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Heranças medievais do Quinto Império
Por volta do ano
325 vigorava a cronologia de Eusebius, que datava o nascimento de Cristo ao ano
de 5198. Esta data tinha por equiparação os 6,000 anos atribuído a duração do
mundo, que por sua vez correspondiam aos 6 dias de Criação citado no Velho
Testamento.
No entanto, esta cronologia eusebiana também estava
associada ao Império Romano, que muitos criam, eterno. Isto porque muitos dos
primeiros teólogos cristãos ligavam a Pax Romana (29 a.C – 180) com a
vinda de Cristo, ligação esta que ficaria ainda mais reforçada depois que o
Império assumisse o Cristianismo como religião oficial. Porém, após a queda do
Império Romano, ficou claro que as equiparações do tempo histórico cristão, com
a existência do Império Romano não se sustentaria. Santo Agostinho foi um dos
primeiros teólogos a tentar solucionar este problema teo-cronológico ao colocar
em andamento uma nova concepção histórica.
Em um primeiro passo, Santo Agostinho declarou ser a
Igreja uma entidade universal que não poderia se atrelar a qualquer Estado.
Desta forma, Santo Agostinho redefinia as relações entre o sagrado e o profano,
afirmando a existência de duas forças distintas atuando dentro de um único cosmos.
Essas duas forças foram conceituadas por ele como a Cidade de Deus, e Cidade
dos Homens. A primeira estava relacionada ao mundo espiritual, enquanto a
segunda ao mundo terreno. A distinção entre ambas as forças se tornaram mais
nítidas quando Santo Agostinho afirmou que a Cidade de Deus, na sua
forma mais pura, não poderia existir na Cidade dos Homens, por isso, nem
todos os acontecimentos históricos tinham repercussão direta no status
do mundo espiritual. Desse modo, assim como os outros impérios que o antecederam,
o Império Romano tinha cumprido seu papel histórico.
Enquanto a Cidade
de Deus não foi subjugada, segundo Santo Agostinho, à nenhum esquema
específico, a Cidade dos Homens, no entanto, foi sistematicamente
repartida. No mundo temporal, Santo Agostinho propôs uma visão tripartite,
articulando uma divisão do tempo em três partes: Antes da Lei; Durante
a Lei; e Sob a Graça de Deus. O primeiro seria referente ao
período antes da Queda; o segundo está ligado ao período
pós-Queda no qual o tempo se torna histórico; já o terceiro estaria relacionado
ao período após o Juízo Final. Importa aqui sublinhar ainda que o segundo
período, o período Durante a Lei, que é o período histórico, está
subdividido em 6 partes, referidas por Santo Agostinho como eras ou idades:
1)Adão; 2)Noé; 3)Abraão; 4)David; 5)Captura de Babilônia; 6)Segunda Vinda de
Cristo. Estas também estão equiparadas a etapas da vida: 1) Infância; 2)
Meninice; 3) Adolescente; 4) Jovem Adulto; 5) Adulto Maduro; 6) Velhice.
Muito dos
contemporâneos de Santo Agostinho não acataram muito bem esta proposta de
dissociação e continuavam a acreditar em uma ligação entre o Império Romano e o
Cristianismo. Um confidente de Santo Agostinho, porém, concordou em alguns
aspectos, mas divergiu em opinião no que se diz respeito a divisão esquemática
da história. Seu nome era Orósio (c.385 - c.420) e em seu Historiarum Adversum
Paganos Libri VII propôs que o passado bíblico revelasse o presente.
Inspirado pelo esquema agostiniano, Orósio dividiu o mundo em quatro monarquias,
ou impérios: 1) Babilônia; 2) Macedônia, 3) Africana (Cartago); 4) Romana.
Assim, o império que seguisse o Império Romano deveria ser considerado história
romana, mas em sua versão cristã.
