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Sermões
históricos e proféticos
A verdade e a mentira: a verdade
do pregador e a mentira dos ouvintes - Sermam da Quinta Dominga da Quaresma Na
Igreja da Cidade de São Luis do Maranhão.
O
sermão realizado na Igreja Maior da cidade de São Luís, no Maranhão, em 1654,
inicia com a alegação: “Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis,
mendax”. Ioan, 8. Nele, Vieira começa por afirmar, “A verdade e a mentira: a
verdade do pregador e a mentira dos ouvintes. As tres especies de mentiras com
que os escribas e fariseos hoje contradisseram, caluniaram e quizeram afrontar
e deshonrar o Filho de Deos”10. Partindo deste trecho pode
antever-se a crítica do Jesuíta a todos os governantes do Maranhão que negavam
Cristo através dos actos que cometiam. O discurso envolve a intenção política
de os atacar uma vez que se opunham à sua acção evangelizadora. Vieira invocou
no sermão a inveja, o ódio, a raiva, a vingança e os interesses dos que
governavam.
“(…) Disse-lhes Cristo que era
Filho de Deos verdadeiro, a quem eles chamavão Pai sem o conhecerem: disse lhes
que os que recebessem, & observassem sua doutrina viverião eternamente,
& aqui mentiram não crendo a verdade: Si veritatem dico vobis, quare non
creditis mihi? (…). Enfim, mentiram afirmando a mentira, porque disserão que
Cristo era samaritano e endemoninhado: Samaritanus es, et daemonium habes. E
para mentirem duas vezes em huma mentira, repetirão a mesma blasfemia
ratificando o que tinhão dito e alegando-se a si mesmos: Nonne bene dicimus
nos? Mal he dizer mal, mas depois de o haverdes dito, dizerdes ainda que dizeis
bem, he um mal maior sobre outro mal, porque he estar obstinado nele”.
“No
Maranhão até o sol e os céus mentem” afirmava António Vieira porque no
“Maranhão não há verdade”. A primeira proposição revela a frustração que o
pregador sentia ao analisar a sociedade que o rodeava. A segunda reforça a
primeira, utilizando a retórica e a lógica aristotélica, ou seja, o silogismo
truncado: se “mentem” “não há verdade”. O que era a verdade e a mentira? A
verdade era a palavra do Pregador, ou seja, a doutrina pela qual se salvavam os
homens. A mentira era a negação dos homens através das suas acções quando
impugnavam a palavra do pregador porque blasfemavam. Aplicando esta lógica o
missionário apresentava no discurso duas premissas não contrárias para que os
ouvintes chegassem a uma conclusão. Este sermão revela bem a sintonia com os
retóricos e o recurso às técnicas usadas pelos autores clássicos. O paralelismo
pode verificar-se na obra de Platão, A República, onde se discute que a alma é
mais corajosa e sensata quando não é abalada nem alterada.
A
analogia é visível na mentira sobre os deuses e na preocupação da
integridade/salvação da alma: “(…) e que ninguém venha contar mentiras sobre
Proteu e Tétis”. Em ambos os autores é perceptível a mesma finalidade
pedagógica. Veja-se o que afirma Platão “(…) chamar-se-ia verdadeira mentira à
ignorância que existe na alma da pessoa enganada…Por conseguinte a mentira
autêntica é detestada não só pelos deuses, mas também pelos homens”.
Num
fragmento do mesmo sermão, ao expor a visão que os alemães tinham dos europeus,
Vieira mostra, também, o pecado que ele atribuía ao povo português. Avalie-se a
seguinte fábula:
“Dizem
que a cabeça do diabo caiu em Espanha, e que por isso somos furiosos, altivos,
e com arrogancia graves. Dizem que o peito caiu em Italia, & que daqui lhes
veio serem fabricadores de máquinas, não se darem a entender, & trazerem o
coração sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em Alemanha, & que esta he
a causa de serem inclinados à gula, & gastarem mais que os outros com a
mesa & com a taça. Dizem que os pes caíram em França, & que daqui nasce
serem pouco sossegados, apressados no andar, & amigos de bailes. Dizem que
os braços com as mãos & unhas crescidas, um caiu na Holanda, outro em
Argel, & que daí lhes veio – ou nos veio – o serem corsários. Esta he a
substancia do apologo, nem mal formado, nem mal repartido, porque, ainda que a
aplicação dos vicios totalmente não seja verdadeira, tem comtudo a semelhança
de verdade, que basta para dar sal à sátira. E, suposto que à Espanha lhe coube
a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos toca ao nosso Portugal he a lingoa,
ao menos assim o entendem as nações estrangeiras que de mais perto nos tratam.
