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A violência na concepção cristã
Fazer com que alguém rasgue o corpo do
inimigo com a espada exige técnica, empenho e domínio. Por isso, falar de discursos
que incitam a violência é falar de pessoas capazes de moldar palavras, de as
lustrarem e as fazerem brilhar a ponto de motivação. Trata-se de eloqüência.
A ciência com toda sua capacidade também
mostra seu limite ao não poder responder ao certo a origem da violência. As
religiões têm suas teorias, teorias apenas. Na verdade, sequer têm-se hoje uma
definição conclusiva do termo. Pois a violência é um “termo potente demais para
ser definido”. Violência é muito mais do que as definições reiteradas e
simplistas sugeridas pelos dicionários que as define como sendo
“constrangimento físico ou moral; uso da força; coação”. O que se sabe
certamente é que a violência é palpável e terrivelmente temida. Incontrolável,
a violência sempre existiu, e, tirando esperanças utópicas de um mundo sem
desordem ou até mesmo o pessimismo que advém do cálculo de que o fim do mundo
sem dúvida ocorrerá, tudo indica que sempre há de existir.
Conseqüentemente, e não à toa, tem-se um
falar incessante e inquietante sobre a violência, termo que vem ocupando
atualmente um lugar de destaque nas práticas discursivas de vários líderes e
figuras públicas. Evidentemente, a violência não é exclusividade da
contemporaneidade e tão pouco essas práticas inserem-se neste espaço temporal
como uma novidade. Muito pelo contrário. A violência vem sendo trabalhada pelo
ser humano em seus discursos há milhares de anos, e é possível detectar nestes falares um fio capaz de costurar uma
rede comum entre o que foi e o que está sendo dito sobre a violência. Este fio
tecedor, que agora se destaca, é a ordem pública, questão que vêm
claramente pungindo os indivíduos que se organizam na coletividade.
As políticas de
manutenção da ordem pública da atualidade têm, assim como outras táticas, feito
apelos às comunidades científicas, buscando as causas e origens da violência.
Algumas das possíveis causas que se discutem no presente são as da
predisposição inata, distúrbios de personalidades, acesso às armas de fogo,
fatores socioeconômicos, e até discussões onde o gênero entra como um
coeficiente importante. Algumas avaliações já se deram como superadas, como no
caso do papel desempenhado pela sociedade dita moderna no comportamento
violento, análise esta que tinha como base a teoria do bom selvagem, assim como
a da tabula rasa. As doutrinas teológicas, como a teoria agostiniana do
pecado original, por exemplo, também tiveram (e têm) sua relevância em seus
campos de atuação e não deixam de ser motivo para contenda. Todos estes
debates, acalorados e sempre atuais, demonstram a preocupação que resulta da
necessidade de pôr fim ao desgosto que, sobretudo, a violência traz.
Cada vez mais
aguerrida, a violência e os discursos que a acompanham vêm se
proliferando, e sugerindo uma alta repentina neste tipo de comportamento - o
comportamento violento. Ao longo da trajetória histórica do
mundo ocidental observam-se inúmeras explosões de violência em larga escala,
podendo estes ser detectados nas cadências das várias guerras que pontilharam o
decorrer dos milênios. De maneira que, enquanto a atualidade se depara com as
mais variadas tipologias de guerra, historiadores são, com freqüência, remetidos a ponderar os inúmeros booms
bélicos que antecederam os presentes.
Como
demonstrativa exemplar desta suposta súbita violenta na história ocidental
pode-se citar o período medieval, período este assinalado, dilacerado e
considerado infame por excessos de violência, pois já é amplamente sabido que
“a sociedade medieval vive, morre e se diverte com grande brutalidade”. Os anos
que seguiram a desintegração do Império Carolíngio se fixaram como um marco. A
sociedade medieval se viu fraturada em pequenos reinos, cada um com direito
próprio ao exercício da violência. Neste momento, curiosamente, ao mesmo tempo
em que se tem a impressão de que o caos violento seria anárquico, é também o
instante onde a Europa Medieval oferece pela primeira vez em sua história o
“espetáculo paradoxal” de uma sociedade que tenta se organizar politicamente
com base em uma moldura espiritual. Marcava, assim, o crescendo da Igreja
Igreja esta que, quanto mais potente se tornava, mais se envolvia em política,
e mais precisava se posicionar na questão da violência.
Como o próprio Vieira explica sobre o sentido original
do conceito de Igreja,
Igreja entre nós significa vulgarmente templo: e no
tempo de David não havia templos; porque em todo o reino e povo de Israel não
houvre mais que o Templo de Jerusalem, edificado a primeira vez por Salomão,
filho do mesmo David, depois de sua morte. Diz contudo David, que louvava e
louvaria a Deus na destas práticas de leitura’. Igualmente, e tomando Chartier
como inspiração para este artigo, pode-se também questionar as máximas sobre a
violência como as que dizem que ‘a sociedade de hoje está mais violenta’.
Processo que o autor intitula de ‘deixar para trás a nostalgia’”.