A versão cronológica de Orósio foi mais bem recebida
do que a de Santo Agostinho e, a partir de Orósio, viu-se surgir outras
divisões monárquicas ou imperiais. O impacto da divisão quadripartida permeou a
historiografia medieval, extendendo-se, por exemplo, até ao tempo do Padre
António Vieira. Com semelhanças à metodologia agostiniana e orosiana, o Quinto
Império Vieirense, teve como base o surgimento e queda de impérios, e o avançar
da historiografia em idades/etapas da vida. Evidência destas influências foi um
sermão, por ele pregado, no qual ele ensina ao público sobre as divisões
historiográficas do Tempo. Começando por falar do “Paraísso terreal” ele
explica que “os homens naquela primeira infância do mundo todos vestiam
de peles, todos eram de uma cor, todos falavam a mesma língua, todos guardavam
a mesma lei”. Porém, “estendeu Eva o braço à fruta vedadada, e no
brevíssimo espaço em que o bacado fatal passou pela
garganta do homem, passou também com ele o mundo do estado da inocência ao da
culpa”. Seguiu-se misérias, ambição e soberba. Tanto, que “houve
alguns que entraram em pensamento de se fazer senhores dos outros por
violência, e o conseguiram”. Destes, “o primeiro que se
atreveu a pôr coroa na cabeça, foi Membroth, que também com o nome de Nino, ou
Belo, deu princípio aos quatro impérios, ou monarquias do Mundo”.
Procedento, então, a númerá-los,
“O primeiro foi o dos Assírios e Caldeus; e onde está
o Império Caldaico? O segundo foi o dos Persas; e onde está o Império Persiano?
O terceiro foi o dos Gregos; e onde está o Império Grego? O quarto, e maior de
todos, foi o dos Romanos; e onde está o Império Romano? Se alguma cousa
permanece deste, é só o nome: todos passaram, porque tudo passa”.
Acresenta-se às divisões imperiais, as divisões
históriográficas por “idades”. Por isso o pregador continua, “enquanto
passaram estes quatro impérios, que foi a terceira, quarta, quinta e
sexta idade do mundo, entrando, também pela sétima”.
De acordo com Vieira, à estes quatro impérios e idades
sucederiam, respectivamente, um quinto e último, ou uma sétima e última
idade/etapa de vida, que teria como base governamental a Lisboa. Como mostra a
citação vieiriana acima, o mundo já estava entrando na sétima idade. Da
consolidação desta sétima idade, ou melhor, da instauração deste quinto
império, surgiria a paz absoluta, uma vez que o processo de conversão universal
seria realizado e todos os povos viveriam sob o Cristianismo católico; prova
cabal deste futuro acontecimento são as profecias bíblicas e oníricas. O cosmos
permaneceria divido entre o espiritual e o terreno, inclusive, de Roma, o Papa
continuaria encarregado da espiritualidade, enquanto em Lisboa o soberano
português prestaria serviços temporais, nos âmbitos jurídicos e políticos. Aliás,
no Quinto Império vieirense, o papel do monarca que não deixava de repercutir também um
conceito de soberania essencialmente medieval.
Tanto mais que em uma discussão que busca compreender
as heranças medievais dentro de uma perspectiva de longa duração,
torna-se fundamental esmiuçar a origem deste conceito. Afinal, reina amplamente
uma falsa apreciação do ponto de partida daquilo que se tem por soberania.
Muitos ignoram que é a partir do homem medieval que vigora, em essência, uma
“visão positiva do saeculum” considerado aqui como um “poder particular:
um poder que administra, legisla, julga e tributa em nome de um complexo de
normas que, justamente porque pertinentes ao status rei publicae, são de
direito público, não de direito privado, fatores esses pois de ordem política
e que entram especificamente no conceito moderno de soberania”.
No entanto, alheio às suas heranças medievais,
de modo geral, o homem moderno acreditava ter superado esta visão pouco madura
que determinava o poder político
do soberano como fruto de uma eleição estritamente divina, onde este poder, o
poder do soberano, em nada tinha a ver com o poder político do povo.
Seguindo este julgamento, a partir do final da Idade Média, marcada pelos
avanços dos Turcos e o advento Renascentista, essa crença fora posta na
berlinda pelos novos padrões racionalistas que emergiam na Europa. Tanto mais
que este suposto lampejo de consciência desvencilhada de credos supersticiosos
viria a provocar “uma profunda crise de consciência histórica barroca” nos
séculos XVI-XVIII.
Embora na Idade
Média já se articulasse a base do conceito de soberania, o homem moderno, ainda
assim, avaliou ter rompido com uma unidade político-espiritual pautada na
supremacia das instituições religiosas sobre a soberania. Em virtude desta
ruptura, a Europa moderna, dada a falta de unidade entre pessoas que gozavam,
cada qual, de sua nova conquistada liberdade, estava a mercê de uma
fragmentação onde a desarmonia poderia levar ao caos.
