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Heranças de Inácio de Loyola e dos
Primórdios da Companhia de Jesus
A vocação
religiosa de Inácio de Loyola (1491-1556), fundador da Companhia de Jesus, só
se manifestaria alguns anos após a batalha de Pamplona, na qual ficaria
gravemente ferido. Inácio tinha já seus 30 anos, quando em 1521 Henrique II
determinou conquistar o trono de Navarro valendo-se do apoio militar dos
franceses. Inácio na altura prestava serviço militar ao
exército de Espanha, que desde 1512 tinha incorporado o reino navarrês sob seu
território. Nesta disputa de 1521, Loyola fez parte do pequeno exército de 1000
castelhanos incumbidos de defender Pamplona frente à numerosa tropa de 12000
gasco-navarrenses. A inferioridade numérica do exército espanhol de Carlos V
fez com que muito de seus chefes militares debandassem da batalha. Inácio,
porém, movido por uma honra aos moldes medievais, se propôs guerrear até a
morte, preciso fosse. Recuado em um castelo, Loyola e alguns companheiros
resistiram quanto puderam, até que Inácio foi finalmente alvejado por uma bala
de canhão do exército inimigo, cedendo Pamplona e vitória decisiva a Henrique
II de Navarra.
Debilitado, o futuro fundador da ordem inaciana se viu
obrigado a um repouso forçado, uma vez que “não podia apoiar-se sobre a
perna”. A inércia e o fastio sobre o leito de recuperação contrastavam em
muito com a vida agitada e dinâmica de “homem dado às vaidades do mundo
(…) sobretudo no exercício das armas”. Segundo sua autobiografia, Inácio gostaria de ter passado este
tempo de recuperação e repouso com leitura dos diversos livros de cavalaria que
circulavam a Europa no momento. Nessas obras o protagonista heróico é sempre o
cavaleiro, cujas referências e valores retratam o mundo medieval, especialmente
aqueles que remetem à esfera bélica. Tendo em vista essas características, ao
expor seu contato com este tipo de literatura, Inácio de Loyola não só
evidenciaria a circulação deste genre nos primórdios da modernidade,
como também estaria exibindo certa familiaridade e apreço pela
mentalidade e pelo universo medieval.
Ora enfermo e sem o acesso aos tradicionais livros de
cavalaria, já que na casa na qual se repousava Inácio não “encontrou nenhum
daqueles que ele costumava” ler, foi-lhe dado para leitura “uma Vita Christi
e um livro da vida dos Santos em língua pátria”. Foi assim que leu Santo Inácio durante a convalescença, foram a
Vida de Cristo escrita pelo cartuxo Ludolfo de Saxónia (morto em 1377),
vulgarmente chamado «o Cartuseano», e traduzida por Ambrósio Montesino (cf.
A. CODINA, «Los origenes de los Exercicios espirituales» p. 220ss). O livro de
vidas de santos que leu Santo Inácio foi uma tradução do Flos Sanctorum
ou Vida dos Santos, a que, movido por um tédio absoluto, aos poucos Inácio foi se rendendo a
literatura e leitura religiosa e “lendo-os muitas vezes, algum tanto se ia
afeiçoando ao que ali encontrava escrito”. Com efeito, consta sua autobiografia,
que sua “conversão a Deus” foi um processo lento, de uma luta interna
entre a “diversidade dos espíritos que se agitavam: um do demônio e o
outro de Deus”. A primeira o fazia pensar sobre as coisas mundanas,
nomeadamente os louvores cavaleirescos, enquanto a segunda o inclinava para a
vida religiosa e contemplativa.
Este processo de conversão se consolidou de fato,
segundo relatou Santo Inácio, quando “estando uma noite desperto, viu claramente
uma imagem de Nossa Senhora com o santo Menino Jesus”. Neste
encontro, Loyola “ficou com tal asco de toda a vida passada, e especialmente
de coisas da carne, que lhe parecia terem desaparecido da alma todas as imagens
que antes nela tinha impressas”. Assim, no lugar do costumeiro
ímpeto bélico, cresceu em Santo Inácio cada vez mais o desejo de “ir a
Jerusalém, descalço e comendo só ervas, e em fazer todos os mais rigores
que via que os santos tinham feito”.
Embora tenha rejeitado seu passado, Inácio de Loyola,
mesmo depois de sua canonização, nunca se desassociou por completo de seu
passado militar e continuou a ser visto como um guerreiro ou militante, mas
desta vez em prol da Igreja. De fato, o próprio Vieira o via nesta luz. Tanto
que em seu “Sermão Primeiro: Anjo”, da série sobre São Francisco Xavier, Vieira
pergunta, “E para acudir a um e outro dano, que há mister a Igreja?
Quanto ao da guerra, há mister quem a defenda; e quanto ao da ruína, quem lhe
restaure e acrescente em uma parte o que lhe faltou e se lhe diminuiu na outra”.
