25/03/2016

Sermão nas exéquias de Dona Maria de Ataíde, do Padre Antônio Vieira


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Fontes medievais

Similar a outros territórios medievais, Portugal se definiu a partir da violência, provando ser uma sociedade extremamente belicosa. Insurreições, rebeliões e inúmeras guerras com seus vizinhos pontearam o mapa histórico português, dando a impressão de uma guerra quase interrupta no reino. E, em uma nação na qual guerra se consolidou como um aspecto central, não surpreende, pois, que ao longo de sua história coletiva, vestígios bélico-ideológicos tenham sido imortalizados em seus registros históricos, especialmente as crônicas e narrativas oficiais. Elaborados pelos primeiros historiadores portugueses, estas obras permitem uma visão da funcionalidade das guerras e das estruturas que as circundam.

Neste sentido, não se pode negligenciar a escolha de determinada palavra, expressão ou conceito feito pelo cronista, pois no caso português eles refletem uma sociedade dislumbrada por conhecimentos e noções escatológicas, resultantes de uma preocupação obcessante que almejava posições claras de distinção, essa fixação com o sobrenatural coloria o imaginário da população medieval portuguesa, que compreendia o mundo em termos de uma dualidade do bem versus mal. No entanto, as fontes revelam que a busca por evidências distintivas que classificava algo como unicamente bom ou, como unicamente mal, revelou-se impossível. As definições entre bem e mal manifestaram-se repletas de forças e pensamentos tensionados e ambíguos. Por isso, conceitos como guerra justa, guerra santa, guerra como caridade e amor e outros conceitos, trabalhados pela presente tese, foram redigidos e inseridos com fartura nas narrativas e crônicas medievais portuguesas, muitas vezes empregados de forma transigente, conciliatora ou até subjetiva.

No mais, entende-se que é também através deste processo de criação de memórias, ou seja, é no próprio ato de escrever a história que as estruturas e conceitos tornam-se vigentes e imortalizados nos registros históricos de determinada sociedade. Elaboradas e consolidadas como história oficial do reino, essas narrativas atestam sua própria importância como instrumento formador de opiniões. Neste sentido, as narrativas medievais são fontes riquíssimas e excepcionais, das quais se podem extrair considerações embasadas e fundamentadas sobre o processo histórico, embora elas se mostrem ambíguas e ainda que não possam ser consideradas, ou tomadas, como versões fidedigna da História. Até porque essas narrativas não são apenas produtos individuais do autor, ou um simples registro de idéias singulares, fruto do poder de criação do escritor. Trata-se, na verdade, de lascas de uma grande tradição oral, reflexo das histórias que já circulavam no espaço português. Assim, os autores das narrativas e crônicas medievais eram colecionadores e compiladores dos fragmentos históricos que circulavam oralmente, fragmentos estes que os cronistas fundamentaram com o supporte de documentação encontrada nas respectivas chancelarias régias.

Além da inquestionável fecundidade histórica, as narrativas/crônicas medievais portuguesas também se adequaram às necessidades cronológicas desta tese no que diz respeito ao leque de tempo que são por elas abrangidas. Provando ser uma tradição duradoura, esse tipo de registro histórico percorreu séculos da historiografia portuguesa, cobrindo cada uma das monarquias medievais, a começar com a de D. Afonso Henriques (1143-1185) e estendendo até o reinado de D. Afonso V (1438/48-1481). Com efeito, as datas relativas ao regime monárquico de D. Afonso Henriques marcam a constituição e consolidação do Reino Português em 1143 e, conseqüentemente, oferecem o ponto de partida ideal para se estudar a realidade medieval portuguesa. Comparavelmente, o reinado de D. Afonso V coincide com o colapso do Império Bizantino, em 1453, habitualmente tido por especialistas como a data final da Idade Média41. Em virtude, as repetições de narrativas e crônicas na historiografia do reino português demonstram um costume social consistente, das quais se permitem fazer considerações arquétipas e contextualizadas dentro da teoria da longa duração.

O término da tese em tempo hábil estabeleceu outro fator de importante peso para a escolha desta tipologia documental. Este limite temporal fez-se necessário a utilização de narrativas/crônicas préviamente transcritas e impressas, uma vez que trabalhar com manuscritos e com sua transcrição requeriria especialização própria e tempo não disponível. Ao acreditar-se na altíssima qualidade dos trabalhos dos investigadores, especialistas e editores que se desdobraram na transcrição e publicação dos respectivos manuscritos, o manuseio de fontes impressas facilitou a investigação de uma quantidade vasta de material em um período de tempo relativamente curto.

