Para baixar o livro gratuitamente, clique na imagem e selecione-o em:
↓
---
Disponível provisoriamente em "Google Drive", no link abaixo:
↓
---
Guerra contra os infiéis
Faz-se necessário aqui ressaltar uma distinção entre
aquelas guerras travadas entre cristãos e aquelas travadas contra os “Infiéis”.
Uma vez que “a
lei de guerra aplicava-se com todo o rigor, exclusivamente aos povos pagãos,
por exemplo, na escravidão dos prisioneiros de guerra, vedada para prisioneiros
cristãos”. Portanto, a classificação do inimigo como “infiel” ou cristão provou
não ser um mero detalhe, pois acarretava grandes conseqüências. Compreender o
que esta distinção representava é importante para entender um pouco mais sobre
a “mentalidade” medieval. Afinal, neste cenário de forte intolerância
religiosa, que caracterizou a Idade Média, o “Infiel” passou a ser um inimigo
desejado. Para a Igreja medieval, os “outros”, ou seja, aqueles que não eram
cristãos, caiam em uma categoria judicial diferente. “Contra o herege, o infiel
e os pagãos”, “não existia a necessidade de ser previamente atacado pelo
inimigo”. Na realidade, o “infiel” representava Satanás enquanto os cristãos
representavam Deus, em uma batalha celestial que tinha expressão na terra. Por
isso é importante notar que a guerra contra o infiel era sempre envolta e
vestida por tecidos religiosos. Contudo, esta esta concepção dita medieval irá
extrapolar os limites da periodização estando presente também
nos discursos da modernidades, como os do Padre António Vieira, por
exemplo.
Importante notar
também que se usou aqui a expressão “infiel”. A escolha da palavra foi
proposital, sendo o objetivo o de mostrar exatamente a intolerância recíproca
que existia entre cristãos e muçulmanos. O termo foi bastante utilizado nos
documentos e fontes da Cristandade medieval para assinalar não só muçulmanos
como também hereges, pagãos e às vezes judeus. Exatamente pelo termo abarcar conotações
políticas e jurídicas, para além das religiosas, se optou por utilizá-lo assim
como ele se encontra em seu contexto original. Portanto, ao fazer uso da
palavra infiel, pretende-se primeiramente referir-se ao muçulmano, partindo das
fontes escritas pelos cristãos da Idade Média. Toda a intolerância e
preconceito embutida neste termo serão mantidas a fim de expô-las e não de as
condenarem ou aprová-las.
Neste sentido,
quando se encontram nos documentos referências às guerras contra os infiéis,
sabe-se que estas representavam mais do que domínio de forças. As guerras
contra os infiéis, principalmente contra os da fé islâmica, despertavam na
imaginação medieval uma série de simbologia religiosa. Assim, eles, os infiéis,
formavam o inimigo por excelência, por assim dizer, o maior de todos a serem
combatidos de forma implacável. Contra os infiéis tudo era permitido, e
ilimitado.
Fazendo uso dessa classificação, Papa Urbano VI
categoriza o “Mourro d Ultrra Mar” em um relato extraído Crónica dos
Sete Primeiros Reis, onde o herdeiro de São Pedro pede o auxílio do rei D.
Afonso III (1248-1279) contra os “comtra os dictos jnfieys”. O
monarca português vivia em confilito constante contra os contigentes muçulmanos
pelo controle da Península Ibérica, e seu sucesso militar em “persegujr a
terra d Afriqua com gramde frota de naujos, fazemdolhe gram dapno e
estraguo” gerou comoção na cristandade. A “fama de seus boms
feytos” chegou aos ouvidos do Papa, que imediatamente pediu que seus
ministros levassem uma proposta a D. Afonso III. Se o monarca português
aceitasse “tomar a Cruz de Jesu Christo” contra os
infiéis, formando uma aliança militar, o Papa lhe concederia “remjsão
de seus pecados”. Afonso III aceitou a proposta, afinal, como bom
cristão o rei deveria impedir os muçulmanos “que tinham a Casa Santa
em doesto da fee Christãa”. Contudo, o monarca impôs
uma condicional a de que “elRey de França per pesoa pasase o mar”
com ele contra os infiéis. As guerras contra os infiéis possuíam conotações
jurídicas e religiosas que se diferenciavam em muito de outras classificações
bélicas. Neste caso específico, vemos o envolvimento da Sua Santidade e a troca
de remissões de pecados por alianças militares.
