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Guerra defensiva
De longe, o mais
dominante tipo de guerra durante a Idade Média foi a do “tipo defensiva”, onde
pessoas resistiam às invasões. A guerra defensiva também provou ser a mais
fácil de justificar. De certa forma, era uma guerra travada em resposta a uma
agressão prévia. E o uso da violência como resposta a um ataque ou uma
injustiça foi considerado como o mais legítimo direito. Com o passar do tempo,
o conceito de defesa própria foi ampliando e passou a incluir também o direito
de defesa de bens e propriedade, bem como o de defesa territorial.
Posteriormente, fruto de uma grande percepção por parte da Igreja o direito de defesa
própria foi expandido para abraçar também o direito de “defesa da fé” (ou
preservação/ manutenção da fé).
“As represálias,
quer durante a Idade Média, quer durante os séculos seguintes, podiam
exercer-se tanto por particulares, como pelo próprio Estado – e fossem elas
cometidas no interesse deste ou de pessoas privadas – dependendo apenas das
cirunstâncias a adopção de uma ou outra modalidade” 316. Com base neste princípio, a Igreja, como detentora
da fé, também possuía o direito não só de se defender, como o direito de
defender suas propriedades e especialmente o de defender sua fé de qualquer
ameaça. Adiante, quando Papa Urbano II convocava a Primeira Cruzada, foi em defesa
da Terra Santa e da Igreja do Leste (Bizantina) que ele clamou. Por essas
razões, em um momento histórico onde muitos lutavam passionalmente por sua fé,
vê-se surgir várias guerras que bradavam o direito da defesa.
Neste sentido,
dentre as páginas da segunda parte da Crónica do Rei D. João I,
registra-se um discurso exemplar deste fenômeno inserido em cenário português. Supostamente proferido
pelo monarca português D. João I, em 14 de Agosto de 1385, o discurso
oferece um exemplo claro da aplicação medieval do conceito de guerra
defensiva. De caráter inspiracional, o texto mostra o monarca português
buscando encorajar suas tropas momentos antes delas adentrarem o campo de
batalha contra as forças rivais de Castela. O encontro militar, largamente
conhecido por Batalha de Aljubarrota, foi, também, uma repercussão ou
consequência do cisma papal de 1378, explicando o teor religioso do discurso
monárquico.
O Grande Cisma
encetou em torno de dois cardeais, Clemente VII e Urbano VI, ambos
simultaneamente proclamavam-se herdeiros do trono papal após a morte do Papa
Gregório XI, em 1378. Em Portugal, sob influência inglesa, o papado de Urbano
VI, sediado em Roma, foi reconhecido como legitimo, enquanto no reino de
Castela, o título de papa caía sobre Clemente VII em Avinhão. Na prática, essa
divergência nos quesitos papais, traduziu-se em legitimação bélica por ambas
partes. Do ponto de vista português, qualquer tentativa de Castela sobre terras
portuguesas significaria um ataque direto, não só à pátria, mas também à
Santa Igreja, reforçando a tese de uma guerra defensiva em Aljubarrota.
Neste sentido, para os guerreiros de Portugal, a guerra em que estavam prestes
a entrar remetia à uma guerra defensiva contra os pagãos castelhanos e o
farsante papal. Isto é, não se tratava apenas de uma batalha travada
afins de preservar sua própria segurança e proteção do reino, mas também era um
combate que tinha como objetivo deter o Antipapa de apoderar-se da Igreja.
Como sugerido
pela fala de D. João I, existiu um deslocamento geográfico por parte do inimigo
cujo lema era “nosssos emmygos venham a nos”, tratando-se de uma invasão
deliberada do território português pelas forças castelhanas, onde os
portugueses correm risco contra sua integridade física e moral, afinal “elles veem a nos com gram
ssoberba e desprezamento por nos destruyr e roubar e tomar molheres e filhos e
quantos nos acharem”. Diante dessa ameaça iminente, o monarca lusitano
categoriza a batalha a ser principiada como uma resposta bélica as injúrias,
contundentemente legitimando e declarando que “nos, por nossa defemssom e do
reyno e da nossa madre Santa Egreja, pellegemos com elles”. A aplicação do
conceito medieval português de guerra defensiva figura aqui aplicado de
forma incisiva na narrativa de Fernão Lopes, reforçando que trata-se de uma
guerra travada em resposta à agressões prévias.