Ora, ainda que
desprezada a religião, e com ela a visão homem-criação, o novo paradigma
de homem-indivíduo da modernidade renascentista não poderia
suportar tal fragmentação da sociedade, haja vista que movimentos como o racionalismo
previa para o futuro da humanidade resultados utópicos. Ainda mais que esse
futuro estava assentado “na possibilidade de um conhecimento e subseqüente
domínio da natureza, a qual, por seu lado, estava sujeita a um conjunto de leis
coerentes e universais” e o “conhecimento destas leis não só era acessível ao
homem enquanto homem, como era também cumulativo, de tal forma que as gerações
seguintes não teriam de passar pelos esforços e erros das anteriores”. Ou seja,
sem unidade, nunca se teria harmonia suficiente entre os indivíduos para tornar
possível a paz.
Nesta lógica,
para manter uma unidade social, condição indispensável para a paz utópica,
alguns autores pautaram-se nas teorias no jus-naturalismo onde organizações
políticas como o Estado, seriam frutos da criação voluntária de indivíduos a partir do
contrato social. Ou seja, o que antes fora reservados “nos antecedentes medievo-cristãos
à esfera religiosa da igualdade de todos os homens perante Deus, passa a ser
tematizado pelos modernos como exigência jurídico-política fundamental”.
Mas até mesmo o
processo de formação desta nova concepção de contrato social desencadeador
de um Estado soberano racionalmente capaz de assegurar a paz se
provou problemático por várias razões, entre essas destaca-se a própria
instabilidade política característica do mundo moderno. A Europa cristã estava
decididamente dividida, tanto pelas incongruências teológicas evidente nas
disputas: Reforma/Contra-Reforma; cristão velhos/novos; retorno dos judeus: e a
crescente aproximação do mundo islâmico, quanto pela
abertura da Europa à um mundo verdadeiramente global, onde viagens náuticas
davam notícias de habitantes em novos mundos que agora necessitavam de suas
próprias catalogações judiciais, políticas e teológicas.
Por mais que se aspirasse a uma racionalização do Estado,
a verdade é que a realidade política, fragmentada e mergulhada em guerras, a
título de exemplo a Guerra dos Trinta Anos, possibilitou a emergência de
movimentos milenaristas que prometiam uma estabilidade outrora assegurada pela res
publica christiana medieval. A vontade de resgatar uma estabilidade
universal não se limitou apenas ao mundo Barroco, tanto que, filósofos da
natureza como Isaac Newton (1643-1727), protestantes como William Aspinwall
também trabalharam sobre considerações apocalípticas e proféticas das passagens
bíblicas de Daniel. Com efeito, “quanto aos seus ingredientes mais
universais e essenciais (a reconciliação e unificação política e religiosa dos
povos, a paz duradoura, o reinado da justiça, do direito e do bem na comunidade
ética e política) ela sobreviverá no pensamento racionalista e iluminista,
mesmo em filósofos da envergadura de um Leibniz e de um Kant”.
O próprio universalismo inerente aos movimentos
milenaristas, não foi o suficiente para abafar o surgimento das tendências
nacionalistas que rompiam a todo instante, já que “cada uma das nova nações européias pretende(u) à sua conta justificar-se como
aquela que é a chamada a restabelecer a unidade perdida e a realizar o sonho
medieval do reinado milenar dos justos”. Neste sentido, diversos movimentos
milenaristas recorreram à alguns autores medievais da cristandade, entre os
quais, destaca-se o influente Joaquim de Fiore, para dar fundamento ao viés
messiânico de certa destas tradições.
Na verdade, assim como Santo Agostinho, Joaquim di
Fiore (1132-1202) elaborou um esquema tripartite da história, separando-a em
três épocas diferentes que manifestam a Trindade, são elas a época do Pai, do
Filho e do Espírito Santo. A primeira época, teve início com Adão sob o signo
da lei, passando por Abraão tendo finalmente se consumado com a vinda de Cristo.
A segunda, de acordo com Fiore, foi inaugurada por Uzias, rei de Judá, por
volta de 792 a.C., e traria consigo o signo do Evangelho, tendo passado por
Zacarias para finalmente ser consumada em um tempo futuro, porém, ainda
histórico. A última e a terceira época teria seu início com São Bento
(c.480-547), sob o signo do Espírito, e sua consumação viria com a reaparição
de Elias no fim do mundo, a consumação desta sim, transcenderia a história.