No âmbito a que se destinam, as narrativas e crônicas medievais impressas provaram ser o instrumento histórico mais adequado para avaliação do período medieval. Contudo, as narrativas e crônicas medievais, como fontes primárias, desafiam o historiador e levantam uma série de questões que precisam ser confrontadas e esmiuçadas em um trabalho analítico. Questões referentes às datas é um exemplo claro. Com exceção das crônicas que levam a autoria de Rui de Pina42, todas as outras crônicas/narrativas usadas nesta tese foram escritas nos limites do medievo e, podem, sem sombra de dúvida, ser consideradas fontes primárias medievais. Contudo, essas fontes primárias também podem ser consideradas fontes secundárias ao se levar em consideração as interpretações feita pelos cronistas régios de fontes primárias em especial os documentos das diversas chancelarias régias. Destaca-se, pois, o caso das narrativas/crônicas redigidas no século XV que relatam acontecimentos do século XII, como é o caso da Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal. Essa narrativa foi redigida por Fernão Lopes, Cronista-Mor do reino entre os anos de 1434 e 1454, se contextualizando, portanto, no período tardo-medieval português. No entanto, a Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal trata de eventos que teriam acontecido tão cedo quanto as circunstâncias do Tratado de Zamora, em 1143, ou seja, eventos que decorreram mais de 300 anos antes da elaboração da crônica.

A funcionalidade dupla das narrativas/crônicas como fontes primárias e, ao mesmo tempo, secundárias, exige do historiador um certo discernimento e cautela em sua análise histórica. É preciso saber distinguir quando os conceitos encontrados nas narrativas são frutos do período narrado, quando eles são contemporâneos ao momento de redação, e, variavelmente, quando a ambigüidade não permite tal classificação. Com efeito, como acontece em outros registros históricos, as narrativas/crônicas apresentam ao leitor uma perpectiva de realidade relativa. Isto é, a narrativa tem como base as experiências de vida do próprio autor. Neste sentido, para esta pesquisa foi fundamental contabilizar possíveis distorções e adornações literárias, uma vez que estas práticas retóricas são características dos cronistas medievais, que buscavam sempre trazer um toque do miraculoso à vida.

Já as crônicas da autoria de Rui de Pina são tradicionalmente consideradas fontes primárias modernas. Por terem sido escritas após a queda do Império Bizantino, em 1453, as Crônicas de D. Duarte e de D. Afonso V ficam foram dos limites tradicionais do medievo, no entanto, por narrarem eventos relativos as monarquias ainda medievais de D. Duarte e D. Afonso V, elas se enquadram e como fontes secundárias medievais. Características do período de transição entre o medievo e a modernidade, essas narrativas contém forte traços da cronística medieval e, portanto, são emblemáticas da teoria da longa duração.

De entre toda essa produção, que pode ser rotulada de medieval, busca-se articular que os temas e conceitos extraídos são representativos, uma espécie de reflexão, se se permite, das estruturas bélicas vigentes dos séculos XV e XVI. Neste sentido, chama-se atenção para o papel marcante dos sermões de cunho bélico, introduzidos pelos cronistas do período em suas narrativas. A concessão de vozes aos personagens históricos foi uma prática medieval bastante recorrente na historiografia portuguesa e com freqüência encontram-se diálogos, pregações e até monólogos saírem das bocas de reis, rainhas, gurreiros e clérigos. Graças à estes métodos históricos, é possível a apreciação dos tipos de discursos e linguagens utilizados pelas diversas figuras históricas. Ainda que esses discursos não possam ser considerados registros ou gravações, por assim dizer, cem por cento fiéis às falas originais, é admissível sopesar que esses mecanismos expressivos são condizentes ao tipo de discurso que teria sido comum à época. Com efeito, a natureza das práticas historiográficas medievais fazem com que as narrativas e crônicas sejam fontes e instrumentos harmônicos à uma análise critico-histórica das sermonárias bélico-medievais.

