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Fontes medievais
Similar a outros territórios
medievais, Portugal se definiu a partir da violência, provando ser uma
sociedade extremamente belicosa. Insurreições, rebeliões e inúmeras guerras com
seus vizinhos pontearam o mapa histórico português, dando a impressão de uma
guerra quase interrupta no reino. E, em uma nação na qual guerra se consolidou
como um aspecto central, não surpreende, pois, que ao longo de sua história
coletiva, vestígios bélico-ideológicos tenham sido imortalizados em seus
registros históricos, especialmente as crônicas e narrativas oficiais.
Elaborados pelos primeiros historiadores portugueses, estas obras permitem uma
visão da funcionalidade das guerras e das estruturas que as circundam.
Neste sentido, não se pode
negligenciar a escolha de determinada palavra, expressão ou conceito feito pelo
cronista, pois no caso português eles refletem uma sociedade dislumbrada por
conhecimentos e noções escatológicas, resultantes de uma preocupação obcessante
que almejava posições claras de distinção, essa fixação com o sobrenatural
coloria o imaginário da população medieval portuguesa, que compreendia o mundo
em termos de uma dualidade do bem versus mal. No entanto, as
fontes revelam que a busca por evidências distintivas que classificava algo
como unicamente bom ou, como unicamente mal, revelou-se
impossível. As definições entre bem e mal manifestaram-se repletas de forças e
pensamentos tensionados e ambíguos. Por isso, conceitos como guerra justa,
guerra santa, guerra como caridade e amor e outros conceitos,
trabalhados pela presente tese, foram redigidos e inseridos com fartura nas
narrativas e crônicas medievais portuguesas, muitas vezes empregados de forma
transigente, conciliatora ou até subjetiva.
No mais, entende-se que é
também através deste processo de criação de memórias, ou seja, é no próprio ato
de escrever a história que as estruturas e conceitos
tornam-se vigentes e imortalizados nos registros históricos de determinada
sociedade. Elaboradas e consolidadas como história oficial do reino, essas
narrativas atestam sua própria importância como instrumento formador de
opiniões. Neste sentido, as narrativas medievais são fontes riquíssimas e
excepcionais, das quais se podem extrair considerações embasadas e
fundamentadas sobre o processo histórico, embora elas se mostrem ambíguas e
ainda que não possam ser consideradas, ou tomadas, como versões fidedigna da
História. Até porque essas narrativas não são apenas produtos individuais do
autor, ou um simples registro de idéias singulares, fruto do poder de criação
do escritor. Trata-se, na verdade, de lascas de uma grande tradição oral,
reflexo das histórias que já circulavam no espaço português. Assim, os autores
das narrativas e crônicas medievais eram colecionadores e compiladores dos
fragmentos históricos que circulavam oralmente, fragmentos estes que os
cronistas fundamentaram com o supporte de documentação encontrada nas
respectivas chancelarias régias.
Além da inquestionável
fecundidade histórica, as narrativas/crônicas medievais portuguesas também se
adequaram às necessidades cronológicas desta tese no que diz respeito ao leque
de tempo que são por elas abrangidas. Provando ser uma tradição duradoura, esse
tipo de registro histórico percorreu séculos da historiografia portuguesa, cobrindo
cada uma das monarquias medievais, a começar com a de D. Afonso Henriques
(1143-1185) e estendendo até o reinado de D. Afonso V (1438/48-1481). Com
efeito, as datas relativas ao regime monárquico de D. Afonso Henriques marcam a
constituição e consolidação do Reino Português em 1143 e, conseqüentemente,
oferecem o ponto de partida ideal para se estudar a realidade medieval
portuguesa. Comparavelmente, o reinado de D. Afonso V coincide com o colapso do
Império Bizantino, em 1453, habitualmente tido por especialistas como a data
final da Idade Média41. Em
virtude, as repetições de narrativas e crônicas na historiografia do reino
português demonstram um costume social consistente, das quais se permitem fazer
considerações arquétipas e contextualizadas dentro da teoria da longa
duração.
O término da tese em tempo
hábil estabeleceu outro fator de importante peso para a escolha desta tipologia
documental. Este limite temporal fez-se necessário a
utilização de narrativas/crônicas préviamente transcritas e impressas, uma vez
que trabalhar com manuscritos e com sua transcrição requeriria especialização
própria e tempo não disponível. Ao acreditar-se na altíssima qualidade dos
trabalhos dos investigadores, especialistas e editores que se desdobraram na
transcrição e publicação dos respectivos manuscritos, o manuseio de fontes
impressas facilitou a investigação de uma quantidade vasta de material em um
período de tempo relativamente curto.