Os vicios da lingoa são tantos, que fez Drexélio um abecedario inteiro, &
muito copioso deles”.
Qual era o diagnóstico traçado
para o povo ibérico? Os alemães atribuíram a queda da cabeça do Diabo a
Espanha. Vieira apontou a língua como a parte que toca a Portugal. O Jesuíta
observara que os portugueses eram viciados no pecado da língua, isto é, na
blasfémia.
Apregoou com mágoa a catástrofe
que decorria dos ataques dos holandeses no Maranhão, a guerra da Restauração e
a intriga dos governantes. A justificação residia, em última análise, no pecado
da língua que negava a graça de Deus.
O Padre António Vieira fez
realçar a maldade da língua com uma citação de S. Tiago: “não há fera mais
dificultosa de enfrear que a lingoa. Para se por o freio na lingoa,
hão se de meter as cabeçadas na imaginação.” Para tal reforçou a ideia dizendo
que “Os falsos testemunhos formão se na lingoa: os juizos temerarios formão se
na imaginação; & como da imaginação à lingoa há tão pouca distancia, para
que não haja falsos testemunhos na lingoa, proibe que não haja juizos temerarios
na imaginação”.
Falou também da mentira dos ouvidos e da mentira dos
olhos. Da primeira disse,
“Defende-vos lá agora das vossas mentiras, com dizer
que dissestes as mesmas palavras que ouvistes, & que não acrescentastes
nada”. Da segunda afirmou “Se quem vai vigiar, & espreitar a vossa vida,
& a vossa honra levar alguma nuvem diante dos olhos, (…) por mais que a
vossa vida, & a vossa honra seja tão clara e tão pura como hum cristal, há
lhe de parecer escura e tenebrosa”.
Com estas palavras o que é que procurava o pregador?
Mostrar
que a balança em que se pesavam as consciências na outra vida era muito
delicada e o Inferno seria o resultado da desgraça por se ter cometido um falso
testemunho. O remédio, esse, “…está em huma consciencia muito bem examinada, em
huma confissão muito bem feita”. Expõe no final do sermão o objectivo da nova
pastoral, posta em prática depois do Concílio de Trento, que dava relevância à
confissão.
História
do Futuro, Esperanças de Portugal e Quinto império. Verdade e Utilidades da
História do Futuro.
No
capítulo IV das Utilidades da História do Futuro, o Padre António Vieira
referiu que a blasfémia dos homens foi dizer que Moisés libertou o povo
escolhido do cativeiro do Egipto, negando assim o poder de Deus que “abriu o
Mar Vermelho e afogou nele Faraó e seus exércitos (…) mas nos homens que deviam
dar a Deus toda a glória (pois toda era sua), referirem-se a Moisés, era
descortesia; atribuírem-na ao ídolo, era blasfémia, e não a darem a Deus toda,
era ingratidão suma”. Mais uma vez, num tom satírico e mordaz, ele acusou os
homens de serem mal-agradecidos. Era esta ingratidão dos homens que ele
projectava na sua oratória com o intuito de salvar todos os que o ouvissem.
Um
dos objectivos que ele se propunha com a História do Futuro era exaltar nela a
fé e o triunfo da Igreja, para glória de Cristo, para felicidade e paz
universal. Ao mesmo tempo que o Jesuíta focava a blasfémia como uma das causas
encontradas para a desgraça do reino apontava, também, a esperança de um mundo
melhor através da nova pastoral e o desejo da unificação da Igreja. Esta tinha
um papel preeminente, prestava um duplo serviço a Deus e ao Princípe, pois
submetia ao Estado, não apenas os corpos e as faculdades dos subditos, mas
ainda as almas e as consciências.
“Já
Deus, Portugueses, nos livrou do cativeiro, já por mercê de Deus triunfamos de
Faraó e do poder de seus exércitos; já os vimos, não uma, mas muitas vezes,
afogados no Mar Vermelho de seu próprio sangue. (…).”