Atentando ao desenvolvimento do pensamento profético e
messiânico, é importante notar que, no entender do autor, a era vindoura do
Espírito Santo está pré-figurada nas eras antecessoras do Pai e do Filho,
porquanto cada evento do Velho Testamento são promessas correspondentes a
eventos destinados à acontecer no Novo Testamento. Seguindo esta lógica e seu
próprio esquema tripartite, Joaquim de Fiore embasou-se nas narrativas da
Apocalipse de São João para deduzir que alguns dos eventos que estariam ali
prefigurados já teriam se realizados historicamente,
enquanto outras prefigurações ainda estariam por vir, ou seja, utilizou de uma
estrutura profética para fazer deduções sobre o futuro histórico. Portanto,
diferentemente de Santo Agostinho, o significado real dos sacramentos não é seu
significado transcendente, mas sim a indicação de um potencial que se realiza
dentro da própria história. Em virtude da realização plena da época do Espírito
Santo, Joaquim de Fiore apostou na vinda de um líder messiânico destinado a
trazer uma renovação espiritual para dentro da história e não transcendente à
ela. Em parte, esta renovação revelaria o que até então permanecera encoberto
nos próprios sacramentos.
Ora, a idéia
joaquimita de um novo Messias histórico permeou o cenário político europeu,
idéia que provou ser impactante desde os tempos de Frederico II (1194-1250).
Porém, embora o próprio Joaquim de Fiore não apresentasse tendências
revolucionárias, a verdade é que muito de seus adeptos viu em suas
considerações a eminência de uma reforma, ou melhor, renovação eclesiástica de
larga escala.
Com efeito, as
centúrias que se seguiram presenciou a permanência de questões
relacionadas à esperança messiânica, ainda que por vezes em forma de
oposição e contestação de que um novo messias estaria por vir. No entanto, no
campo da aceitação, a raiz joaquimita encontrou campo fértil em solo português
e, na perspectiva de uma longa Idade Média, constata-se que o
Messianismo em Portugal esteve presente desde o princípio, desde seu mito
fundador.
Aliás, o
“Milagre de Ourique, que constitui a primeira e obrigatória referência do
messianismo português, ao corporizar a idéia de que um reino com tal nascimento
não poderia perecer e estaria destinado a grandes coisas ao serviço de Deus que
o tinha querido e desde o início favorecido”, permeou todos os demais
movimentos messiânicos, do qual o próprio movimento quinto imperialista é um
bom exemplo. Ressalta-se também que será durante a Idade
Média que se observará como recorrência nas crônicas/narrativas a inclusão de
milagres e profecias de teor nacionalista, visando principalmente a legitimação
do próprio reino.
Embora grande parte do tradicional orgulho lusitano
ter vindo de sua luta contra os povos islâmicos, sua gênese também parte de sua
necessidade de se posicionar frente à vizinha Castela. Presente desde os tempos
da fundação do reino, os dissabores entre estes vizinhos se prolongou no
decorrer da história, e embora tenha atingindo um inflamado apogeu na Batalha
de Aljubarrota, a animosidade persistiu para além da Idade Média. Prova disto
são as epístolas nada gentis trocadas entre André Resende (c.1500-1573),
humanista e nacionalista português de Évora, e seu rival Bartolomeu de
Albornoz, nascido em Talavera. Essas cartas, redigidas por volta de 1567,
exemplificam não só longa duração da rivalidade entre ambos os reinos,
mas também o empenho que era posto para exaltar, por parte dalguns
portugueses, “os méritos e as excelências de Portugal”. André Resende, por
exemplo, com seu gosto pela Antiguidade, “procurava argumentos nas mais
diversas fontes, arqueológicas, históricas, epigráficas, geográficas,
hagiográficas e mesmo lendárias, tentando dessa forma responder firmemente às
pretensões do país vizinho, que via como um rival”.