Igualmente
existe, dentre os sermões de António Vieira, um exemplar desta tipologia
bélica. As congruências entre ambos os textos reforçam o enquadramento do
pensamento dentro de sua matriz medieval. Comparavelmente, neste sermão pregado
em 1641 no Colégio da Bahia, Vieira procede por inventariar todos os ataques
sofridos por mãos dos inimigos durante os seis primeiros meses do ano. A
começar pelo primeiro, ele relata, “em Janeiro a armada derrotada, tantos
mil homens, tantos gastos, tantos aparatos de guerra perdidos. Em Abril a
armada holandesa na Baía com grandes intentos, mas com maiores temores nossos;
não nos esqueçamos que bem nos vimos os rostos” Passando por Maio,
ele segue a inventariar, “em Maio saqueado e destruído o Recôncavo:
tantas casas, tantas fazendas, tantos engenhos abrasados” . E concluindo o
inventário “Em Junho o Rio Real ocupado pelo inimigo; os campos e os gados
quase senhoreados, e as esperanças de os recuperar não quase, senão de todo
perdida”. Todos estes ataques urgenciavam uma resposta enérgica por
parte dos portugueses, porque há-de vingar as injúrias da pátria”.
Vindicaturas patriam; porque há-de restaurar este novo mundo: Instauraturus
orbem; porque há-de restituir a liberdade aos que há tanto tempo a têm perdido: Libertatem redditurus adventat”, justificou o jesuíta
com base no Evangelho, e comparando, “Ah Herodes holandês! Ah Jerosolyma
pernambucana! Como te vejo turbada e perturbada!
Contou ainda, no
mesmo sermão, sobre a vez que “Pediram os do Espírito Santo que os
socorrêssemos com armas e munições” e de como antes de que se
pudesse “chegar o socorro da Baía; e de duas espadas que podiam
assitir à defesa, peleje só a de dentro, e que fique de fora embainhada, para
que os mesmos desmaios da prudência humana confessem que se deve a glória ao
braço divino”. E esforçando seus compatriotas Vieira exclama,
“Ora pelejai, pelejai, poucos mas valorosos portugueses, pelejai, e
vencei animosamnte, que ainda Deus é por nós. Não peçais socorro de armas à
Baía, não peçais ao Rio de Janeiro, que um e outro há-de chegar tarde: pedi o
socorro ao Céu, pedi as armas a Deus”. Afinal “é sua Divina Providência
tão cuidadosamente prevenida para convosco” que irá providenciar “milagrosa
defesa”.
O direito à
represália ou defesa está tão imbuída no pensamento vieiriano que para o
jesuíta é importantíssimo estar preparado para este tipo de guerra, que por
natureza depende mais da vontade do inimigo, haja vista a necessidade prévia da
agressão. Tanto que em um sermão dedicado à São Roque, apenas um ano depois, em
1642, ele faz severas críticas aos portugueses por não estarem preparados para
uma eventual guerra de defesa, lembrando aos presentes “É certo que nas
Cortes passadas se prometeram subídios para a guerra, quantos fossem
necessários à conservação do Reino”, mas estas promessas não estavam
sendo cumprida, tanto que
Há cidades em Portugal, que sem estarem tão longe de
Castela, como Roma de Cartago, nem as dividir um mar, senão um pequeno rio, e
algumas uma linha matemática; tão confiadas estão de si mesmas, que por mais
que são mandadas fortificar, não se fortificam, havendo (à maneira dos Espartanos)
que onde estão os peitos dos seus cidadãos, não são
necessárias muralhas.
Da mesma forma,
ele critica os homens, em especial os da nobreza, que não estão dispostos, ou
preparados, caso seja necessário defender Portugal contra um eventual ataque do
inimigo.
Há homens em Portugal, que sem terem gastado os anos
nas escolas de Flandres, nem campeado nas fronteiras de África, por mais que os
mandam ter armas, e exercitá-las, têm por afronta ou por ociosidade este
exercício; como se fora contra os foros da nobreza prevenir a defensa da
pátria; ou puderam, sem exercitar as armas, entrar naquele número ordenado de
gente, que por constar de homens exercitados, se chama exército.
Isto é, para
Vieira, a defesa da pátria é obrigação de todos, independente de sua posição
hierárquica.
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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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