26/03/2016

Sermão de São Sebastião, do Padre Antônio Vieira

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 A violência na concepção cristã

Fazer com que alguém rasgue o corpo do inimigo com a espada exige técnica, empenho e domínio. Por isso, falar de discursos que incitam a violência é falar de pessoas capazes de moldar palavras, de as lustrarem e as fazerem brilhar a ponto de motivação. Trata-se de eloqüência.

A ciência com toda sua capacidade também mostra seu limite ao não poder responder ao certo a origem da violência. As religiões têm suas teorias, teorias apenas. Na verdade, sequer têm-se hoje uma definição conclusiva do termo. Pois a violência é um “termo potente demais para ser definido”. Violência é muito mais do que as definições reiteradas e simplistas sugeridas pelos dicionários que as define como sendo “constrangimento físico ou moral; uso da força; coação”. O que se sabe certamente é que a violência é palpável e terrivelmente temida. Incontrolável, a violência sempre existiu, e, tirando esperanças utópicas de um mundo sem desordem ou até mesmo o pessimismo que advém do cálculo de que o fim do mundo sem dúvida ocorrerá, tudo indica que sempre há de existir.

Conseqüentemente, e não à toa, tem-se um falar incessante e inquietante sobre a violência, termo que vem ocupando atualmente um lugar de destaque nas práticas discursivas de vários líderes e figuras públicas. Evidentemente, a violência não é exclusividade da contemporaneidade e tão pouco essas práticas inserem-se neste espaço temporal como uma novidade. Muito pelo contrário. A violência vem sendo trabalhada pelo ser humano em seus discursos há milhares de anos, e é possível detectar nestes falares um fio capaz de costurar uma rede comum entre o que foi e o que está sendo dito sobre a violência. Este fio tecedor, que agora se destaca, é a ordem pública, questão que vêm claramente pungindo os indivíduos que se organizam na coletividade.

As políticas de manutenção da ordem pública da atualidade têm, assim como outras táticas, feito apelos às comunidades científicas, buscando as causas e origens da violência. Algumas das possíveis causas que se discutem no presente são as da predisposição inata, distúrbios de personalidades, acesso às armas de fogo, fatores socioeconômicos, e até discussões onde o gênero entra como um coeficiente importante. Algumas avaliações já se deram como superadas, como no caso do papel desempenhado pela sociedade dita moderna no comportamento violento, análise esta que tinha como base a teoria do bom selvagem, assim como a da tabula rasa. As doutrinas teológicas, como a teoria agostiniana do pecado original, por exemplo, também tiveram (e têm) sua relevância em seus campos de atuação e não deixam de ser motivo para contenda. Todos estes debates, acalorados e sempre atuais, demonstram a preocupação que resulta da necessidade de pôr fim ao desgosto que, sobretudo, a violência traz.

Cada vez mais aguerrida, a violência e os discursos que a acompanham vêm se proliferando, e sugerindo uma alta repentina neste tipo de comportamento - o comportamento violento. Ao longo da trajetória histórica do mundo ocidental observam-se inúmeras explosões de violência em larga escala, podendo estes ser detectados nas cadências das várias guerras que pontilharam o decorrer dos milênios. De maneira que, enquanto a atualidade se depara com as mais variadas tipologias de guerra, historiadores são, com freqüência, remetidos a ponderar os inúmeros booms bélicos que antecederam os presentes.

Como demonstrativa exemplar desta suposta súbita violenta na história ocidental pode-se citar o período medieval, período este assinalado, dilacerado e considerado infame por excessos de violência, pois já é amplamente sabido que “a sociedade medieval vive, morre e se diverte com grande brutalidade”. Os anos que seguiram a desintegração do Império Carolíngio se fixaram como um marco. A sociedade medieval se viu fraturada em pequenos reinos, cada um com direito próprio ao exercício da violência. Neste momento, curiosamente, ao mesmo tempo em que se tem a impressão de que o caos violento seria anárquico, é também o instante onde a Europa Medieval oferece pela primeira vez em sua história o “espetáculo paradoxal” de uma sociedade que tenta se organizar politicamente com base em uma moldura espiritual. Marcava, assim, o crescendo da Igreja Igreja esta que, quanto mais potente se tornava, mais se envolvia em política, e mais precisava se posicionar na questão da violência.

Como o próprio Vieira explica sobre o sentido original do conceito de Igreja

Igreja entre nós significa vulgarmente templo: e no tempo de David não havia templos; porque em todo o reino e povo de Israel não houvre mais que o Templo de Jerusalem, edificado a primeira vez por Salomão, filho do mesmo David, depois de sua morte. Diz contudo David, que louvava e louvaria a Deus na destas práticas de leitura’. Igualmente, e tomando Chartier como inspiração para este artigo, pode-se também questionar as máximas sobre a violência como as que dizem que ‘a sociedade de hoje está mais violenta’. Processo que o autor intitula de ‘deixar para trás a nostalgia’”.