De igual modo, ao avançar na história do Messianismo
em Portugal, em direção ao tempo das atividades religiosas e políticas do Padre
António Vieira, é preciso ter em mente, antes de mais, que a construção do
Projeto Quinto Imperialista puxou e se apropriou de uma série de lugares de
memória das mais diversas naturezas, para sua consolidação. Neste sentido,
é preciso levar em conta duas correntes messiânicas de importante expressão no
quinto-imperialismo: uma católica e outra judaica. A última dará vida as
teorias de Menasseh ben Israel, um dos colaboradores do Padre Vieira, enquanto
a primeira corrente terá expressão significativa no Sebastianismo e Joanismo.
Redirecionando o foco para suas vertentes cristãs,
será o Sebastianismo, portanto, uma expressão solene do Messianismo lusitano,
emergido em um espírito cruzadístico de reconquista e expansão envolto por um
fervor nacionalista ao mesmo tempo em que é aliado à longa tradição milenarista
cristã. Nos jogos de profetização da história vindoura aos moldes joaquimita,
viu-se no súbito e inesperado desaparecimento de D. Sebastião durante a Batalha
de Alcácer-Quibir (1578), os sinais da eleição do monarca, destinado à
ressuscitar e liderar os portugueses, o novo povo escolhido, no estabelecimento
do Quinto e, portanto, Último Império. Com efeito, “o profetismo joaquimita é
um dos componentes essenciais do sebastianismo português” fornecendo ao
messianismo lusocêntrico “elementos imprescindíveis, como a derrota dos turcos”
e a “imagem de um imperador mundial”. Por isso “não é de se estranhar que o
ilustre nome de Joaquim de Fiore ocorra com certa regularidades nos cartapácios
sebastianistas”. Tanto que é possível reconhecer suas raízes quando Frei
Sebastião de Paiva (c. 1600- 1659) em seu Tratado da Quinta Monarquia (1641)
diz: “E, contudo, vemos que os portugueses, amigos da Pátria, desejosos do bem
comum procuraram aplicar tudo o que acerca da pessoa em que a Quinta Monarquia
se há-de instituir, temos apontado ao sereníssimo Rei Dom Sebastião tendo-o por
vivo”. Para os sebastianistas todos as prefigurações bíblicas, já reveladas em
história, apontavam para D. Sebastião como o esperado messias.
Em virtude dos objetivos cruzadístico e expansionistas
com o qual D. Sebastião se propôs rumo à África, torna-se cada vez mais intensa
a ligação entre crenças messiânicas e o expansionismo lusitano. Este vínculo
fará com que, cada vez mais, o Messianismo figure como fator legitimador de
incursões de extrema violência. Em uma espécie de bailado bélico, o
Sebastianismo ajudou a impulsionar o Expansionismo enquanto o Expansionismo fez
o mesmo para o Sebastianismo. Resulta-se daqui o sucesso da crença
sebastiânica, que teve comprovado abrangente e duradouro
alcance. A indissociação do misticismo sebastiânico e de seu fundamental escopo
de atuação no âmbito bélico-político atingiu em cheio Vieira quando este
desembarcou em Lisboa e iniciou suas atuações junto a Corte.
Com a semente
sebastiânica já plantada antes mesmo de sua travessia do Atlântico, serão os
acontecimentos histórico-políticos da Restauração que convencerão Vieira do
papel messiânico de D. João IV, em preterição do rei D. Sebastião. Isto porque,
para o jesuíta, o próprio codinome de O Encoberto, implicava na exclusão do
cognome de O Esperado, ou O Desejado, tanto que por ele ficou implicado em
sermão,
Que nasça a
décima sexta geração de Portugal tão esperada, e que sendo décima sexta por
três dias, nem o amor dos naturais, nem os ciúmes dos estranhos em trinta e
sete anos o descobrisse! Vivo apesar de tantas advertências políticas,
encoberto apesar de tantas evidências manifestas! Grandes milagres da
Providência Divina; e este segundo, a meu ver, ainda maior. E se não, pergunto:
Qual foi a razão, porque ordenou Deus que o libertador que havia de ser de
Portugal, se conhecesse tantos anos antes no mundo, não pelo nome de
libertador, senão pelo nome de encoberto? A razão foi; porque maior milagre da
Providência era conservá-lo encoberto, que fazê-lo libertador Fazê-lo
libertador, foi deliberarem-se os homens a uma cousa muito útil; conservá-lo
encoberto, foi cegarem-se os homens a uma cousa muito manifesta: e maior
milagre é encobrir evidências ao entendimento, que persuadir conveniências à
vontade.