Vieira narrou com emoção que os
Portugueses conheceram o cativeiro (União Ibérica) mas que tinham como
consolação a carta e a tradição de São Bernardo que profetizava “Lia-se no
juramento de El-Rei D. Afonso Henriques e na promessa do santo ermitão, que, na
décima sexta geração atenuada, poria Deus os olhos de sua misericórdia no
Reino. Lia-se nas célebres tradições de Gregório de Almeida no seu Portugal
Restaurado, que o tempo desejado havia de chegar, e as esperanças dele se
haviam de cumprir no ano sinalado de quarenta”
O
sermão História do Futuro tem como motivo principal a sucessão dos quatro
impérios. As aspirações messiânicas ao Quinto Império significam a superação
espiritual, por redução da multiplicidade histórica ou temporal e da variedade
geográfica ou espacial a um todo único, contínuo, sem partes. A noção de um só
Império participa da obsessão da totalidade, seja ela de poder, monarchia, de
língua, de religião: um só rebanho, um só pastor; o herege, o gentio e o judeu
aliados ao católico, “unidas todas as seitas do mundo”, feita a “concórdia de
uma só fé e religião”.
A ideia
de que o mundo era “geometricamente o mundo”, de que Portugal seria o local
predestinado pelo “Supremo Arquitecto”, foi a forma como profetizou que Deus
escolheria Portugal para criar o mundo mais perfeito. A geometria e a
arquitectura eram metáforas que se podem ler como a construção de uma realidade
melhor, perfeita, onde certamente, não haveria lugar para a blasfémia. Na
Europa a ruptura tornou-se irreversível com a Reforma, gerando-se ao mesmo
tempo rivalidades nacionais. A solução da Contra-Reforma
mais não fez que agudizar as separações, e a paz da Vestefália (1648) consagrou
a situação de facto e institucionalizou um equilíbrio de identidades nacionais
com religiões diferentes.
A
Companhia de Jesus, o agente mais dinâmico de uma ideologia restauradora e
integralista, foi-se revelando incapaz de reconstituir a unidade perdida.
Confundia-se a unificação com o domínio e as Coroas tornaram-se agressivas,
economicamente e ideologicamente23. Daí que Vieira tivesse a
necessidade de pregar a unidade, o todo, criado pelo Supremo Arquitecto. Só
assim se pode compreender a divulgação do Quinto Império como aquele que
levaria à instauração da paz e à eliminação das diferenças.
A explicação que Vieira encontrou
para o “cativeiro” da União Ibérica foi o resultado da blasfémia contida na
crença dos “ídolos” e no desvio dos crentes. No entanto, o autor não se limitou
a diagnosticar os problemas mas projectava no futuro a esperança de Portugal
atingir a perfeição e a harmonia através dos preceitos morais pós-tridentinos.
Para terminar, não se pode deixar de ligar as ideias milenaristas com o sentido
profético que o Padre António Vieira atribuiu ao Quinto Império, como o mundo
utópico onde se encontraria a paz e o amor, onde a devoção estaria ao serviço
da Igreja e da Pátria. O autor aproximava-se dos humanistas como Campanella e
More que propuseram nas suas respectivas obras Cidade do Sol e Utopia
paradigmas de mundos ideais, melhores, onde todos os homens encontrariam a
felicidade que, para o Jesuíta, só era possível com a salvação da alma.
Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra
as de Holanda Em Maio e Junho de 1640, os Holandeses cercavam a Baía, “capital”
do Brasil.
“Os Portugueses sentiam-se à beira de uma
catástrofe. A esquadra enviada de Lisboa para romper o cerco dispersara-se no
mar e o que restara dela tinha sido desbaratado pelos Holandeses. Não havia
esperança de outros socorros e a cidade estava na expectativa de uma situação
tão penosa como a de 1624, quando os Holandeses a tinham dominado, obrigando os
colonos a fugirem para as fazendas do interior ou para o sertão. As igrejas
tinham sido profanadas, tendo os Padres tido muita dificuldade em salvar
objectos sagrados.”
Nesta
guerra confrontavam-se protestantes e católicos. O que estava em causa era o
domínio do açúcar e o destino religioso da América. O Bispo da Baía comandara
as forças que expulsaram o invasor. Foi este povo angustiado e oprimido que
assistiu ao
Sermão pelo Bom Sucesso das Armas
de Portugal contra as de Holanda, na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda.