Igreja: porque Igreja não é nome de lugar, senão de pessoas, e significa ajuntamento, ou congregação de gente, principalmente da mesma fé ou crença, ou seja na casa, ou na praça, ou no campo, ou em lugar consagrada a Deus, como este em que estamos.

Mas para os propósitos desta tese, o uso do termo Igreja designa uma corporação de pessoas que compõe a hierarquia eclesiástica. No entanto, não se quer aqui deixar a impressão de que essa hierarquia era homogênea e estável, muito pelo contrário, a Igreja Católica, vai se revelar bastante elástica e heterogênea ao longo do processo histórico.

Jesus Cristo aceitava aqueles que levavam uma vida militar do mesmo modo que aceitava prostitutas em seu círculo de amizades. Contudo, isso não significara que Cristo aprovasse o comportamento violento em si. Jesus, repetidas vezes sugeriu e advogou em favor de uma existência pacífica, com sua máxima de “vire a outra face” e “ame o seu inimigo”. Sua filosofia consistia em não usar o mal para combater o mal, mas sim, usar o bem para combater o mal. A Igreja sabia que atitudes pro-bélicas eram inconsistentes com os ensinamentos de Cristo, e, em seus primórdios, seus seguidores adotaram uma atitude pacifista. Alguns mártires, durante aqueles primeiros anos de perseguição implacável aos cristãos, preferiram até se entregar, sem resistência, a morte nos coliseus quando negaram fazer uso da prática violenta da auto defesa.

Padre António Vieira compõe relatos desses primeiros mártires cristãos. Aliás, no “Sermão de Santo Estevão”, ele prega sobre o primeiríssimo mártir ou, o “Protomártir” explicando que este primeiro tipo de martírio era pautado na paciência de Cristo tanto que “só por este modo, padecendo e calando, se conserva a paciência” este extremo do martírio ficou tão estimado que a “Igreja Católica canoniza a paciência dos mártires”. Por isso a admiração de Vieira que ao louvar Santo Estêvão afirma “era tão poderosa a eficácia de suas palavras, que ninguém podia resistir a elas (…) e contudo, quando impetuosamente o arrebataram para o apredejar, nenhuma palvara lhes disse, nem de queixa, nem de repugnância, deixando-se levar da fúria da multidão mudamente, e sem o menos movimento de resistência”.

Porém, na medida em que a Igreja progressivamente fazia alianças políticas, suas tendências pacifistas atenuaram-se. A Igreja estava cada vez mais arraigada nas instituições governamentais do Império. Numa inversão espantosa, aqueles que ainda mantinham posturas da não-violência, se recusando, desta forma, a ceder às disposições da Igreja, se encontraram marginalizados e rejeitados pela comunidade, sendo, por vezes, rotulados de hereges. Desta forma, e com o apoio de doutrinas de consentimento à violência, a fé cristã transformou-se de extremamente pacífica para altamente militarizada.

O ponto culminante da fusão entre a Igreja Católica e o poderio militar romano materializar-se-ia somente mais tarde com o Édito de Tessalônica em 380. Contudo, as mudanças mais favoráveis para a Igreja incidiram durante reinado de Constantino. Este, já convertido e proclamado o decreto de tolerância com o Édito de Milão de 313, assegurava-se na crença de que a conversão do Império Romano em um império cristão cumpriria a promessa e conseqüentemente a profecia do “reino de Deus na terra”. Esta crença norteadora, que mais tarde resultaria, de fato, na conversão do Império, foi impactante. Certamente este “reino de Deus” se tornou cada vez mais tangível, pois, em essência, era a Igreja Católica em si. Como encarnação e locutora do reino de Deus na terra, a Igreja estava ciente de que a preservação, manutenção e ampliação do reino de Deus na terra teriam que suplantar o “ame seu inimigo”. Acima de qualquer coisa, o reino de Deus sobre a terra. Para a Igreja, acima de qualquer coisa, isto!

Foi precisamente esta filosofia de evangelização que tornou possível a entrada definitiva da Igreja no teatro de guerra, transformando a Igreja, no que diz respeito a assuntos bélicos, no maior e mais impressionante dramatis personae no jogo militar. Ela assumia, desta forma, o papel de defensora e protetora da ordem pública. Qualquer ameaça ao estado, era uma ameaça a Igreja, e qualquer ameaça a Igreja era uma ameaça direta ao “Reino de Deus”.

A convergência da Igreja e Estado provou ser o portão pelo qual a Igreja entraria diretamente no campo de batalha. Arrastada pelas responsabilidades e obrigações inerentes às necessidades espirituais e temporais da população, a guerra facilmente se tornou o assunto da Igreja. O ideal cristão de escapar do mundo, isto é, de almejar os céus e o paraíso, foi substituído pela idílica conquista do mundo pelas forças cristãs, ou seja, o reino de Deus sobre a terra.