“Para isso”, acrescenta o pregador, “ foi necessário no nosso caso que Deus levantasse
não só um, senão dous famosos capitães”. Para António Vieira, esses
capitães seriam “Inácio e Xavier”, e detalha, “um com o nome e
obrigação de defensor, outro com o nome e obrigação de restaurador: Inácio para
defender a Igreja na guerra contra os hereges do Setentrião; e Xavier para lhe restaurar as ruínas
nas gentilidades do Oriente”.
Como se verá adiante, a linguagem militarizada nos discursos
sacros, como bem demonstra o exemplo acima, não é atributo único dos seguidores
de Loyola, desde o medievo que a linguagem militar se encontra em sermões,
mesmo naqueles que não são sermões de guerra. Contudo, sem dúvida que o
passado militar de Inácio de Loyola ajudou a estruturar o sentido de dever que
movia o Padre António Vieira. Igualmente, é importante notar que este fascínio
pela Terra Santa, que expressou e caracterizou os primeiros impulsos religiosos
de Inácio veio, primordialmente, de duas referências, uma medievo-cruzadística
e outra medievo-hagiográfica.
A primeira, como já mencionado, teria sido importada
graças a carreira militar de Santo Inácio e sua apropriação conseqüente
das leituras dos romances de cavalaria, principalmente dos relatos de cruzados.
Já suas referências medievo-hagiográficas teriam sido adquiridas das leituras
que fez enquanto repousava no antigo castelo de seu pai. Este segundo genre,
o hagiográfico, faz-se constituído por um corpo literário dedicado aos relatos
das vidas e lendas dos santos cristãos. As origens deste tipo de texto remontam
aos primórdios do Cristianismo, conhecendo seu extenso ápice de divulgação
durante todo o medievo, embora, é claro, sua circulação também tenha se
estendido para a modernidade. Assim, segundo consta uma nota de rodapé em sua
autobiografia, Inácio, durante seu período de convalescença, teria tido acesso
aos, e lido os seguintes textos:
“Vida de Cristo
escrita pelo cartuxo
Ludolfo de Saxónia (morto em
1377), vulgarmente chamado “o Cartuseano”, e traduzida por
Ambrósio Montesino. O livro de vidas de santos que leu Santo Inácio foi uma tradução
do Flos Sanctorum ou Vida dos Santos, a Legenda Áurea ou a Historia Lombarda. Por
todos estes títulos é conhecida na história literária o
livro escrito no século XIII pelo célebre dominicano Jacobo de Voragine
(Varazze), e que tantas edições alcançou. Morreu em 1298, em Génova, onde foi
arcebispo. Santo Inácio utilizou uma tradução castelhana, com prólogo
de Fr. Gaubero
M. Vagad”.
Novamente,
faz-se importante a fixação de que os santos que inspiraram Inácio de Loyola,
através de leituras hagiográficas, eram santos que viveram durante a Idade
Média, e que como tais, representariam valores teológicos do medievo. Portanto,
embora infuso pelo movimento humanístico que borbulhava na Europa universitária
da Idade Moderna, é inegável o papel preponderante do ideário medieval do homem
que fundaria a Companhia dos Jesuítas. Esta herança medieval torna-se
ainda mais visível nos relatos da vida universitária ditadas por Inácio, uma
vez que durante seus anos de estudo, o autor relata ter tido contato com
grandes filósofos medievais como Santo Alberto Magno e Pedro Lombardo.
Porém, antes
mesmo de ter iniciado seu percurso acadêmico, Inácio de Loyola atingiu seu
grande objetivo religioso e peregrinou à Terra Santa, conhecendo marcos
importante da topografia cristã. Intencionado a permanecer em Jerusalém, Santo
Inácio viu seus objetivos cruzadísticos frustrados, uma vez que lhe foi negado
esta permissão. Um dos principais motivos que dificultou sua permanência em
Jerusalém foi os avanços das forças do Império Otomano liderado pelo Magnífico
Suleimão (1494-1566) sobre as possessões cristãs do Leste europeu. Conquistas
estas que em 1521 culminariam na captura de Belgrado pelos turcos.
O avanço das
potências islâmicas sobre os cristãos gerou um estado calamitoso em Jerusalém e
suas redondezas. De modo que a falta de segurança nesta cidade fez com que o
provincial do local informasse ao recém convertido Inácio “com boas
palavras, como tinha sabido da sua boa intenção de ficar naqueles
lugares santos”. Porém naquela conjuntura e “pela experiência que
tinha de outros”, o superior “pensava que não convinha” a
permanência de Inácio na Terra Santa, até “porque muitos tinham tido aquele
desejo, e uns tinham sido presos e outros tinham morrido” o que era
demasiado inconveniente para a administração da cidade já que “depois
a religião ficava obrigada a resgatar os presos”. Não restou a Santo
Inácio alternativa senão regressar, já que a insistência em permanecer poderia lhe resultar em
excomunhão. Retornado à Europa, e lhe negado sua primeira inclinação religiosa
de residir no Oriente Médio, Inácio de Loyola se conformou e “entendeu que
era vontade de Deus que não estivesse em Jerusalém”.