Séculos adiante,
veremos a ampliação do conceito de infiel aplicado aos protestantes e
escravos oriundos das diversas conquistas lusitanas. Esta aplicação, ou
apropriação, vai de encontro às concepções da longa duração, onde permanências
herdadas, que partem de uma visão cosmológica medieval, estruturam novos
elementos conforme seu surgimento histórico.
Com efeito,
imbuído ao patriotismo lusitano e no “ser portguês”, estava implícito o brio de
uma luta transcendente contra os inimigos do Catolicismo, os infiéis,
tal como comprovava a própria história do Reino. O “ser português” não só
partia deste orgulho, como também deste dever de luta. Os escritos
vieirianos nos dá pistas desta longa tradição, desta herança medieval, e
reporta:
E tal é, e foi sempre desde o nascimento de Portugal
em reino, a antipatia dos seus reis, e antes de terem este título, dos que Deus
ia preparando para o serem; porque já então tinha semeado e infundido neles
esta natural aversão e sobrenaturais espíritos contra Mouros e Turcos como de
homens contra homens, mas como de cristãos e professores da fé e lei divina,
contra a canalha brurtal dos infames seguidores da ímpia e blasfema cegueira
maometana.
Estando, pois, concretizada
a tarefa de historiar a luta portuguesa contra os infiéis, Vieira conclui que
“que este natural e hereditário espírito dos reis portugueses, tão singular
entre todos os príncipes cristãos” foi “continuado por mais de quinhentos anos
em tantas batalhas contra Maometanos e tão favorecido do Céu em tantas
vitórias”, comprovando, portanto, com a própria historiografia do Reino, que
tratava-se de “um manifesto sinal de serem eles os destinaos por Deus para
últimos vingadores das injúrias de sua igreja e que para sempre tirem do Mundo
e acabem este maior perseguidor e tirano da cristandade.”
No entanto, é
importante notar que a amplificação do conceito de infiél e sua aplicação à
outros povos de forma general e indiscriminada, não significava que cada uma
dessas categorias não acarretassem significados e simbolos próprios,
especialmente para o estudado Vieira. O jesuíta estava ciente das diferenças de
cada uma das religiões, mas não negava também o que algumas delas tinham em
comum.
Entre os judeus
e os cristãos-novos, por exemplo, permaneceu um debate importante na
modernidade, principalmente nos territórios portugueses, um debate que
influenciou muito António Vieira, uma vez que suas posições
controversas sobre esta categoria acarretariam, eventualmente, em acusações
pela Santa Inquisição. Porém, no tocante aos judeus, Vieira, em seus discursos,
dá pistas de como ele compreendia, ou melhor, englobava estes em sua visão
cosmológica. Para ele, quando “Cristo expirou, rasgou-se o véu do Templo, em
sinal de que também a Sinagoga expirava, e se acabava a monarquia hebréia”,
pois “romperem-se as cortinas dos seus mistérios, e rasgarem-se os véus de seus
segredos”, para o jesuíta, este acontecimento era um claro sinal
“que de se
acabar um império, uma monarquia”. No entanto, diferentemente dos protestantes,
escravos (africanos ou americanos), e dos já mencionados muçulmanos, os judeus
para Vieira contabilizava como um inimigo, por assim dizer, mais próximo. Pois
este reluzia uma raiz em comum com os cristãos. Na realidade, os cristãos são
herdeiros de uma memória hebraica:
Cousa
maravilhosa é, que o morgado de Abraão se continuasse sem quebra até Cristo,
correndo neste intervalo dous mil e trezentos anos. Não morriam estes homens?
Morriam; mas como cada um tinha outro que lhe sucedesse, sendo os herdeiros
mortais, fizeram imortal a herança. Sem estes reféns da mortalidade, se o herdeiro é um só, tão arriscada tem
a herança como a vida.
Tanto era
verdade que Cristo “representava em sua Pessoa os dous povos, de que o mesmo
gênero humano se compunha—o judaico, e o gentílico”, porém, no momento de sua
crucificação, “Deus naquela hora deixava e lançava de si o povo judaico, por
isso Cristo, enquanto representava o mesmo povo, se lamentava de se ver
deixado”. O tão esperado Messias já estava, mas “os judeus (que agora não
cansam) de esperar”, negam a Sua vinda. Vieira chega até mesmo a considerar
cristãos os judeus da antiguidade bíblica “Ninguém repare em eu lhes chamar
cristãos”, adverte Vieira no “Sermão da Epifania”.