Igreja: porque Igreja não é nome de lugar, senão de
pessoas, e significa ajuntamento, ou congregação de gente, principalmente da
mesma fé ou crença, ou seja na casa, ou na praça, ou no campo, ou em lugar
consagrada a Deus, como este em que estamos.
Mas para os propósitos desta tese, o uso do termo
Igreja designa uma corporação de pessoas que compõe a hierarquia eclesiástica.
No entanto, não se quer aqui deixar a impressão de que essa hierarquia era
homogênea e estável, muito pelo contrário, a Igreja Católica, vai se revelar
bastante elástica e heterogênea ao longo do processo histórico.
Jesus Cristo aceitava aqueles que levavam uma vida
militar do mesmo modo que aceitava prostitutas em seu círculo de amizades.
Contudo, isso não significara que Cristo aprovasse o comportamento violento em
si. Jesus, repetidas vezes sugeriu e advogou em favor de uma existência
pacífica, com sua máxima de “vire a outra face” e “ame o seu inimigo”. Sua
filosofia consistia em não usar o mal para combater o mal, mas sim, usar o bem
para combater o mal. A Igreja sabia que atitudes pro-bélicas eram
inconsistentes com os ensinamentos de Cristo, e, em seus primórdios, seus
seguidores adotaram uma atitude pacifista. Alguns mártires, durante aqueles
primeiros anos de perseguição implacável aos cristãos, preferiram até se
entregar, sem resistência, a morte nos coliseus quando negaram fazer uso da
prática violenta da auto defesa.
Padre António Vieira compõe relatos desses primeiros
mártires cristãos. Aliás, no “Sermão de Santo Estevão”, ele prega sobre o
primeiríssimo mártir ou, o “Protomártir” explicando que este primeiro
tipo de martírio era pautado na paciência de Cristo tanto que “só por este
modo, padecendo e calando, se conserva a paciência” este extremo do
martírio ficou tão estimado que a “Igreja Católica canoniza a paciência
dos mártires”. Por isso a admiração de Vieira que ao louvar Santo Estêvão afirma “era
tão poderosa a eficácia de suas palavras, que ninguém podia resistir a
elas (…) e contudo, quando impetuosamente o arrebataram para o apredejar,
nenhuma palvara lhes disse, nem de queixa, nem de repugnância, deixando-se
levar da fúria da multidão mudamente, e sem o menos movimento de resistência”.
Porém, na medida em que a Igreja progressivamente
fazia alianças políticas, suas tendências pacifistas atenuaram-se. A Igreja
estava cada vez mais arraigada nas instituições governamentais do Império. Numa
inversão espantosa, aqueles que ainda mantinham posturas da não-violência, se
recusando, desta forma, a ceder às disposições da Igreja, se encontraram
marginalizados e rejeitados pela comunidade, sendo, por vezes, rotulados de
hereges. Desta forma, e com o apoio de doutrinas de consentimento à violência,
a fé cristã transformou-se de extremamente pacífica para altamente militarizada.
O ponto culminante da fusão entre a Igreja Católica e
o poderio militar romano materializar-se-ia somente mais tarde com o Édito de
Tessalônica em 380. Contudo, as mudanças mais favoráveis para a Igreja
incidiram durante reinado de Constantino. Este, já convertido e proclamado o
decreto de tolerância com o Édito de Milão de 313, assegurava-se na crença de
que a conversão do Império Romano em um império cristão cumpriria a promessa e
conseqüentemente a profecia do “reino de Deus na terra”. Esta crença
norteadora, que mais tarde resultaria, de fato, na conversão do Império, foi
impactante. Certamente este “reino de Deus” se tornou cada vez mais tangível,
pois, em essência, era a Igreja Católica em si. Como encarnação e locutora do
reino de Deus na terra, a Igreja estava ciente de que a preservação, manutenção
e ampliação do reino de Deus na terra teriam que suplantar o “ame seu inimigo”.
Acima de qualquer coisa, o reino de Deus sobre a terra. Para a Igreja, acima de
qualquer coisa, isto!
Foi precisamente esta filosofia de evangelização que
tornou possível a entrada definitiva da Igreja no teatro de guerra,
transformando a Igreja, no que diz respeito a assuntos bélicos, no maior e mais
impressionante dramatis personae no jogo militar. Ela assumia, desta
forma, o papel de defensora e protetora da ordem pública. Qualquer ameaça ao estado, era uma ameaça a Igreja, e qualquer ameaça a
Igreja era uma ameaça direta ao “Reino de Deus”.
A convergência
da Igreja e Estado provou ser o portão pelo qual a Igreja entraria diretamente
no campo de batalha. Arrastada pelas responsabilidades e obrigações inerentes
às necessidades espirituais e temporais da população, a guerra facilmente se
tornou o assunto da Igreja. O ideal cristão de escapar do mundo, isto é, de
almejar os céus e o paraíso, foi substituído pela idílica conquista do mundo
pelas forças cristãs, ou seja, o reino de Deus sobre a terra.