Fazendo-se valer de uma segunda opção, ou de um ideal
alternativo o peregrino resolve-se por “ajudar as almas”,
e para tal objetivo decide-se por aprofundar os estudos. Tanto
mais que, com seu fervor religioso apoiado em seus conhecimentos acadêmicos e
direcionado por suas experiências espirituais enquanto peregrino e mendicante,
Inácio de Loyola desenvolveu aquilo que seria por muitos considerado seu grande
legado, os Exercícios Espirituais. Embora os primeiros esboços desta
obra tenham sido escritos por volta de 1522, enquanto Inácio esteve em retiro
em Manresa, antes mesmo de ter embarcado em peregrinação para Terra Santa, os Exercícios
Espirituais foram imprescindíveis para ajudar Loyola em seu segundo
objetivo religioso, ou seja, na salvação das almas.
Com efeito, os Exercícios Espirituais refletem
tanto o retiro espiritual pelo qual o recém desarmado cavaleiro passava em
Manresa, quanto servirá, mais tarde, de inspiração pedagógica para os inúmeros
colégios jesuítas. A obra ditava uma metodologia, uma espécie de guia para um frutífero exame de
consciência, como retrata seu primeiro capítulo:
Por este nome, exercícios espirituais, entende-se todo
o modo de examinar a consciência, de meditar, de contemplar, de orar vocal e
mentalmente, e de outras operações espirituais, conforme adiante se dirá.
Porque, assim como passear e dispor a alma, para tirar de si todas as afeições
desordenadas e, depois de tiradas, buscar e achar a vontade divina na
disposição da sua vida para a salvação da alma se chamam exercícios espirituais.
Este manual auxiliaria na ampliação do renome de
Inácio, já que em alguns círculos tornar-se-ia bastante recorrido como prática
espiritual e a partir do qual houve uma adesão significativa à metodologia
inaciana. Ficando particularmente conhecido, os Exercícios Espirituais
e o estilo de vida proposto por Loyola consolidou-se paulatinamente.
Como resultado, Inácio, em conjunto com alguns dos seus mais fiéis seguidores,
fizeram em Montremartre no ano de 1534, um voto no qual prometiam dedicarem
suas vidas ao missionarismo e obediência papal. Como era de se esperar, a
partir deste voto de obediência, Inácio, e seu cada vez mais crescente número
de adeptos, conquistaram um poderoso aliado ao ganhar o favor do Papa Paulo III, pontífice que
reconheceria a Companhia de Jesus por bula papal, oficialmente em 1540.
Ironicamente, junto com o renome, os inacianos
conheceram também a má reputação. A infâmia da Companhia daria origem a um
duradouro mito difamador. Este mito acompanhou a ordem inaciana desde seus
primórdios, já que “a história do antijesuitismo encontra as suas primeiras
germinações no momento embrionário, nos primeiros passos que conduziram à
criação de uma das mais influentes instituições católicas”. Assim, ao
conquistar poderosos aliados, a ordem inaciana conheceu, igualmente,
implacáveis inimigos.
Em Portugal, por exemplo, os jesuítas tiveram seu mais
ilustre aliado na figura central do regime monárquico, o rei D. João III. Isto
porque logo, desde sua implantação no reino, a Companhia de Jesus recebeu o
patronato do Piedoso que, na condição de chefe de um reino altamente católico,
se provou um forte protetor da nova ordem. Todavia, como inimigo, apenas
algumas décadas mais tarde a política portuguesa, liderada pelo Marquês de
Pombal, serviria como palanque para o crescente antijesuítismo que se
espalhava. Mas por ora, em 1540, os ventos ainda estavam favoráveis para uma
calorosa recepção da ordem inaciana em terras lusitanas.
Por volta desta data, Portugal encontrava-se no auge
de suas expansões ultramarinas e bem aparelhada materialmente para colocar em
andamento seu plano político-religioso de expansão territorial do império
aliada à cristianização católica do “Novo Mundo”. No entanto, no âmbito de
realização deste desígnio, seria preciso mais do que um aparelhamento material,
já que se tornava imprescindível um hábil corpo de catequizadores dispostos a
enfrentar as dificuldades inerentes à um missionarismo nas diversas colônias do
Ultramar.
Ciente desta demanda, o embaixador de Portugal em
Roma, D. Pedro Mascarenhas, por indicação de Diogo de Gouveia, o Velho, fez
saber, junto ao rei, sobre a Companhia de Jesus, sugerindo-lhe que seus membros
pudessem ser uma excelente opção para ajudar no processo de conversão dos
infiéis e gentis que habitavam as diversas colônias portuguesas. Acatando esta sugestão, D. João III
requisitou a presença e o trabalho desses missionários no reino ao líder
inaciano. De Roma, Inácio de Loyola atendeu aos pedidos de D. João III,
enviando dois de seus religiosos à Lisboa em 1540. Santo Inácio, porém,
permaneceu em Roma a serviço da Companhia de Jesus, onde morreria aos 65 anos
de idade em 1556, tendo acompanhado a rápida proliferação de sua ordem.
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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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