Contudo, cumpre não esquecer que a raIz comum que
ambas correntes messiânicas, a sebastiânica e a joanina fincavam nas trovas bandarrinas,
facilitou a transição do Padre Vieira ao joanismo. O profetismo do Sapateiro de
Trancoso teve permanência duradoura no pensamento vieiriano, tanto que 30 anos
após o início de suas atividades políticas, Vieira continuou, em carta à Duarte
Ribeiro de Macedo em 1672, a reiterar sua crença nas trovas afirmando: “Se
é sonho durmo; e se é loucura eu sou louco, e, em qualquer das suposições,
quando não haja de ser felicidade verdadeira para todos, basta que seja alívio
e consolação para mim”.
Ainda que curto, o trecho da carta acima citado revela
aquilo que Vieira esperava da realização profética das trovas, isto é dela
haverá de ter “felicidade verdadeira para todos”. Evidentemente já nesta
altura, “as profecias do Bandarra foram acolhidas por Vieira segundo uma
perspectiva messiânica, mas já não sebastianista em senso estrito, porque
adaptada à espera da ressurreição de D. João IV, o Restaurador”.
Para além de que, já com alguma perspectiva histórica
que o passar do tempo disponibiliza, percebe-se que o “milenarismo barroco
responde à necessidade de dar um sentido à história humana no seu conjunto”, e
é esta necessidade que, de igual modo, impulsiona o jesuíta. Tal como outros de
sua época, “Vieira imaginava um tempo que nunca existiu a não ser nas dobras de
um desejo coletivo de felicidade.
Eram saudades do futuro as que ditavam as suas
esperanças”. Assim, logo após a Restauração, ao adentrar as cortes de D. João
IV, Vieira, sempre visando a “história futuro”, aquela
profetizada em Bíblia e nas trovas bandarrinas, se empenha “na solução de três
principais problemas: a liberdade dos escravos (negros e índios); a invasão
holandesa e o desenvolvimento econômico do país”.
Ora ovacionado, ora amaldiçoado, o Padre António
Vieira viveu uma carreira de pontos altos e baixos. Quando em 1652, ele
regressa ao Brasil, o faz a mando de seus superiores, que estavam ciente de que
sua política econômica, que contava com o apoio dos cristãos novos e judeus,
repercutia negativamente pela corte lisboeta. Agravando a situação, o mal estar
causado por Vieira estava, por tabela, afetando também a reputação de toda a
Ordem Inaciana, que assim ficava em posição delicada. Não é de se espantar,
pois, que numa tentativa de neutralizar o comportamento do Padre Vieira, a
Companhia de Jesus o restringisse a cumprir apenas o serviço de missionação.
Porém, nem mesmo a nova posição do Padre António Vieira é suficiente para
alentar seu fervor combativo e tão logo que regressa ao Brasil, dá início à uma
série de sermões condenando a postura moral dos colonos e o tratamento destes
para com os índios. Estas severas críticas feitas no púlpito novamente geram
mal estar entre a população colona e os missionários, expondo Vieira à uma
série de acusações. No entanto, a força bruta das acusações que o levaria às
prisões inquisitoriais só seria sentida por ele anos mais tarde.
Por ora, Vieira pôde contar momentaneamente com um de
seus mais expressivos pontos altos de sua carreira quando, em Lisboa, em 1654/5
consegue carta do rei que concede jurisdição dos índios aos jesuítas. Mas esta
surpreendente vitória neste momento histórico, pouco duraria, já que, em 1656,
D. João IV viria falecer deixando Portugal e seus territórios ultramarinos sem
liderança e proteção contundente.
Em 1663, Vieira já se encontra sob custódia da Santa
Inquisição em Portugal sendo acusado, entre outras coisas, de estabelecer
afiliações com os judeus, principalmente durante suas ações diplomáticas na
Holanda. Em 1667, as acusações se concretizam e, condenado pela Santa
Inquisição, Vieira é proibido de pregar. Em 1668, saindo da prisão,
sua liberdade vinha com condicionais, ainda sem ter autorização para pregar e
para tratar de assuntos relacionados aos cristãos novos ou até mesmo ao Quinto
Império.