No senso crítico da palavra, esses registros históricos apresentam vários elementos, em seu conteúdo, que denunciam a existência de expressões sintéticas sobre a guerra. Aplicada às práticas cotidianas essas idéias regiam o modus pensandi e vivendi de toda a sociedade monárquica portuguesa, fundamentando assim, o uso das narrativas/crônicas como fontes primárias e secundárias medievais na presente tese. De modo que, com base nessas considerações, foram analisadas um total de dez narrativas/crônicas régias portuguesas do período medieval: Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal; Crónica de D. Pedro I; Crónica de Dom Fernando; Crónica del Rei dom João I da boa memória. Parte Primeira; Crónica del Rei dom João I da boa memória. Parte Segunda; Crónica do Rei Dom Duarte; Crónica Do Rei Dom Afonso V; The Conquest of Lisbon: De Expugnatione Lyxbonensi; Crónica da Tomada de Ceuta e a Crónica do Condestabre de Portugal.

Desses registros históricos, extrairam-se e analisaram-se particularmente os sermões que abordavam temas relacionados à violência e à belicosidade, visando sua comparação com os sermões “modernos” do Padre António Vieira. A dupla eficácia das narrativas/crônicas medievais como fontes, tanto primárias como secundárias, exige uma, ainda que pequena, descrição das circunstâncias que envolvem suas respectivas elaborações e publicações. Visando este objetivo, preparou-se a seguir uma abreviada relação das fontes medievais.

Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal - Essa narrativa cronológicamente acompanha as monarquias dos reis D. Afonso Henriques (1143-1185), D. Sancho I (1185-1211), D. Afonso II (1211-1223), D. Sancho II (1223-1247/8), D. Afonso III (1248-1279), D. Dinis (1279-1325) e D. Afonso IV (1325-1357). O codex foi encontrado no ano de 1945 pelo Padre Carlos da Silva Tarouca, e acredita-se ter sido uma versão preparatória da perdida Crónica de Portugal de 1419. Muitas das passagens são similares àquelas encontradas na Crónica dos Cinco Primeiros Reis de Portugal, com alguma das lacunas preenchidas com passagens extraídas das narrativas pertencentes a autoria de Rui de Pina e de Duarte Galvão. Hoje, é largamente aceite pela academia que o autor destas crônicas é o renomado Fernão Lopes.

Crónica de D. Pedro I O reinado de D. Pedro I (1357-1367) é cuidadosamente registrado por esta crônica. Escrita por volta de 1434-49 por Fernão Lopes, a narrativa só seria impressa pela primeira vez no ano de 1735, em Lisboa. Encomendada por D. Duarte (1433-1438), ela nasceu do desejo de se “celebrar” a vida de D. João I, filho de D. Pedro I. Visando a legitimação da linhagem de Sua Majestade, torna-se evidente e compreensível como que, em alguns pontos da narrativa, Fernão Lopes justificava e esclarecia alguns dos comportamentos de D. Pedro, monarca cujo comportamento tinha sido recebido por muitos negativamente, como sugere seu cognome de “O Cruel”.

Crónica de Dom Fernando Também da autoria de Fernão Lopes, a Crónica de Dom Fernando (1367-1383) foi escrita por volta da última decadas do século XIV, tendo sido publicada pela primeira vez em 1816 na cidade de Lisboa. A maior parte da narrativa reconta os relatos de várias guerras travadas pelo monarca contra o reino vizinho de Castela. Acredita-se que Fernão Lopes tenha feito uso da Crónica do Condestabre, da Crónica del Rey Don Pedro, da Crónica del Rey Don Enrique II, e da Crónica del Rey Don Juan I, como base para esta obra.

Crónica del Rei dom João I da boa memória. Parte Primeira/ Parte Segunda A primeira parte desta narrativa bi-partite, da autoria de Fernão Lopes, conduz o leitor através do período conhecido como inter-regno. Este curto período, de aproximadamente dezasseis meses, cobre o intervalo entre o assassinato do Conde de Andeiro em dezembro de 1383, e a coroação do Mestre de Avis como rei dos portugueses em Abril de 1385. A segunda parte da narrativa trata a monarquia do Mestre de Avis, já investido e intitulado como o monarca D. João I (1385-1411), durante os anos de 1385 até o ano de 1411. Os manuscritos contendo as crônicas têm aproximadamente 50 folios no total, e datam ao final do século XV. Ambas partes desta crônica foram publicadas pela primeira vez em Lisboa no ano de 1644. O principal objetivo da Parte Primeira da Crónica de D. João I foi a legitimação da coroação do monarca, que foi soberano pela vontade do povo e não por linhagem de sangue. A segunda parte da obra narra os altos e baixos da monarquia de D. João I, e sua guerra incessante com Castela.