No âmbito a que se destinam,
as narrativas e crônicas medievais impressas provaram ser o instrumento
histórico mais adequado para avaliação do período medieval. Contudo, as
narrativas e crônicas medievais, como fontes primárias, desafiam o historiador
e levantam uma série de questões que precisam ser confrontadas e esmiuçadas em
um trabalho analítico. Questões referentes às datas é um exemplo claro. Com
exceção das crônicas que levam a autoria de Rui de Pina42, todas as outras crônicas/narrativas
usadas nesta tese foram escritas nos limites do medievo e, podem, sem sombra de
dúvida, ser consideradas fontes primárias medievais. Contudo, essas fontes
primárias também podem ser consideradas fontes secundárias ao se levar em
consideração as interpretações feita pelos cronistas régios de fontes primárias
em especial os documentos das diversas chancelarias régias. Destaca-se, pois, o
caso das narrativas/crônicas redigidas no século XV que relatam acontecimentos
do século XII, como é o caso da Crónica dos Sete Primeiros Reis de
Portugal. Essa narrativa foi redigida por Fernão Lopes, Cronista-Mor
do reino entre os anos de 1434 e 1454, se contextualizando, portanto, no
período tardo-medieval português. No entanto, a Crónica dos Sete Primeiros
Reis de Portugal trata de eventos que teriam acontecido tão cedo quanto as
circunstâncias do Tratado de Zamora, em 1143, ou seja, eventos que decorreram
mais de 300 anos antes da elaboração da crônica.
A funcionalidade dupla das
narrativas/crônicas como fontes primárias e, ao mesmo tempo, secundárias, exige
do historiador um certo discernimento e cautela em sua análise histórica. É
preciso saber distinguir quando os conceitos encontrados nas narrativas são
frutos do período narrado, quando eles são contemporâneos ao momento de
redação, e, variavelmente, quando a ambigüidade não permite tal classificação.
Com efeito, como acontece em outros registros históricos, as
narrativas/crônicas apresentam ao leitor uma perpectiva de realidade relativa. Isto é, a narrativa tem como base as experiências de
vida do próprio autor. Neste sentido, para esta pesquisa foi fundamental
contabilizar possíveis distorções e adornações literárias, uma vez que estas
práticas retóricas são características dos cronistas medievais, que buscavam
sempre trazer um toque do miraculoso à vida.
Já as crônicas da autoria de
Rui de Pina são tradicionalmente consideradas fontes primárias modernas. Por
terem sido escritas após a queda do Império Bizantino, em 1453, as Crônicas
de D. Duarte e de D. Afonso V ficam foram dos limites
tradicionais do medievo, no entanto, por narrarem eventos relativos as
monarquias ainda medievais de D. Duarte e D. Afonso V, elas se enquadram e como
fontes secundárias medievais. Características do período de transição entre o
medievo e a modernidade, essas narrativas contém forte traços da cronística
medieval e, portanto, são emblemáticas da teoria da longa duração.
De entre toda essa produção,
que pode ser rotulada de medieval, busca-se articular que os temas e conceitos
extraídos são representativos, uma espécie de reflexão, se se permite, das estruturas
bélicas vigentes dos séculos XV e XVI.
Neste sentido, chama-se atenção para o papel marcante dos sermões de cunho
bélico, introduzidos pelos cronistas do período em suas narrativas. A concessão
de vozes aos personagens históricos foi uma prática medieval bastante
recorrente na historiografia portuguesa e com freqüência encontram-se diálogos,
pregações e até monólogos saírem das bocas de reis, rainhas, gurreiros e
clérigos. Graças à estes métodos históricos, é possível a apreciação dos tipos
de discursos e linguagens utilizados pelas diversas figuras históricas.
Ainda que esses discursos não possam ser considerados registros ou
gravações, por assim dizer, cem por cento fiéis às falas originais, é
admissível sopesar que esses mecanismos expressivos são condizentes ao tipo de discurso
que teria sido comum à época. Com efeito, a natureza das práticas
historiográficas medievais fazem com que as narrativas e crônicas sejam fontes
e instrumentos harmônicos à uma análise critico-histórica das sermonárias
bélico-medievais.