Já “[o] herege, como inimigo doméstico,(que) das palavras de Cristo forma
armas contra o mesmo Cristo”, eram para Vieira desprezáveis. Este desprezo vem
de longa data desde os primórdios da união entre Igreja e Estado. Os hereges
deturpavam, ou distorciam as doutrinas católicas, ao mesmo tempo em que juravam
sua fidelidade em Cristo. De acordo com Santo Agostinho,
até as dissenções dos hereges serviam para firmar a fé católica. É claro que
para Santo Agostinho as circunstâncias eram outras, mas sua teoria têm
ressonância com os esforços do Vieira, que sempre buscou provar cabalmente,
através do Evangelho, os erros heréticos dos protestantes. No entanto, sua obra
sermonística mostra pouca tolerância por parte do pregador para com os hereges,
postura diferente da que teve com a subcategoria do infiel - escravos.
Visando as
estruturas que permitem definir a questão da escravidão dentro de uma
perspectiva de longa duração, ou, mais específicamente de uma longa Idade Média
é preciso voltar aos tempos da patrística, e mais específicamente à Santo
Agostinho. O Santo, irá abordar o tema da escravidão sob alegações do “justo
direito do domínio”, onde o paterfamilias estava encarregado de prover e
promover uma vida espelhada em Cristo não só aos seus filhos, herdeiros
legítimos, mas também àqueles sob quem detinha o direito do domínio. Do
doméstico, ou da família que é “o princípio ou a célula da
sociedade”, Santo Agostinho indutivamente chegará ao domínio do governo,
aludindo que cabe a este também o dever de “afastar do pecado”, através
inclusive do “castigo”, aqueles sobre quem justo domínio detém. Esses “servos”
poderiam advir de capturas resultantes de vitórias bélicas, quando o vencedor
decidia não matar o inimigo. Por sua vez, os filhos desses escravos, nasciam já
dentro da servidão. Esse justo direito das gentes, permeará o medievo de forma
consistente, principalmente com as influências do corpus iuris civilis e
sua aplicação as leis cânones.
O jusnaturalismo
medieval, que por sua conta terá raízes estoicas, irá colocar a precedência
deste sobre o direito mutável e positivo, alegando, principalmente a partir de
Santo Tomás, que este direito natural advém da Inteligência suprema de Deus
operando na razão do homem. Como uma graça distribuída divinamente, o direito
da pessoa é, portanto, inalienável. Porém o jusnaturalismo moderno,
principalmente a partir de Hugo Grotius no século XVII, vai buscar subjetivar
este direito diminuíndo o papel central de Deus e ao mesmo tempo a inalienação
do direito do indivíduo. Esta nova vertente possibilitou as teses da
escravização voluntária. O direito alienável do indivíduo em torno resultará
nas teorias contratualistas, onde o indivíduo cede direitos ao Estado. Porém,
como já consta, o contratualismo moderno também possuiu raízes no medievo,
principalmente em teóricos como Nicolau de Cusa (1401-1464).
Desde muito
cedo, todos as questões involvendo o jusnaturalismo, viriam a ter influências
direta sobre as guerras movidas em território africano, americano e também nos
territórios asiáticos, sobretudo nas resoluções a respeito dos indivíduos
considerados cativos de guerra. Com efeito, será do direito natural que os
dominicanos espanhóis, dos quais destaca-se Francisco Vitória (1483-1546),
viriam pleitear do ius predicandi, através do qual esperava-se obter a
escravidão voluntária dos capturados. Com pouca deturpação do ius predicandi,
obtem-se a legitimação esclavagista. A importância dos conceitos jusnaturalista
na esfera bélica, e em particular sua aplicação aos “recém descobertos”
territórios, irão ser dominante nas universidades “onde missionários jesuítas,
como Nóbrega e Caxa, receberam sua educação.”
No entanto,
“Seguindo o argumento tomista, Nóbrega defendeu que uma guerra só é justa
quando movida com a finalidade de reparação de uma ofensa anteriormente
sofrida. Segundo o jesuíta, esse não era o caso das guerras contra os índios do
Brasil”, como se verá mais adiante. Isto porque “[a] fonte de autoridade legal
do princípio defendido por Nóbrega era a ius gentium (lei das nações), da forma
como foi originalmente compilada pelos jusristas do Digesto romano”, segundo o
qual assentada na “ius gentium, à parte vencedora em uma guerra justa
cabia também o direito de matar os inimigos vencidos. Ao vencedor cabia também
a escolha de uma punição menos drástica que a morte, na forma da escravização
dos derrotados. A vitória em uma guerra justa conferia ao vencedor
dominium sobre a vida dos vencidos”, como já abordado, as teorias de São Tomás
viriam a influenciar, e em muito, o currículo institucionalizado pela Ratio
Studiorum dos colégios jesuítas.
---
Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário