, para ser substituída por Sevilha e Amsterdam”, fato que mudou toda a estrutura
do comércio português. “Vieram depois as crises de 1571-78 e 1595-1600 e a
crise espanhola de 1606-07 com impacte em Portugal. Em Lisboa faliu grande
número de firmas antigas e conceituadas”. Todos esses fatores permitiram que
Portugal se fragilizasse ainda mais perante a crise sucessória de 1580, quando
Portugal, sem alternativas viáveis, rendeu sua soberania à dinastia Filipina.
Contudo, mudanças já estavam em andamento, já que
neste entretanto, em Portugal, tanto a burguesia quanto a nobreza se mostravam
descontentes com os altos impostos, com as perdas de títulos e de bens
materiais que teriam sofrido desde o estabelecimento da União Ibérica. Nos
bastidores, um grupo razoável destes portugueses já montava uma conspiração
contra os castelhanos e seus aliados. No 1º de dezembro de
1640, encontraram a data ideal para tirar a vice-rainha, duquesa de Mântua, do
governo português e alçar o duque de Bragança como D. João IV, restaurando
assim a independência e a soberania de Portugal.
Quando em 1641
Vieira parte rumo à Lisboa para atuar como mentor do jovem D. Fernando de
Mascarenhas, filho do vice-rei da Bahia, já transporta em si a semente daquilo
que ficaria conhecido por Quinto Império Vieiriense, reconhecendo na
Restauração Portuguesa um passo importante deste projeto. Aliás, havia
poucos meses da Restauração quando Vieira adentrou o cenário político em
Lisboa, em abril de 1641. E embora seu primeiro sermão oficial, pregado em solo
lisboeta, só fosse proferido em janeiro do ano seguinte, Padre Vieira não
tardou em ser celebrado pelo público e pela corte por suas habilidades
homiliéticas. Tanto que, fazendo proveito de sua aprovação em Lisboa, Vieira
logo pôs em andamento a divulgação de seu projeto.
Há de se ter
presente, antes de mais, que o Quinto Império vieirense remete às cosmologias e
às visões historiográficas tardo-romana e medievais, vestígios de um debate que
surgiu ainda nos tempos da patrística cristã. Portanto, para inteiramente
compreender as aspirações do Padre Vieira é preciso recuar na historiografia extraindo-lhe
as heranças medievais que contribuíram para a construção do pensamento
vieiriano.
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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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