No senso crítico da palavra,
esses registros históricos apresentam vários elementos, em seu conteúdo, que
denunciam a existência de expressões sintéticas sobre a guerra. Aplicada às
práticas cotidianas essas idéias regiam o modus pensandi e vivendi
de toda a sociedade monárquica portuguesa, fundamentando assim, o uso das
narrativas/crônicas como fontes primárias e secundárias medievais na presente
tese. De modo que, com base nessas considerações, foram analisadas um total de
dez narrativas/crônicas régias portuguesas do período medieval: Crónica dos
Sete Primeiros Reis de Portugal; Crónica de D. Pedro I; Crónica de Dom
Fernando; Crónica del Rei dom João I da boa memória. Parte Primeira; Crónica
del Rei dom João I da boa memória. Parte Segunda; Crónica do Rei Dom Duarte;
Crónica Do Rei Dom Afonso V; The Conquest of Lisbon: De Expugnatione
Lyxbonensi; Crónica da Tomada de Ceuta e a Crónica do Condestabre de
Portugal.
Desses registros históricos,
extrairam-se e analisaram-se particularmente os sermões que abordavam temas
relacionados à violência e à belicosidade, visando sua comparação com os
sermões “modernos” do Padre António Vieira. A dupla eficácia das narrativas/crônicas
medievais como fontes, tanto primárias como secundárias, exige uma, ainda que
pequena, descrição das circunstâncias que envolvem suas respectivas elaborações
e publicações. Visando este objetivo, preparou-se a seguir uma abreviada relação
das fontes medievais.
Crónica dos Sete
Primeiros Reis de Portugal - Essa narrativa cronológicamente acompanha as monarquias dos reis
D. Afonso Henriques (1143-1185), D. Sancho I (1185-1211), D. Afonso II
(1211-1223), D. Sancho II (1223-1247/8), D. Afonso III (1248-1279), D. Dinis
(1279-1325) e D. Afonso IV (1325-1357). O codex foi encontrado no ano de 1945
pelo Padre Carlos da Silva Tarouca, e acredita-se ter sido uma versão
preparatória da perdida Crónica de Portugal de 1419. Muitas das
passagens são similares àquelas encontradas na Crónica dos Cinco
Primeiros Reis de Portugal, com alguma das lacunas preenchidas com
passagens extraídas das narrativas pertencentes a autoria de Rui de Pina e de
Duarte Galvão. Hoje, é largamente aceite pela academia que o autor destas crônicas é o
renomado Fernão Lopes.
Crónica de D. Pedro I
– O reinado de D. Pedro I (1357-1367) é cuidadosamente
registrado por esta crônica. Escrita por volta de 1434-49 por Fernão Lopes, a
narrativa só seria impressa pela primeira vez no ano de 1735, em Lisboa.
Encomendada por D. Duarte (1433-1438), ela nasceu do desejo de se “celebrar” a
vida de D. João I, filho de D. Pedro I. Visando a legitimação da linhagem de
Sua Majestade, torna-se evidente e compreensível como que, em alguns pontos da
narrativa, Fernão Lopes justificava e esclarecia alguns dos comportamentos de
D. Pedro, monarca cujo comportamento tinha sido recebido por muitos
negativamente, como sugere seu cognome de “O Cruel”.
Crónica de Dom Fernando
– Também da autoria de Fernão Lopes, a Crónica de Dom Fernando (1367-1383)
foi escrita por volta da última decadas do século XIV, tendo sido
publicada pela primeira vez em 1816 na cidade de Lisboa. A maior parte da
narrativa reconta os relatos de várias guerras travadas pelo monarca contra o
reino vizinho de Castela. Acredita-se que Fernão Lopes tenha feito uso da Crónica
do Condestabre, da Crónica del Rey Don Pedro, da Crónica
del Rey Don Enrique II, e da Crónica del Rey Don Juan I, como base
para esta obra.
Crónica del Rei dom João
I da boa memória. Parte Primeira/ Parte Segunda – A
primeira parte desta narrativa bi-partite, da autoria de Fernão Lopes,
conduz o leitor através do período conhecido como inter-regno. Este curto
período, de aproximadamente dezasseis meses, cobre o intervalo entre o
assassinato do Conde de Andeiro em dezembro de 1383, e a coroação do Mestre de
Avis como rei dos portugueses em Abril de 1385. A segunda parte da narrativa
trata a monarquia do Mestre de Avis, já investido e intitulado como o monarca
D. João I (1385-1411), durante os anos de 1385 até o ano de 1411. Os
manuscritos contendo as crônicas têm aproximadamente 50 folios no total,
e datam ao final do século XV. Ambas partes desta crônica foram publicadas pela
primeira vez em Lisboa no ano de 1644. O principal objetivo da Parte
Primeira da Crónica de D. João I foi a legitimação da coroação do
monarca, que foi soberano pela vontade do povo e não por linhagem de sangue. A
segunda parte da obra narra os altos e baixos da monarquia de D. João I, e sua
guerra incessante com Castela.