Crónica do Rei Dom Duarte - Rui de Pina é o autor desta crónica. A totalidade de sua obra constitui uma coleção de narrativas sobre os monarcas: D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D. Dinis, D. Afonso IV, D. Duarte, D. Afonso V e D. João II. Especificamente, a Crónica do Rei Dom Duarte foi escrita entre os anos de 1504 e 1513 e cobre a vida do monarca (1391-1438). A primeira edição da narrativa de D. Duarte data do século XVIII. Tem sido sugerido que grande parte do material usado na narrativa de D. Duarte foi extraído por Rui de Pina dos relatos de Gomes Eanes de Zurara na sua Crónica da Tomada de Ceuta; explicando, portanto, porquê tanto do conteúdo da narrativa foi dedicada aos acontecimentos em Tanger.

Crónica Do Rei Dom Afonso V - Como especificado anteriormente, a narrativa que relata os acontecimentos históricos durante o reinado do monarca D. Afonso V (1438-1481) é da autoria de Rui de Pina, e teve sua primeira impressão no século XVIII. No entanto, diferente da Crónica de D. Duarte, até 1504 a Crónica do Rei Dom Afonso V já tinha sido escrita, juntamente com a Crónica de D. João II. Como obras anteriores, são geralmente consideradas narrativas mais completas e mais equilibradas. Recheada de longos discursos atribuídos aos seus personagens, a Crónica do Rei Dom Afonso V foi de extrema valia para a presente tese.

The Conquest of Lisbon: De Expugnatione Lyxbonensi - Esta narrativa relata a expedição cruzadística en route à Terra Santa, que fez um “desvio” para ajudar D. Afonso Henriques (1143-1185) conquistar a cidade de Lisboa, fato que se consumou em 1147. A autoria da narrativa é atribuída, através da amplamente aceita tese de Livermore, à Raul. Raul, um clérigo anglo-normando, provavelmente desempenhou funções de líder espiritual aos cruzados da expedição lisboeta. O manuscrito sobrevivente, possivelmente uma cópia datando à segunda metade do século XII, está localizado na universidade Corpus Christi College em Cambridge. Aceita-se que o objetivo da narrativa fora a divulgação dos feitos de D. Afonso Henriques, para fins de legitimar sua acensão ao trono e o novo reino de Portugal.

Alerta-se ainda que duas traduções da De Expugnatione Lyxbonensi foram utilizadas na presente tese. Uma tradução inglesa executada por Charles Wendell David, intitulada The Conquest of

Lisbon: De Expugnatione Lyxbonensi; e uma segunda em português por Aires A. Nascimento, que leva o título de A Conquista de Lisboa aos Mouro: Relato de um Cruzado. Da versão em português ressalta-se a introdução de Maria João Violante Branco, extremamente rica e valiosa.

Crónica da Tomada de Ceuta - Esta narrativa de Eanes Gomes Zurara, foi escrita em 1449, isto é, trinta anos após o cerco à Ceuta em 1419. A Crónica da Tomada de Ceuta cobre a conquista da cidade, ordenada pelo monarca D. João I (1385-1433) a pedido de seus três filhos mais velhos. A narrativa celebra um dos primeiros momentos na história onde têm-se registrados relatos da expansão portuguesa no continente Africano. A Crónica da Tomada de Ceuta elaborada por Zurara acredita-se ter como objetivo primordial a proliferação das tedências dos novos ideais expansionistas da coroa portuguesa.


Crónica do Condestabre de Portugal Trata-se de uma narrativa biográfica de Nuno Álvares Pereira (1360-1431), condestavél do monarca D. João I (1385-1433). O autor da Crónica do Condestabre de Portugal é desconhecido, mas acredita-se ter sido escrita não mais tarde que 1440; a primeira publicação ocorreu na cidade de Lisba em 1526. A narrativa atribui qualidades heróicas, quasi santas a Nuno Álvares Pereira.

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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.

Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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