A participação bélica por parte da Igreja corporificou-se em várias formas e escalas de intensidade. A contribuição que mais interessa a esse estudo é aquela feita pela Igreja e seus membros no uso e na pregação de sermões relacionados às guerras. A assimilação dos sermões como método persuasivo na ajuda da causa bélica consiste em uma das mais influenciais formas de incito a violência. A Igreja e seus intelectuais obtiveram êxito ao desenvolver formulae capazes de recrutar, incitar, convencer e persuadir homens a violentar.

Para a Igreja, o desenvolvimento e aceitação de argumentos pro-violência dentro dos círculos eclesiásticos foi um processo lento, cumulativo, e também de grande disputa intelectual. Sabe-se que a Igreja se viu coagida, na medida em que era também parte do estado, a tomar uma posição clara e definitiva sobre o uso da força. Sabia, também, a Igreja que uma postura pacifista comprometeria qualquer espaço já conquistado. Foi neste contexto que a Igreja buscou o aval de argumentos e doutrinas a fim de tornar lícito o uso da força.

A Bíblia, autoridade suprema da fé cristã, foi amplamente consultada para dela poder extrair exemplos de consentimento a violência. Como acima mencionado, tudo indicava que Cristo teria pregado somente a paz e amor ao próximo. Então como poderia a Igreja Cristã ir contra os ensinamentos pacifistas de Cristo? Foi esse o argumento a ser refutado pela Igreja. Ela teria que provar que o exercício da violência não contrariava de forma alguma os mandamentos de Jesus Cristo. Foi a esta tarefa, árdua e controversa, que muitos teólogos se dedicaram. Vários argumentos e contra-argumentos foram formulados e apresentados a Santa Sé pelos melhores intelectuais da época. Porém, no final, a argumentação que favoreceu a implementação da força por parte da Igreja foi a que vigorou. Talvez, como ilustre deste tipo de personagem histórico foi o emblemático teólogo que mais tarde viria a ser conhecido como Santo Agostinho (354-430). Sua contribuição ao consentimento da violência foi uma das mais respeitadas e referenciadas.

Considerado um dos “Pais da Igreja”, Santo Agostinho foi também um dos primeiros teólogos a debater o uso da violência dentro das instituições eclesiásticas, chegando ao juízo de que a guerra era inevitável. Sua conclusão fluía da doutrina do pecado original. Para Santo Agostinho, a violência seria apenas conseqüência do pecado original, e por assim ser, acreditava o teólogo, seria impossível atingir uma paz plena e absoluta na terra. Adotando esta linha de argumentação, tornaria impossível a prevenção de uma guerra, que era, nada mais nada menos, que a violência aplicada. Contudo, alertou Santo Agostinho, qualquer guerra só poderia ser quista aos olhos de Deus se ela fosse promovida dentro de perímetros justos.


Argüia Santo Agostinho que qualquer violação das leis civis culminaria também na transgressão das leis espirituais. Uma vez considerado uma infração das leis divinas, o conduto negligente seria digno de punição ilimitada. Isto significava que, entre outras instituições, cabia e era de responsabilidade da Igreja executar o castigo aos infratores, provavelmente por essa conter os sábios da sociedade cristã, ao quais cabiam, por sua vez, lembrarem-se de que, mesmo que justa, a guerra ainda é algo horrendo. A essas regras, seguiam também as guerras. Para Santo Agostinho havia uma distinção, as guerras travadas justamente seriam consideradas representantes de um mal menor, inevitável e necessário uma vez que a paz cabal jamais seria alcançada. A guerra justamente empregada assinalava uma tentativa de atingir justiça, uma tentativa de restringir o mal, de castigar os infratores. Esses atos de violência justificada não contradiziam os ensinamentos de Jesus, pois, segundo Santo Agostinho, tais comportamentos não deveriam ser encarados como ações extrínsecas, mas ao contrário, deveriam ser vistas como tendências que assinalam a disposição da animus. Isto é, a violência do castigo deveria ser executada com o intento pio. Por exemplo, o conflito, ou a aplicação do castigo, se empreendido com o coração em um propósito correto, teria então de ser considerado um conflito justo, cuja finalidade seria a de assegurar a paz, tal como a violência ou a morte do martírio. Foi com esse argumento central que Santo Agostinho colaborou para a justificação e legitimação de inúmeros atos de violência da história ocidental. Muitos dos teólogos que o sucederam fizeram uso desta cadência de pensamento e racionalização. A mais importante contribuição do santo teólogo foi a de fornecer uma consciência livre de culpa para que pessoas pudessem fazer uso violência em determinada instâncias, não só sem temer qualquer tipo de represália divina, como sendo reconhecidas e ovacionadas por terem feito justiça em nome de Deus. A idéia da violência justa e, portanto, desejada, abriria os portões para novas conceituações bélicas.


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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.

Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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