Crónica do Rei Dom
Duarte - Rui de Pina é o autor desta crónica. A totalidade
de sua obra constitui uma coleção de narrativas sobre os monarcas: D. Sancho I,
D. Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D. Dinis, D. Afonso IV, D. Duarte,
D. Afonso V e D. João II. Especificamente, a Crónica do Rei Dom Duarte
foi escrita entre os anos de 1504 e 1513 e cobre a vida do monarca (1391-1438).
A primeira edição da narrativa de D. Duarte data do século
XVIII. Tem sido sugerido que grande parte do material usado na narrativa de D.
Duarte foi extraído por Rui de Pina dos relatos de Gomes Eanes de Zurara na sua
Crónica da Tomada de Ceuta; explicando, portanto, porquê tanto do
conteúdo da narrativa foi dedicada aos acontecimentos em Tanger.
Crónica Do Rei Dom
Afonso V - Como especificado anteriormente, a narrativa que
relata os acontecimentos históricos durante o reinado do monarca D. Afonso V
(1438-1481) é da autoria de Rui de Pina, e teve sua primeira impressão no
século XVIII. No entanto, diferente da Crónica de D. Duarte, até 1504 a
Crónica do Rei Dom Afonso V já tinha sido escrita, juntamente com a Crónica
de D. João II. Como obras anteriores, são geralmente consideradas
narrativas mais completas e mais equilibradas. Recheada de longos discursos
atribuídos aos seus personagens, a Crónica do Rei Dom Afonso V foi de
extrema valia para a presente tese.
The Conquest of Lisbon:
De Expugnatione Lyxbonensi - Esta narrativa relata a expedição
cruzadística en route à Terra Santa, que fez um “desvio” para ajudar D.
Afonso Henriques (1143-1185) conquistar a cidade de Lisboa, fato que se
consumou em 1147. A autoria da narrativa é atribuída, através da amplamente
aceita tese de Livermore, à Raul. Raul, um clérigo anglo-normando,
provavelmente desempenhou funções de líder espiritual aos cruzados da expedição
lisboeta. O manuscrito sobrevivente, possivelmente uma cópia datando à segunda
metade do século XII, está localizado na universidade Corpus Christi College em
Cambridge. Aceita-se que o objetivo da narrativa fora a divulgação dos feitos
de D. Afonso Henriques, para fins de legitimar sua acensão ao trono e o novo
reino de Portugal.
Alerta-se ainda que duas
traduções da De Expugnatione Lyxbonensi foram utilizadas na
presente tese. Uma tradução inglesa executada por Charles Wendell David,
intitulada The Conquest of
Lisbon: De Expugnatione
Lyxbonensi; e uma segunda em português por Aires A. Nascimento, que
leva o título de A Conquista de Lisboa aos Mouro: Relato de um
Cruzado. Da versão em português ressalta-se a introdução de Maria João
Violante Branco, extremamente rica e valiosa.
Crónica da Tomada de
Ceuta - Esta narrativa de Eanes Gomes Zurara, foi escrita em
1449, isto é, trinta anos após o cerco à Ceuta em 1419. A Crónica da Tomada de
Ceuta cobre a conquista da cidade, ordenada pelo monarca D. João I (1385-1433)
a pedido de seus três filhos mais velhos. A narrativa celebra um dos primeiros
momentos na história onde têm-se registrados relatos da expansão portuguesa no
continente Africano. A Crónica da Tomada de Ceuta elaborada por Zurara
acredita-se ter como objetivo primordial a proliferação das tedências dos novos
ideais expansionistas da coroa portuguesa.
Crónica do Condestabre
de Portugal – Trata-se de uma narrativa biográfica de
Nuno Álvares Pereira (1360-1431), condestavél do monarca D. João I (1385-1433).
O autor da Crónica do Condestabre de Portugal é desconhecido, mas
acredita-se ter sido escrita não mais tarde que 1440; a primeira
publicação ocorreu na cidade de Lisba em 1526. A narrativa
atribui qualidades heróicas, quasi santas a Nuno Álvares Pereira.
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Fonte:
Raquel Drumond Guimarães: “Vestígios do medievo nos Sermões do Padre António Vieira”. (Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em História, da Universidade Federal de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Relações de poder e subjetividades. Orientador: Prof. Dr. Valmir Francisco Muraro). Florianópolis, 2012.
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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