Mas a oratória
de Vieira provou ser indomável, tão logo ele se mudou para Roma, retomou sua
luta pelo Quinto Império, para a qual os cristãos novos e judeus exerciam papel
importante. Seu talento triunfou sobre sua má-reputação, e em Roma foi admirado
por grandes nomes como a Rainha Cristina da Suécia. Caiu também nas boas graças
do Papa que lhe
isenta da “jurisdição inquisitorial” e revoga sua condenação.
Livre para
pregar sobre qualquer assunto, Vieira deixa Roma em 1675, mas com a morte do
Papa Clemente X no ano seguinte, mais uma vez se encontra sem proteção. Quando
retorna ao Brasil em 1681 continua a ser perseguido por seus inimigos tanto na
colônia quanto em Portugal. Mas já em idade demasiada avançada, em 1691
renuncia oficialmente ao cargo. Morre em 1697 aos 89 anos de idade.
Como denuncia
sua cronologia, Vieira passou de 1641 à 1681 viajando, sempre orientado pela
bússola que se tornou o seu projeto quinto-imperialista, adentrou os mais
difíceis campos de batalha no âmbito da retórica, nos quais, armado em palavras
combateu visceralmente por suas convicções. Nos púlpitos perigosos do século
XVII, hasteou seu estandarte e com a mesma arma que fez sua ofensiva, também
cuidou de sua defensiva, sempre vigilante. As palavras ditas, o ar se
encarregou de levá-las para o buraco negro da oralidade, irrecuperável.
Mas há, no entanto, um lugar de memória
importante, que oferece um vislumbre, um resquício do que provavelmente foi a
essência dos sermões vieirianos. Isto porque o prelado superior, o Pe. João
Paulo Oliva, à quem Vieira respondia lhe ordenou “a tirar da sepultura” os seus
rascunhos de sermões e a compilá-los, segundo seus próprios critérios. Este
ato, penoso e de grande consumação de tempo para o Padre Vieira, resulta num
conjunto de sermões que são, para a posteridade, uma fonte histórica
valiosíssima.
Afinal, apesar do reconhecimento de que esta
compilação, que resultou nos Sermões, não reconstitui a oralidade de
outrora, ainda assim ela oferece um pedaço importante da história militar
luso-brasileira, no âmbito da retórica, justificativas bélico-religiosas das
ações militares e porque não da oralidade?”.
Sem dúvida, lamenta-se a falta de tecnologia que pudesse capturar a
oralidade dos sermões professados em viva voz, mas este facto não anula o valor
dos Sermões. Portanto, resignada a tentativa de reconstituição, ou
reconstrução do passado, e ciente de que o teor das substâncias que imbuem cada
um dos sermões vieirenses teriam que, necessariamente, fazer sentido para
aqueles de seu tempo, faz-se, nas páginas que seguem, proveito deste lugar
de memória. Fundamentais são, portanto, as relações que se construíram e
que continuam a ser construídas não só com, mas também a partir deste templo
mnemônico. Neste sentido, é completamente adequado compreender esta obra do
século XVII como fonte capaz de oferecer um entreveja do “vulto sublime” que
foi o pensamento vieiriano.
Disto resulta
que esta tese, focada não só, mas principalmente, nos canais de comunicação
bélico-jurídico que compunham parte importante da produção sermonística da
época, assinala o Padre António Vieira como autor e figura histórica de
importância notável para o período moderno. É por isso que todo o escopo de sua
vida é chave central para a compreensão do encadear de suas resoluções, das
quais destaca-se o seu projecto Quinto-Imperialista, fator principalmente
relevante quando se atém que este exercício é essencial para avaliação do
processo de coletivização da memória diante um universo investigativo de longa
duração. Portanto, colocá-lo e compreendê-lo diante do continuum
histórico, que passa da Idade Média para esta outra categoria histórica, a
modernidade, torna-se essencial. Ao considerar que a instalação do Quinto
Império exigia a conversão de todos os gentios, a destruição de todos os
hereges, e o fato de que todos os recantos do universo deveriam ser católicos,
eis que para Vieira a necessidade das missões, quer religiosas, quer bélicas
tornaram-se legitimadas. Será, portanto, na perspectiva bélica que as páginas
que se seguem traçam alguns dos conceitos-chaves da história militar
luso-brasileira desde o medievo até a modernidade. Esta primeira análise
vislumbrará os Sermões do Padre António Vieira dentro de uma perspectiva
de herança e de uma comunhão com a Idade Média.
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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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