26/03/2016

Sermão V, com o santíssimo sacramento exposto, do Padre Antônio Vieira

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Guerra ofensiva

Apesar das guerras classificadas como defensivas constituírem a maioria dos confrontos bélicos da Idade Média, as investidas de ofensa mostraram-se bastante presentes. A guerra ofensiva foi engajada com vários objetivos em disputa, o mais popular sendo o de conquista territorial. A conquista territorial significava mais do que terra e território, ela era, também, emblemática da aquisição de poder e prestigio. A posse de terras revelou-se uma maneira rápida e eficaz para líderes militares ganharem cada vez mais reconhecimento e respeito. Em uma sociedade onde ascensão social e política eram raras, a guerra ofensiva, que previa as conquistas territoriais, provou ser um método eficaz de ganhar titulações, nomeações e favores. Outro atrativo visível foi o saque. A perspectiva de ir à guerra e poder adquirir bens materiais demonstrou ser enérgica e um argumento bastante favorável para o recrutamento de guerreiros.

No entanto, a mais inovadora forma de motivar guerreiros a se engajarem em atos de violência foi a guerra ofensiva que visava a expansão religiosa. Com o intento de expandir a Cristandade, a Igreja fez amplo uso da guerra ofensiva. Essa idéia, tanto quanto revolucionária, quedava-se reforçada pela faceta missionária da fé cristã, cujo objetivo era o estabelecimento do reino de Deus sobre toda a terra. Com o intento de converter toda a humanidade, a Igreja precisou ser mais taxativa e agressiva, precisou cada vez mais conquistar e “converter” mais povos. Conseqüentemente, a expansão militar e política do Império tronaram-se, inquestionavelmente, atreladas à dilatação da fé. A combinação destes dois particulares, do desenvolvimento político da Igreja e da expansão da “Verdadeira Fé” provou uma aliança poderosa.

O impacto dessa aliança pode ser constatado na homilia do Frei João de Xira, extraída da Crónica da Tomada de Ceuta, do cronista Gomes Eanes de Zurara. O ano era 1415, e os portugueses, sob as hostes do monarca D. João I conquistaram a cidade africana de Ceuta. Dias após a tomada da cidade, durante uma cerimônia de ordenação cavaleiresca, o frade recitou uma prédica aos que estavam presentes. Durante o sermão, João Xira reconhece a natureza ofensiva da empreitada lusitana cujo o intento, para o religioso, fora sempre a expansão da Igreja Católica. João Xira segue prestigiando os guerreiros, afirmando que,

mujto mayor mereçimento he a uos, tirardella de poder dos jmfiees”, para ele esta é a principal glória “pera elRey nosso senhor, e pera todos uos outros seus criados e naturaaes”. Afinal, foi “per força de uossos trabalhos”, ele diz aos guerreiros, que foi edificada “huũa casa aa homrra e louuor de nosso Senhor Deos” em terras que anteriormente estavam “sogeita aos maaos e abominauees sacrifiçios.

A Crônica da Tomada de Ceuta e a presença dos portugueses no norte da África marcou o ínicio da aplicação prática, por assim dizer, da filosofia expansionista portuguesa. E, de certa forma, vemos o Frei João Xira como um propagandista clerical dos ideais dessa ofensiva bélica cuja fundamentação primordialmente se baseava em fundamentos religiosos. Neste sentido, para ele e para os portugueses, não bastava apenas recuperar o que uma vez pertencera legalmente aos cristãos “e nom tam soomente aquellas que forom da nossa ley”, ele enfatiza, “mas a todallas outras, em que os jmfiees fazem seus sacrifícios”. Tratava-se de uma chamada ofensiva, cujo objetivo era o de invadir e conquistar terras alheias. O incentivo era o de tolerância zero frente as casas santas muçulmanas que os portugueses cristãos deveriam “quebramtar ou tornar em moesteiros e jgreias”, a lógica era a de que, através desses atos de violência e intolerância eles mostrariam “sinall de uerdadeyros seuidores de Christo”.

João Xira detalha que existem dois passos ou “duas guisas” para os guerreiros servirem “nosso Senhor”. O primeiro passo é o exercício militar propriamente dito, onde “lamçastes desta çidade os maaos jmfiees, e os tirastes da posse de seus templos, que ssom as suas mezquitas”, ou seja, o de conquistar a cidade. O segundo seria o de tornar “aquella meesma casa em templo uerdadeyro, que he a jgreia do nosso Senhor330, isto é, para servir plenamente como um militante de Cristo, além de despojar os infiéis de suas terras, era preciso também erguer nos lugares santos da tradição islâmica novos espaços de veneração cristã. Nas concepções providencialistas do Cristianismo, tudo isto já estava previsto nos planos divinos onde “des o fumdamento desta çidade teue o nosso Senhor Deos hordenado de seer aqui posta a cabeça da jgreia de toda a terra d'Affrica”.