A participação
bélica por parte da Igreja corporificou-se em várias formas e escalas de
intensidade. A contribuição que mais interessa a esse estudo é aquela feita
pela Igreja e seus membros no uso e na pregação de sermões relacionados às
guerras. A assimilação dos sermões como método persuasivo na ajuda da causa
bélica consiste em uma das mais influenciais formas de incito a violência. A
Igreja e seus intelectuais obtiveram êxito ao desenvolver formulae
capazes de recrutar, incitar, convencer e persuadir homens a violentar.
Para a Igreja, o
desenvolvimento e aceitação de argumentos pro-violência dentro dos círculos
eclesiásticos foi um processo lento, cumulativo, e também de grande disputa
intelectual. Sabe-se que a Igreja se viu coagida, na medida em que era também
parte do estado, a tomar uma posição clara e definitiva sobre o uso da força.
Sabia, também, a Igreja que uma postura pacifista comprometeria qualquer espaço
já conquistado. Foi neste contexto que a Igreja buscou o aval de argumentos e
doutrinas a fim de tornar lícito o uso da força.
A Bíblia,
autoridade suprema da fé cristã, foi amplamente consultada para dela poder
extrair exemplos de consentimento a violência. Como acima mencionado, tudo
indicava que Cristo teria pregado somente a paz e amor ao próximo. Então como
poderia a Igreja Cristã ir contra os ensinamentos pacifistas de Cristo? Foi
esse o argumento a ser refutado pela Igreja. Ela teria que provar que o
exercício da violência não contrariava de forma alguma os mandamentos de Jesus
Cristo. Foi a esta tarefa, árdua e controversa, que muitos teólogos se
dedicaram. Vários argumentos e contra-argumentos foram formulados e
apresentados a Santa Sé pelos melhores intelectuais da época. Porém, no final,
a argumentação que favoreceu a implementação da força por parte da Igreja foi a
que vigorou. Talvez, como ilustre deste tipo de personagem
histórico foi o emblemático teólogo que mais tarde viria a ser conhecido como
Santo Agostinho (354-430). Sua contribuição ao consentimento da violência foi
uma das mais respeitadas e referenciadas.
Considerado um dos “Pais da Igreja”, Santo Agostinho
foi também um dos primeiros teólogos a debater o uso da violência dentro das
instituições eclesiásticas, chegando ao juízo de que a guerra era inevitável.
Sua conclusão fluía da doutrina do pecado original. Para Santo Agostinho, a
violência seria apenas conseqüência do pecado original, e por assim ser,
acreditava o teólogo, seria impossível atingir uma paz plena e absoluta na
terra. Adotando esta linha de argumentação, tornaria impossível a prevenção de
uma guerra, que era, nada mais nada menos, que a violência aplicada. Contudo,
alertou Santo Agostinho, qualquer guerra só poderia ser quista aos olhos de
Deus se ela fosse promovida dentro de perímetros justos.
Argüia Santo Agostinho que qualquer violação das leis
civis culminaria também na transgressão das leis espirituais. Uma vez
considerado uma infração das leis divinas, o conduto negligente seria digno de
punição ilimitada. Isto significava que, entre outras instituições, cabia e era
de responsabilidade da Igreja executar o castigo aos infratores, provavelmente
por essa conter os sábios da sociedade cristã, ao quais cabiam, por sua
vez, lembrarem-se de que, mesmo que justa, a guerra ainda é algo horrendo. A
essas regras, seguiam também as
guerras. Para Santo Agostinho havia uma distinção, as guerras travadas
justamente seriam consideradas representantes de um mal menor, inevitável e
necessário uma vez que a paz cabal jamais seria alcançada. A guerra justamente
empregada assinalava uma tentativa de atingir justiça, uma tentativa de
restringir o mal, de castigar os infratores. Esses atos de violência
justificada não contradiziam os ensinamentos de Jesus, pois, segundo Santo
Agostinho, tais comportamentos não deveriam ser encarados como ações
extrínsecas, mas ao contrário, deveriam ser vistas como tendências que
assinalam a disposição da animus. Isto é, a violência do castigo deveria
ser executada com o intento pio. Por exemplo, o conflito, ou a aplicação do
castigo, se empreendido com o coração em um propósito correto, teria então de
ser considerado um conflito justo, cuja finalidade seria a de assegurar a paz,
tal como a violência ou a morte do martírio. Foi com esse argumento central que Santo Agostinho colaborou para a
justificação e legitimação de inúmeros atos de violência da história ocidental.
Muitos dos teólogos que o sucederam fizeram uso desta cadência de pensamento e
racionalização. A mais importante contribuição do santo teólogo foi a de
fornecer uma consciência livre de culpa para que pessoas pudessem fazer uso
violência em determinada instâncias, não só sem temer qualquer tipo de
represália divina, como sendo reconhecidas e ovacionadas por terem feito
justiça em nome de Deus. A idéia da violência justa e, portanto, desejada,
abriria os portões para novas conceituações bélicas.
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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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