O discurso proferido por Vieira é
extraordinário porque o orador não se dirige aos fiéis mas ao povo de Moisés, e
ao próprio Deus em nome do seu povo25. Tomando como tema um texto do
salmo 43 no qual David diz: “acorda Senhor, porque dormes?” declara, assim, que
não se propõe converter os pecadores, mas o próprio Deus. Roga a Deus que ajude
os portugueses a libertarem-se do jugo dos holandeses. A sua narração enche-se
da História de Portugal, dos feitos dos reis portugueses, apelando à
misericórdia divina e à remissão dos pecados da língua do quais resultavam
catástrofes.
Desde cedo que os reis
portugueses se preocuparam com as blasfémias porque se pensava que aquelas
atraiam a pestilência, as fomes, os terramotos, as guerras, como resultado da
ira divina. Deste modo, D. Dinis legislou contra os que renegassem da fé por
palavras: “que daqui em deante quem quer que descreer de Deus e da Sancta Maria
sa madre, e os doestar, que lhi tirem a lingua pelo pescoço e o queymen”.
Também D. João I mostrou preocupação em acabar com as blasfémias e, por isso,
publicou a 3 de Janeiro de 1416, uma lei que punia os blasfemos.
Posteriormente, as Ordenações Afonsinas, cuja vigência iria perdurar até à
publicação das Ordenações Manuelinas (1513/1514), definiam que competia à
justiça eclesiástica apreciar os casos de blasfémia e proferir a sentença adequada.
Para combater a blasfémia, as Ordenações Filipinas, publicaram uma lei, de 27
de Julho de 1582, § 35 (Livro V, Título II) que continuava com as medidas
tomadas pelos anteriores reis, com ligeiras modificações quanto ao destino dos
degredados. No reinado de D. João IV foram confirmadas as Ordenações Filipinas,
pela lei de 29 de Janeiro de 1643, devendo vigorar enquanto as circunstâncias
da guerra não permitissem elaborar uma nova recompilação das leis.
No sermão contra os holandeses, o
missionário invocou de uma forma brilhante a ira divina. Responsabilizou Deus
pela evolução funesta da guerra. Reclamava a Deus uma
explicação e uma consequência positiva com a vitória dos portugueses. Vieira
interpelou Deus do seguinte modo:
“Pois é possível, Senhor, que
hão-de ser vossas permissões argumentos contra a vossa Fé? É possível que se
hão-de ocasionar de nossos castigos blasfémias contra vosso nome? Que diga o
herege (o que treme de o pronunciar a língua), que diga o herege, que Deus está
holandês? Oh, não permitais tal, Deus meu, não permitais tal, por quem sois!
Não o digo por nós, que pouco ia em que nos castigásseis; não o digo pelo
Brasil, que pouco ia em que o destruísseis; por vós o digo e pela honra de
vosso Santíssimo Nome, que tão imprudentemente se vê blasfemado: Propter nomen
tuum. Já que o pérfido calvinista dos sucessos que só lhe merecem nossos
pecados faz argumento da religião, e se jacta insolente e blasfemo de ser a sua
verdadeira, veja ele na roda dessa mesma fortuna, que o desvanece, de que parte
está a verdade.
Segundo a opinião de António
Saraiva, o sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal trata-se de um jogo
dramático e não de uma simples súplica amplificada. Job, evocado por Vieira,
exprime uma relação dramática entre Deus e a criatura e revela a autonomia
radical do homem perante Deus, seu criador.
Na conclusão do sermão o pregador
já não se dirige a Deus mas a Cristo. Vieira seguiu a estratégia que aprendera
na sua ordem, isto é, transmitir aos fiéis uma carga muito rica de sentimentos:
a súplica, a censura, a carícia, o conselho quase paternal, a ameaça; e se não
chega a cair na blasfémia, passeia perigosamente à beira desse abismo para
fazer tremer os seus ouvintes. Estes faziam parte do espectáculo, pois eram os
figurantes mudos, cujos sentimentos se exprimem pela voz do pregador-corifeu.
Desempenham o papel do coro, no teatro grego.
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Fonte:
Ana Ruas
Alves: " A Verdade e a Mentira: a blasfémia no discurso do Padre António
Vieira"
(Universidade
de Coimbra - anaruasalves@gmail.com). Disponível em: http://www.ecsbdefesa.com.br
Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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