Conforme o discurso do Frei João Xira apresentado por Eanes Zurara, observa-se na guerra ofensiva de Ceuta os fundamentos que iriam veicular toda a política expansionista portuguesa dos séculos seguintes. De acordo com os discursos legitimadores, a dilatação da fé se torna o foco, ou, ao menos o pretexto, das práticas de ofensiva militares. Esse tipo de oratória, baseada em ideais morais, principalmente de cunho religioso, causavam mais impacto no recrutamento de guerreiros do que guerras ofensivas que prometiam ganhos através dos saques, pilhagem, ou até mesmo da velha promessa de conquista de terras. O manto ético da expansão religiosa provou-se tão efetivo que rapidamente se tornou a estratégia discursiva principal nos discursos justificativos das guerras ofensivas.

Ainda, no século XVII, se observa o conceito de guerra ofensiva aliado aos objetivos religiosos da Igreja, onde novamente Portugal irá protagonizar um papel de destaque. Trata-se da conversão universal que deu fundamento à todo regime escravista da Modernidade. Para António Vieira, missionário fervoroso, a propagação da Fé legitimava as ações bélicas de conquista, conforme consta em diversos de seus sermões. “Ser apóstolo nenhuma outra cousa é senão ensinar a fé e trazer almas a Cristo: e nesta Conquista ninguém há o que não possa, e ainda que o não deva fazer”, esclarece Vieira a propósito do apostolado em sermão dedicado ao Espírito Santo. O jesuíta propõe uma ligação indissociável entre o apostolado do próprio Cristo, o missionado dos religiosos e as atuações bélicas daqueles que pegam em armas, que se dá através dos objetivos expansionistas da Igreja. Prova desta relação é a

missão do rio das Amazonas, que amanhã parte (e que Deus seja servido levar e trazer tão carregada de despojos do Céu, como esperamos, e com tanto remédio para a Terra, como se deseja)”. Nesta empreitada, “que português vai de escolta, que não vá fazendo ofício de apóstolo?”, questiona. “Não só são apóstolos os missionários, senão também os soldados e capitães; porque todos vão buscar gentios, e trazê-los ao lume da fé, e ao grémio da Igreja”, conclui.

A seguir, Vieira explana sobre a necessidade da guerra visando objetivos de conversão para a edificação de uma Igreja una e universal.

Pois também os soldados concorrem para a formação da Igreja? Sim; porque muitas vezes é necessário que os soldados com suas armas abram e franqueiem a porta, para que por essa porta aberta e franqueada se comunique o sangue da redenção, e a água do baptismo: Et continuo exivit sanguis, et aqua”. Para além “quando a fé se prega debaixo das armas, e à sombra delas, tão apóstolos são os que pregam, como os que defendem; porque uns e outros cooperam à salvação das almas”.

Isto porque a dilatação da fé, ou o missionado consiste de duas fases: uma primeira, a conquista propriamente dita, que envolve maior violência e requer maior participação dos soldados; e uma segunda, cujos maiores trabalhos ficam, majoritariamente, por conta dos religiosos. Prefiguração deste encargo é a história bíblica de Jeremias

Escolhem Deus e avisou a Jeremias para uma missão muito semelhante às nossas; porque era para derrubar e edificar: Ut destruas, et aedifices, assim como nós imos derrubar a gentilidade, e edificar a cristandade: e era para arrancar e plantar: Ut evellas, et plantes, assim como nós imos arrancar a superstição”.

Em uma outra oportunidade, Vieira pregou sobre os diferentes níveis, ou até mesmo tipos de resistência encontrados em cada fase do processo de conversão. “Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé” se propôs a explicar, “Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados”, estas “resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem”. Mas geralmente “uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes como estátuas de mármore, não é necessário trabalhar mais com eles”, afirmou.

Porém, conta Vieira, “há outras nações pelo contrário (e estas são as do Brasil) que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir”. Sugerindo o pregador limitada capacidade de resistência militar dos nativos das Américas frente aos povos da África, alguns dos quais já submetidos e convertidos ao Islamismo e, portanto aliados e assistidos pelo poderio bélico do Império Turco. Contudo, o Padre António Vieira irá se queixar que esta fraqueza militar não significa conversão sem resistência, já que os brasis podem ser comparados à


estátuas de murta, que em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram”.
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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.

Nota:
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